Com o aumento da esperança média de vida – fruto da evolução da ciência, mas também de um maior cuidado por parte dos tutores – o número de animais geriátricos tende a crescer, colocando desafios de monta à medicina veterinária, ao mesmo tempo que catapulta a inovação no seu seio.
O animal idoso é o animal que, por definição, se encontra no seu último quarto de tempo médio de vida para a espécie e raça em questão. Estima-se que, atualmente, cerca de 50% dos animais de companhia, a nível mundial, sejam geriátricos.
De acordo com a médica veterinária diretora clínica do Grupo Veterinário Oliveiras (GVO), Raquel Vieira Fernandes, “o envelhecimento é um processo biológico natural e complexo com caraterísticas evolutivas e que leva ao declínio de órgãos e tecidos de forma progressiva e/ou irreversível. Este pode afetar a capacidade do organismo para manter vários processos metabólicos e aumentar a suscetibilidade a infeções”.
Assim sendo, os animais geriátricos tendem a apresentar alterações de pelagem, da visão e da audição, dos padrões do sono e de vitalidade, da locomoção, bem como défices cognitivos e senilidade, entre outros problemas, enumera a profissional, especificando que “os animais idosos são pacientes que apresentam inúmeras comorbilidades e uma coexistência de várias patologias, representando um enorme desafio do ponto de vista clínico para a medicina veterinária”.
  De acordo com Raquel Vieira Fernandes, “os animais geriátricos devem ser avaliados periodicamente e realizar um check up, por forma a efetuar-se um diagnóstico precoce e tratamento adequado das diferentes patologias que possam surgir”
Desafios na abordagem e na organização dos cuidados
Em declarações à VETERINÁRIA ATUAL, Raquel Vieira Fernandes, destaca que o aumento da esperança média de vida dos animais de companhia vem acrescentar enormes desafios à prática clínica dos médicos veterinários.
A este propósito, sublinha que “a equipa que acompanha estes animais deverá ser capaz, desde muito cedo, de sensibilizar os tutores para os sinais que muitas vezes estão conotados com a ‘normalidade’ do envelhecimento, por forma a identificar estádios iniciais de processos patológicos que, devidamente identificados, podem ser abordados e tratados, por forma a garantir o aumento da qualidade de vida”.
No entender da médica veterinária, “estes animais devem ser avaliados periodicamente e realizar um check up, por forma a efetuar-se um diagnóstico precoce e tratamento adequado das diferentes patologias que possam surgir”. A medicina veterinária deve ser capaz de responder a este desafio, “optando pelo caminho da especialização e inovação, procurando organizar-se em equipas multidisciplinares e infraestruturas capazes de prestar cuidados médico-veterinários de excelência”, acrescenta, justificando que “só assim podemos encarar o futuro e responder às necessidades dos nossos pacientes e suas famílias”.
Enfermeiro veterinário: Que papel na abordagem do paciente geriátrico?
“O enfermeiro veterinário que integra a equipa multidisciplinar responsável pelo acompanhamento dos pacientes geriátricos é uma figura absolutamente fundamental na abordagem e posterior tratamento dos mesmos”.
Quem o diz é a veterinária Raquel Vieira Fernandes, que destaca o papel fundamental deste profissional “quer seja em ambiente de consulta, na preparação para a cirurgia ou no internamento”, e a sua importância na abordagem e no tratamento dos pacientes geriátricos, “garantindo a sua correta avaliação e monitorização, garantindo que estão a ser cumpridas as necessidades nutricionais, bem como cuidados com o conforto durante a estadia destes animais, proporcionando-lhes o melhor ambiente físico, mental e social durante a sua permanência nas instalações do CAMV”.
Na opinião da especialista do GVO, este profissional é também “imprescindível” na comunicação, sensibilização e educação dos tutores dos pacientes geriátricos, “garantindo que estes entendam as recomendações efetuadas pelo veterinário. Grande parte das vezes são os enfermeiros veterinários que garantem que os tutores adquirem competências que lhes permitam executar alguns tratamentos em casa, sendo um importante elo de comunicação entre o médico veterinário e os tutores destes animais geriátricos”.
Patologias mais prevalentes à medida que a idade aumenta
Dependendo de se estamos a falar de cães ou de gatos, as doenças mais comuns em animais geriátricos variam, sendo essencialmente de caráter endócrino, motor e mental.
“É preciso, em primeiro lugar, descartar problemas físicos, na medida em que também existem alterações de comportamento associadas a doenças endócrinas, por exemplo. Feitos esses diagnósticos diferenciais e estando os parâmetros físicos todos normais, devemos pensar em disfunção cognitiva”, sublinha a enfermeira veterinária Filipa Vidal
As principais patologias que afetam cães-sénior são: osteoartite, doença periodontal, obesidade, insuficiência renal crónica (IRC), demência e disfunção cognitiva, surdez e cegueira, insuficiência cardíaca (IC), incontinência urinária, hipotiroidismo e os processos oncológicos. Já quando falamos de felinos, as doenças mais prevalentes com o aumento da idade são: ICR, osteoartrite, hipertiroidismo, IC, diabetes, hipertensão e problemas oncológicos.
Segundo Ângela Martins, médica veterinária fundadora do Hospital Veterinário da Arrábida (HVA), “a relação entre idade e problemas oncológicos não está completamente comprovada cientificamente, mas a verdade é que estes vão surgindo com o envelhecimento”, a par de “todo um conjunto de falhas suaves dos vários sistemas, que importa diagnosticar atempadamente”. No plano cardíaco, a também professora da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias destaca a atenção que é preciso ter relativamente a algumas raças/porte de cães. “Nos cães pequenos aparece mais frequentemente a IC congestiva por doença mixomatosa da válvula mitral (DMVM); já nos Dobermann, por exemplo, é maior a propensão para cardiomiopatia dilatada”, explica.
Nos pacientes veterinários geriátricos, qualidade de vida e esperança de vida são conceitos indissociáveis, defende a fundadora do HVA. “Um animal que não consegue andar vai ter dor, se tiver dor não come e não bebe água, o que pode levar a que vomite, desidrate e faça uma falha renal”, exemplifica, esclarecendo que “no idoso, não há só um problema, mas vários sistemas a falharem ao mesmo tempo, pelo que temos que ter muita atenção a todos os parâmetros nos checkups, entre os quais se destaca a nutrição”.
Alterações comportamentais associadas ao envelhecimento
Tal como nos humanos, nos animais também existem alterações comportamentais associadas ao envelhecimento. Os problemas de comportamento podem ser resultado das alterações de rotinas dos animais, por senilidade e disfunção cognitiva, ou estarem associados a patologias, tal como nos idosos humanos. Assim, “é fundamental diferenciar se estas alterações comportamentais se devem aos processos de envelhecimento normais ou se são decorrentes de patologias que surgem com muita frequência em animais idosos”, aponta Raquel Vieira Fernandes.
Uma recomendação partilhada pela enfermeira veterinária Filipa Vidal que, em declarações à VETERINÁRIA ATUAL, sublinha a elevada prevalência da síndrome de disfunção cognitiva em animais de companhia e o facto de não existir nenhum exame de diagnóstico específico. Posto isso, sugere: “É preciso, em primeiro lugar, descartar problemas físicos, na medida em que também existem alterações de comportamento associadas a doenças endócrinas, por exemplo. Feitos esses diagnósticos diferenciais e estando os parâmetros físicos todos normais, devemos pensar em disfunção cognitiva”.
Sedentarismo, alterações dos padrões de sono e de higiene, desenvolvimento de quadros por medo e ansiedade, depressão, irritabilidade, alterações da personalidade, memória e capacidade de aprendizagem são as principais manifestações desta síndrome.
Prevenção é chave para melhor qualidade de vida
Na ótica de Raquel Vieira Fernandes e tendo em conta a realidade do GVO, “os nossos pacientes geriátricos chegam cada vez mais pela mão de tutores melhor informados e que desejam para os seus animais cuidados médicos de excelência que garantam uma melhor qualidade de vida, aumento da vitalidade e interação com as famílias e uma crescente preocupação com o tratamento e controlo de processos de dor”.
Como tal, “são animais em que, fruto de uma enorme evolução na medicina veterinária preventiva e com os check ups que preconizamos no seu acompanhamento, têm as patologias diagnosticadas cada vez de uma forma mais precoce, o que nos permite também a instituição de terapêuticas mais adequadas e atempadamente”, realça a médica veterinária, que defende ainda a necessidade de “apostar na importância da sensibilização da comunidade médico-veterinária para um diagnóstico precoce, ação preventiva e na medicina baseada na evidência, por forma a garantir que não é só um aumento da esperança de vida, mas um real aumento da qualidade de vida para estes pacientes, respondendo assim às preocupações dos seus tutores e atuando com agentes da mudança nas vidas destes animais”.
“Enquanto as medidas preventivas e curativas permitem que os cães vivam até aos 14/15 anos, a medicina regenerativa faz com que vivam com qualidade de vida até aos 18/20 anos”, destaca Ângela Martins
De um modo geral, sustenta a médica, “os tutores apresentam uma crescente preocupação e procuram estar mais informados sobre as alterações relacionadas com o envelhecimento”. No entanto, “ainda existe alguma confusão e até mesmo alguma relativização dos sinais associados ao envelhecimento e são algumas as vezes em que os tutores nos referem ‘Dr.ª, o meu animal já não sobe para o sofá, está velhinho!’”.
Neste sentido, defende, “é absolutamente imprescindível que se forneça aos tutores toda a informação de que idade é apenas um número, não significa doença, e que é fundamental o diagnóstico das patologias que muitas vezes estão associadas a estas alterações de comportamento de modo a poder intervir, tratar estas patologias e melhorar a qualidade de vida destes animais, promovendo uma melhor saúde e uma vida mais feliz junto das suas famílias”.
FATORES QUE MAIS TÊM CONTRIBUÍDO PARA O AUMENTO DA ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA
“A esperança média de vida dos animais de companhia tem vindo a aumentar, fruto de uma melhoria das condições de alimentação e habitação destes animais, de uma redefinição do papel do animal na família e de uma enorme evolução na medicina veterinária. Ao longo dos últimos anos, temos assistido a um reforço da medicina preventiva e a evolução técnica sem precedentes, bem como a especialização dos médicos veterinários têm permitido o diagnóstico precoce e tratamento de muitas patologias, proporcionando a estes animais não só um aumento da esperança média de vida, mas um aumento da sua qualidade de vida, com diminuição da morbilidade e mortalidade”.
– Raquel Vieira Fernandes –
“Tudo o que são medidas de controlo da dor e da inflamação – como a radiofrequência ou o laser, no âmbito da neuro-reabilitação – têm um impacto inequívoco na melhoria da qualidade e da esperança média de vida dos animais. Outro fator que tem contribuído neste sentido é a identificação de biomarcadores que nos indicam se determinado animal vai ser um doente renal ou um doente cardíaco, permitindo-nos intervir antes das patologias se instalarem”.
– Ângela Martins –
“Sem dúvida que o cuidado mais atento por parte dos tutores e a evolução exponencial da ciência contribuíram, em muito, para o aumento da esperança média de vida de cães e gatos. Também a melhoria dos cuidados de saúde e de higiene, as vacinas e até a crescente preocupação com a socialização (intra e inter-espécies), a par de um acesso cada vez mais facilitado à medicina veterinária.
– Filipa Vidal –
Reabilitação: Várias técnicas para responder a diferentes necessidades
Na abordagem e posterior tratamento do paciente geriátrico, a reabilitação física reveste-se de enorme importância, uma vez que “permite tratar e controlar muitas patologias do foro ortopédico e neurológico, controlar a dor, reforçar a musculatura e fazer o enriquecimento cognitivo que é absolutamente imprescindível nestes pacientes”, sublinha Raquel Vieira Fernandes.
A este nível, “temos hoje à disposição diversas técnicas de reabilitação, desde a hidroterapia em underwaterthreadmill, acupuntura, radiofrequência, laser, massagem, entre muitos outras”, refere a médica do GVO, frisando que “estas técnicas podem ser utilizadas de forma isolada ou combinadas, otimizando os seus benefícios” e explicando que “a maioria dos pacientes geriátricos beneficia destas técnicas; cada paciente é um caso, porém, e os planos de reabilitação devem ser personalizados para que se otimizem os resultados”.
A reabilitação, nomeadamente a neuro-reabilitação, é particularmente útil no tratamento de problemas locomotores, provocados, por exemplo, pela compressão da medula por hérnias discais por protusão. Além destas mielopatias compressivas, outra situação particularmente premente nos animais idosos é a síndrome vestibular idiopática do geronte, à qual a neuro-reabilitação consegue responder de forma eficaz, segundo Ângela Martins. A este respeito, a professora descreve: “Quando um cão que já tem hérnias de protusão não consegue durante ter equilíbrio para dar dois ou três passos durante vários dias seguidos, a neuro-reabilitação tem um papel fundamental para evitar que o ‘filme de terror’ que é o animal ficar acamado. Um cão com mais de 20 kg acamado é o início de uma história de atrofias musculares, proeminências ósseas e úlceras”.
Enquanto a fisioterapia trabalha o sistema músculo-esquelético, “a reabilitação trabalha a razão/causa da doença desse sistema músculo-esquelético, habitualmente com componente neurológica”, esclarece a especialista do HVA. Como tal, “trabalhamos da sensibilidade até à dor profunda e trabalhamos reflexos, à base de treino locomotor, que consiste em fazer exercícios repetitivos e através de electroestimulações, ao nível dos nervos e da própria medula, ao longo da qual colocamos elétrodos”, adianta. “Também trabalhamos ao nível do crânio, no sentido de estimular os trajetos descendentes motores através de eletricidade. Como se fosse uma epidural, porque está comprovado por neurociência que os efeitos de uma transcutânea da medula espinal têm a ação de uma epidural e, portanto, conseguimos recuperar melhor e mais rapidamente estes pacientes”, explica a médica.
Regeneração: Um conceito de futuro
Além das medidas preventivas e curativas, as medidas regenerativas ganham cada vez mais terreno na prática da medicina veterinária – muito em particular no que ao paciente geriátrico diz respeito – acompanhadas por uma crescente evidência científica e clínica a suportá-las.
Tratamentos em câmara hiperbárica, terapêuticas com células estaminais ou plasma rico em plaquetas são exemplos de técnicas inovadoras de medicina regenerativa, que Ângela Martins tem vindo a desenvolver na sua prática, de há uns anos a esta parte.
“Em caso de mielopatia degenerativa, por exemplo, frequente em raças grandes, a reabilitação intensiva aliada ao tratamento com células estaminais colocadas na cisterna magna permite aumentar muito a sobrevivência com qualidade de vida. São cães que ficam regenerados, a fazer a sua vida normal”, relata a veterinária do HVA, adiantando que “enquanto que as medidas preventivas e curativas permitem que os cães vivam até aos 14/15 anos, a medicina regenerativa faz com que vivam com qualidade de vida até aos 18/20 anos”.
A par e passo com as medidas regenerativas, neste caminho rumo ao futuro, está o desenvolvimento dos cuidados paliativos animais, acredita a médica.
Planos e seguros de saúde ainda deixam geriátricos a descoberto
No plano da prevenção e do acompanhamento mais regular da saúde dos animais de companhia, “os planos e seguros de saúde desempenham um papel muito importante”, aponta a responsável clínica do GVO, justificando: “A almofada financeira que estes produtos oferecem aos tutores permite-lhes procurar para os seus animais cuidados médicos de excelência facilitando um diagnóstico precoce de muitas patologias, levando assim ao seu célere tratamento e controlo. Deste modo, podemos dizer que nos permitem identificar e tratar muitas patologias que teriam repercussões maiores na saúde futura destes animais”.
No entanto, ressalva, “os seguros de saúde, deixam um pouco a desejar no que toca aos animais idosos, pois tal como nos pacientes humanos, estes animais estão a maior parte das vezes excluídos destes produtos”. Como tal, sugere, “o seu papel na promoção de uma melhor qualidade de vida do animal idoso é claramente um aspeto que necessita ser melhorado por parte das empresas que comercializam estes produtos”.
O mesmo sucede com as técnicas de medicina regenerativa que, até há bem pouco tempo, eram, de acordo com Ângela Martins, vistas “como um luxo ou até como um ‘placebo’ pelas seguradoras”. Uma realidade que tem vindo a mudar, lentamente, assegura. “Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas hoje já há alguns tratamentos a serem comparticipados, desde que devidamente acompanhados pelo relatório médico e pela respetiva imagiologia”, congratula-se a médica do HVA.
(G)OLDDOG: PORQUE “ANIMAIS FELIZES, VIVEM MAIS”
Desde que começou a trabalhar como enfermeira veterinária que Filipa Vidal foi ganhando cada vez maior interesse pela área da geriatria. Como tal, tem procurado adquirir conhecimento neste domínio, através de formações variadas. O objetivo é vir a trabalhar mais diretamente com pacientes geriátricos.
Um passo dado nesta direção foi a recente criação do projeto (G)olddog (www.golddog.pt), desenvolvido a pensar no bem-estar e na qualidade de vida dos animais de companhia (maioritariamente dos cães).
Com o lema “Animais felizes, vivem mais”, Filipa Vidal propõe-se a ajudar os tutores na procura de soluções de readaptação às condições geriátricas do animal e estimular as mentes de cães e gatos através de exercícios de estimulação mental/desafios para os animais solucionarem, que visam prevenir a síndrome de disfunção cognitiva. “O equivalente ao sudoku nos humanos”, explica, em tom de brincadeira.