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Animais de Companhia

Síndrome de disfunção cognitiva: Diagnóstico diferencial e o elo entre veterinários e tutores

A identificação da síndrome de disfunção cognitiva nem sempre é linear e pode tornar-se um desafio para o clínico veterinário. Vem revestida de nuances que geram dúvidas e que podem ser facilmente associadas a outras patologias. A ligação entre veterinário e tutor assume-se crucial, assim como o compromisso de acompanhamento regular, essencialmente em pacientes geriátricos.

O aumento da esperança média de vida dos animais de companhia tem sido assinalável ao longo dos últimos anos. Estima-se que tenha aumentado 15% em 20 anos. E isso deve-se a múltiplos fatores, que passam essencialmente pelo progresso da medicina veterinária, fármacos e alimentação mais adequados, exames complementares mais acessíveis que resultam em melhores diagnósticos, aumento da medicina de prevenção e um maior conhecimento e preocupação por parte dos tutores relativamente à saúde dos seus animais.

 

Os pacientes geriátricos trazem desafios do ponto de vista clínico para a medicina veterinária, com a coexistência de patologias comuns nesta fase. Estes tendem a apresentar alterações de pelagem, da visão e da audição, dos padrões do sono e de vitalidade, da locomoção, bem como défices cognitivos e senilidade.

Um estudo recente levado a cabo pela Universidade de Washington, nos EUA, descobriu que o risco de disfunção cognitiva nos cães aumenta todos os anos após os 10 anos de vida, em mais de 50%. Publicada na Scientific Reports, esta investigação aponta ainda que o risco é quase 6,5 vezes maior em cães inativos em comparação com os altamente ativos. As estimativas anteriores das taxas de disfunção cognitiva em cães variam de 28% em cães de 11 a 12 anos a 68% em cães de 15 a 16 anos.

 

“Temos de ter em atenção que muitos problemas de saúde interligados com o avançar da idade podem perfeitamente mimetizar os comportamentos de animais com SDC”, por isso, torna-se fundamental “ter o parecer de um médico veterinário para averiguar se devem ser realizados exames complementares” – Mónica Roriz

A médica veterinária, diplomada pelas Escolas Nacionais Veterinárias Francesas em medicina do comportamento, Monica Roriz, descreve o envelhecimento como um processo de degenerescência do organismo, que decorre da natural passagem do tempo. “Quando partilhamos as nossas vidas com um gato e/ou cão temos a oportunidade de, quase sempre, os acompanhar desde a infância até à terceira idade. Estamos naturalmente à espera que venham a aparecer, aos poucos, sinais comuns próprios do avançar da idade. À semelhança dos humanos podem padecer de Alzheimer e alterações do sistema cognitivo. Esses sinais podem incluir défice de memória, perda de consciência espacial, interações sociais alteradas e distúrbios do sono − conhecida como Síndrome da Disfunção Cognitiva (SDC).”

 

Embora vários estudos de prevalência tenham identificado o SDC como um problema comum em cães idosos, um recente inquérito epidemiológico sugere que a doença foi severamente subdiagnosticada com até 85% dos animais potencialmente afetados a não serem identificados.

 

O compromisso de acompanhamento regular para diagnósticos assertivos

Para compreender melhor o SDC em cães envelhecidos, alguns investigadores desenvolveram ferramentas de avaliação que são capazes de distinguir os cães idosos com deficiências cognitivas daqueles que estão a experimentar um envelhecimento saudável. Na opinião da médica veterinária, este será sempre um primeiro passo a utilizar para avaliar scores sugestivos de SDC. “Temos de ter em atenção que muitos problemas de saúde interligados com o avançar da idade podem perfeitamente mimetizar os comportamentos de animais com SDC”, por isso, torna-se fundamental “ter o parecer de um médico veterinário para averiguar se devem ser realizados exames complementares”.

Os mecanismos do aparecimento da doença

“A cognição é um processo mental que engloba a perceção, o conhecimento, a aprendizagem, a memória e a tomada de decisões. A cognição permite que o animal receba informação do ambiente, que a processe, a retenha e decida como atuar”, explica a médica veterinária, reforçando que a fronteira entre o que é normal e patológico pode ser um desafio para tutores e médicos veterinários. Sabe-se que ainda há muito por descobrir nos mecanismos do aparecimento da doença, mas as causas conhecidas podem ser divididas em dois grandes grupos, indica Mónica Roriz: “os fatores endógenos e exógenos”:

  1. Fatores endógenos
  • Degeneração do SNC − Muito vulnerável aos danos oxidativos pelo seu alto consumo de oxigénio;
  • Maior produção de radicais livres − Os mecanismos de defesa antioxidantes que normalmente defendem os tecidos/células ficam sobrecarregados;
  • Perda da massa encefálica − Atrofia cortical generalizada, aumento do volume dos ventrículos, espessamento das meninges e atrofia das circunvoluções, com espessamento dos sulcos;
  • Acumulação de proteínas no cérebro que se designam de proteínas amiloide e tau − As placas amiloides ficam entre os neurônios e criam aglomerados densos de moléculas beta-amiloide. Os emaranhados neurofibrilares são encontrados no interior dos neurónios do cérebro, e são causados por proteínas Tau defeituosas que se aglomeram numa massa espessa e insolúvel, perturbando à posteriori o transporte de materiais essenciais, como nutrientes e organelas;
  • Envelhecimento membranar com neurotransmissão alterada – Sendo a transmissão dopaminérgica a primeira a ser afetada e responsável pela motricidade, cognição humor, vigilância, entre outros;
  • Hipoxia cerebral pela hipertensão comum nestas idades e o aumento dos radicais livres;
  • Predisposição sexual – Em estudos recentes, as fêmeas tiveram mais do dobro da probabilidade de desenvolverem SDC, tal como as mulheres no que respeita ao Alzheimer. As fêmeas constituem então um grupo de risco dentro da população de cães geriátricos. Isso pode sugerir a influência hormonal no processo de degenerescência cognitiva.
  1. Fatores exógenos
  • Diminuição da atividade/interações − Animais de serviço e de trabalho serão mais sensíveis, mas a falta de atividade e interação de estímulos poderá da mesma forma afetar cães e gatos de companhia;
  • Alterações/mudanças dos coabitantes, mas também do próprio habitat − A saída de casa de um ou vários membros do grupo familiar, a perda de um tutor ou de outro animal e a chegada de novos coabitantes;
  • Ansiedade e fobias crónicas, mas também uma má comunicação entre o animal de companhia e o seu tutor;
  • Dieta inapropriada − A maior predisposição em cães alimentados com dieta de fraca qualidade (2,8 vezes mais).

Como qualquer outra patologia quanto mais cedo for diagnosticada melhores serão os resultados e maior ajuda poderá ser dada a estes animais. “Não existindo tratamento, tal como nos humanos, teremos como objetivo atrasar o progresso da doença e aliviar os sintomas.”

A diplomada em comportamento animal, realça o elo que deve existir entre tutores e médicos veterinários, alertando para este compromisso, “que deve implicar consultas duas vezes por ano, no mínimo, mesmo que os indícios sejam de que está tudo bem”. Por outro lado, sugere também “um cuidado acrescido por parte dos médicos veterinários em questionarem, nessas consultas de rotina, a existência de alterações comportamentais”.  A utilização, por exemplo, dos questionários já existentes são uma ferramenta muito útil.

Mónica Roriz sugere “um cuidado acrescido por parte dos médicos veterinários em questionarem, nas consultas de rotina, a existência de alterações comportamentais”.  A utilização, por exemplo, dos questionários já existentes são uma ferramenta muito útil.

Falamos de um diagnóstico de exclusão. Apesar de todos os sinais do acrónimo DISHAA poderem estar presentes [ver caixa], muitas alterações físicas mimetizam as alterações comportamentais que podem ser associadas a SDC. “Se estiver perante um processo álgico, terei maior probabilidade de ter o meu cão/gato com inibição nos seus comportamentos, relutância a brincar, ficar preso em sítios por não se conseguir movimentar corretamente, estar mais agressivo e assustado pelo desconforto sentido e não querer ser incomodado.” Monica Roriz menciona um exercício que habitualmente sugere aos seus alunos para ajudar neste processo. “Peço-lhes que se lembrem da pior dor que tiveram e que preencham uma grelha de SDC em conformidade com os comportamentos que tiveram nessa altura. A probabilidade de terem um score elevado será muito grande. Se a isso acrescentarmos o fator crónico, aumentamos também a probabilidade de evolução dos comportamentos no tempo”, salienta. Contudo, a dor não é o único diagnóstico possível. “Animais com endocrinopatias, alterações cardíacas, urinárias, diminuição da visão, da audição e tumores, poderão ter um score elevado de SDC”, remata.

Abordagem terapêutica

A médica veterinária recomenda recomenda:

  • Medicar: Inibidor da M.A.O-B (Mono amino Oxidase B) que tem como efeitos o aumento da concentração plasmática de DOPA, efeito ansiolítico; efeito neuro protetor (atua sobre radicais livres); efeito psico estimulante (um dos metabolitos hepático é uma L- anfetamina); ação reguladora também  sobre cortisol
  • Estimulação social;
  • Manter rotinas;
  • Enriquecimento do meio − Feromonas apaziguadoras (gama Adaptil para cães e Feliway para gatos);
  • Alimentação – Dietas comercializadas de triglicerídeos de cadeia Media (Purina NC) vão fornecer uma fonte energética alternativa ao cérebro, reduzindo a inflamação e o stresse oxidativo, aumentando as funções cerebrais e a plasticidade sináptica; Tem um mecanismo importante do declínio dos mecanismos de cognição já que há diminuição da capacidade do cérebro a metabolizar a glicose;
  • Multiplicar recursos pela casa;
  • Não castigar;
  • Ambiente favorável ao animal.

 

DISHAA – O acrónimo sintomático

A síndrome de disfunção cognitiva é um processo degenerativo e, como tal, pode implicar um aparecimento dos sinais de uma forma lenta e progressiva. Alguns estudos recentes mostram a evolução rápida dos scores podendo duplicar os sinais em pouco tempo. De acordo com Mónica Roriz, estes sinais podem ser agrupados com o acrónimo DISHAA.

D – Desorientações, deambulações;

I – Interações sociais alteradas;

S – Alterações no ciclo do sono;

H – Higiene (perda de aprendizagens) / Hábitos;

A – Alimentação (alterações do padrão alimentar);

A – Ansiedade/Atividade.

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