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ExoticMed Lisboa: Do sonho de duas crianças nasceu um CAMV especializado em animais exóticos

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Rita Chaves e Filipa Ribeiro idealizaram durante muitos anos uma clínica onde pudessem seguir animais que, frequentemente, provocam receios e fobias a largas fatias da população. Desenharam-na a régua e esquadro para receber de coelhos gigantes a hámsteres minúsculos, de nervosos periquitos a elegantes galinhas, sem esquecer, é claro, as esguias cobras e os vistosos lagartos. Passados três anos de portas abertas não podiam estar mais satisfeitas com o caminho percorrido. Dedicam-se também à formação de estagiários, à produção de ciência e desejam que a ExoticMed Lisboa possa ajudar a desconstruir alguns mitos que a sociedade ainda tem sobre os animais exóticos.

Há uma fatia da população que não lhes acha piada nenhuma. Esta é uma forma prosaica, e em certos casos um eufemismo para lá de muito simpático, de descrever o sentimento que algumas pessoas têm para com certos animais exóticos. E neste campo das fobias a bichos menos comuns, a medalha de ouro dos que geram mais antipatia é muito provável que vá parar ao pescoço dos répteis, com as cobras a serem, talvez, as rainhas desses medos e anseios. Aliás, já se encontrou uma categoria para elas nos anais da psicologia que categorizam as fobias: ofidiofobia. Era, precisamente, este o caso de uma cliente um pouco diferente que precisou dos serviços da ExoticMed Lisboa.

 

Rita Chaves conta à VETERINÁRIA ATUAL que ainda se viviam os tempos mais difíceis da pandemia por Covid-19 quando receberam o pedido de ajuda de um centro de psicologia e psicoterapia. “Nunca nos tinha passado pela cabeça algo assim, mas esse centro contactou-nos porque tinha uma jovem em seguimento a tratar a sua ofidiofobia e tinha chegado o momento de fazer a exposição ao animal. Como, na altura, o reptilário do Jardim Zoológico estava fechado, entraram em contacto com a clínica. Para nós, foi uma situação super interessante, correu muito bem e estamos sempre de portas abertas para estes casos em que podemos ajudar a desconstruir os medos associados aos animais exóticos”, lembra a médica veterinária.

Para Rita Chaves e Filipa Ribeiro foi, de facto, uma das situações mais inusitadas com que lidaram na vida profissional e, quem sabe, até pessoal já que ambas as médicas veterinárias estão, desde a infância, nos antípodas desta forma de olhar para os animais exóticos. Quaisquer que eles fossem, quanto mais invulgares, mais interesse despertavam nas jovens que são amigas desde criança. Filipa desde pequena que lidou com aves e lhes ganhou afeição. Fossem maiores, mais pequenas, de médio porte, de toda a espécie e feitio, as aves sempre ocuparam um lugar de destaque em casa da família. Já Rita assume que teve “um pouco de tudo, do cão à chinchila e, claro, répteis” e, por oposição à cliente inesperada que receberam na clínica, foram precisamente os répteis a ganhar o coração desta médica veterinária.

 

“Não sei se é uma coisa geracional, mas entre nós não é um problema. Temos de gerir bem o tutor, para que ele perceba que se trata de uma situação pontual, mas acho mesmo que a nossa geração [de médicos veterinários] tem uma grande facilidade de comunicação, até para pedir ajuda a especialistas internacionais para tratar um caso clínico em particular.” – Rita Chaves, diretora clínica da ExoticMed Lisboa

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O caso contado pela diretora clínica da ExoticMed Lisboa é paradigmático de um dos objetivos desta equipa pequena, mas com grande paixão pelos animais exóticos, quando decidiram dedicar-se a esta população específica: desconstruir os preconceitos da sociedade para com estes animais. “Até há bem pouco tempo a mascote da clínica era um dragão barbudo que vivia na nossa receção. Era um sucesso entre as crianças do bairro, que gostavam de o visitar, e ajudou-nos a sensibilizar a população nossa vizinha de que os répteis não são o bicho-papão que as pessoas pintam e não há razão para esse medo. Infelizmente, a Mushu faleceu há pouco tempo”, recorda, ainda com emoção.

 

Um sonho nascido na infância

A clínica médica veterinária ExoticMed Lisboa nasceu há já muitos anos, pelo menos na cabeça das suas sócias que estão à frente deste centro especializado.

 

Começou a ser desenhado ainda durante a infância, enquanto as jovens amigas partilhavam as aventuras com os seus animais de companhia, bem diferentes dos que existiam nos lares das outras famílias, e ganhou alicerces mais fortes durante o curso que frequentaram na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona. Ainda como alunas universitárias foram fazendo algum voluntariado em clínicas de áreas muito diferentes, enquanto desenhavam em papel aquilo que queriam desenvolver quando acabassem a formação graduada, o que aconteceu no ano letivo de 2018/2019.

“Terminado o curso estivemos algum tempo a fazer ambulatório de exóticos em vários locais, a ver como funcionava o mercado, e chegámos à conclusão que estávamos a trabalhar em clínicas onde, de facto, os nossos animais não se sentiam bem – os coelhos tinham medo dos barulhos, as aves ficavam muito transtornadas nas salas de espera – e percebemos que estava na altura de começar o nosso projeto”, conta Rita Chaves.

Andaram uns meses à procura de um espaço que preenchesse as características que consideravam importantes para assegurar o bem-estar dos animais que queriam seguir e encontraram um open space na freguesia de Carnide que lhes permitiu adaptar a estrutura interior às necessidades de um centro de atendimento medico veterinário (CAMV) especializado nestes animais de companhia.

Questões legais tratadas, precisamente quando as obras estavam a iniciar-se, o País fecha: era o primeiro confinamento ditado pela pandemia por Covid-19.

À angústia de quem está a iniciar um projeto novo por conta própria juntou-se a incerteza dos dias que o mundo vivia no início de 2020. Ainda assim, recorda a diretora clínica, “tínhamos o processo a decorrer, era um sonho que já tínhamos há tantos anos, que mais valia lançarmo-nos de cabeça do que voltar atrás”.

E havia algo que lhes trouxesse tranquilidade naqueles dias?

“Absolutamente nada. Só pensávamos que quem tinha coelhos, tartarugas ou papagaios não os iria abandonar”, conta Rita Chaves, explicando o motivo para terem decidido não fazer uma pausa no projeto e esperar para ver como seria o andamento da pandemia.

Mantido o plano inicial, prosseguiram com a empreitada, e no final de 2020 abriram as portas da ExoticMed Lisboa – Clínica Veterinária de Aves e Exóticos.

“Temos de adaptar tudo aos nossos pacientes. Não temos tubos endotraqueais para lagartos ou hámsteres de 30 gramas, mas nós precisamos de os operar na mesma e, por isso, andamos sempre a inventar soluções e estas condicionantes nunca nos impediram até hoje de fazer o nosso trabalho” – Rita Chaves, diretora clínica da ExoticMed Lisboa

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Com as obras conseguiram adaptar um espaço que estava em branco às necessidades dos pacientes. Por exemplo, tem uma entrada onde a sala de espera permite o distanciamento entre os clientes e onde há avisos para os tutores não aproximarem os animais uns dos outros, pois que estamos a falar de predadores e presas que, obviamente, se sentem desconfortáveis na presença uns dos outros.

Essa atenção na proteção da individualidade de cada espécie foi também tida em conta no espaço de recobro, onde existe uma separação “entre répteis e mamíferos, já que o odor dos mamíferos estimula muito os répteis e provoca comportamentos predatórios”, explica a diretora clínica. O mesmo acontece com as aves, que têm um espaço isolado, pois os gritos dos papagaios ou a chilreada de periquitos podem assustar os mamíferos, nomeadamente os sensíveis coelhos e os assustadiços porquinhos-da-índia.

Os dois gabinetes de consulta também foram pensados ao pormenor. Nada de móveis muito altos, para onde as aves poderiam voar e ficar fora do alcance das médicas e tutores, e nada de decoração atrás da qual hámsteres, ouriços ou cobras se pudessem esconder. Nas palavras de Rita Chaves, são dois espaços “pequenos e muito minimalistas” para facilitar o maneio. Também para ajudar no momento da consulta de aves e répteis, os consultórios têm luz natural, já que “as luzes florescentes afetam muito a visão destas espécies e são causadoras de altos níveis de stress”, acrescenta.

Com estas características conseguiram que a visita destes pacientes à clínica fosse mais tranquila e provocasse menos ansiedade tanto aos tutores, como aos animais. A lista de clientes é composta “maioritariamente por coelhos, o mamífero com maior representação, e aves de todos os portes”, diz Rita Chaves, como a estilosa, altiva, “mas muito simpática” Alícia, “uma galinha que vive com a tutora num apartamento desde que era pintainho”. Com menos representação seguem-se os roedores – porquinhos-da-índia, hámsteres e ratazanas – e os répteis, entre os quais a tartaruga está em grande destaque, seguida dos lagartos e das cobras. Depois existem os incomuns entre os já pouco comuns animais de companhia, como os anfíbios e os peixes e os ainda mais raros escorpiões e tarântulas.

As duas médicas veterinárias são as únicas pessoas da equipa e dividem o tempo entre as cirurgias, que habitualmente realizam durante as manhãs, e as consultas que acontecem por marcação, às quais dedicam os períodos da tarde. “Temos também as consultas ao domicílio, que tem sido um mercado interessante, e temos o on call para as urgências 24 horas por dia”.

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As urgências têm sido um desafio para as médicas, reconhece a diretora clínica, porque “em Lisboa não há muitos locais com urgências para animais exóticos fora do horário normal, o que coloca uma grande pressão em nós as duas e, reconheço: não temos mãos a medir e não conseguimos atender todos”.

Veterinários de exóticos: uma pequena família

Quando o caso clínico exige uma avaliação imagiológica ou é necessário um período de internamento do animal, a equipa não tem pejo em referenciar para estruturas com essas respostas, nas quais confiam e conhecem o trabalho.

E como CAMV especializado em animais exóticos, Rita e Filipa são também muitas vezes procuradas por colegas que lhes referenciam casos para uma segunda opinião ou para uma cirurgia. “Acontece cada vez com mais frequência. Recebemos o animal, fazemos o que o colega nos pede e, depois de terminarmos, reencaminhamos de novo para o médico que o referenciou”, conta Rita Chaves, para quem a referenciação entre médicos veterinários não é, de todo, um assunto tabu. “Não sei se é uma coisa geracional, mas entre nós não é um problema. Temos de gerir bem o tutor, para que ele perceba que se trata de uma situação pontual, mas acho mesmo que a nossa geração [de médicos veterinários] tem uma grande facilidade de comunicação, até para pedir ajuda a especialistas internacionais [ver caixa] para tratar um caso clínico em particular”, acrescenta a diretora clínica.

Médica veterinária Filipa Ribeiro | Direitos Reservados

Do estrangeiro têm também chegado alguns pedidos de estágios no CAMV que está sempre disponível para acolher os alunos universitários que querem experimentar um centro especializado em animais exóticos. “Uns tentam perceber se é uma área de que gostam, outros já sabem que querem fazer exóticos no futuro e querem vir aprender mais sobre estes animais de companhia. Tipicamente, se ainda não têm a decisão tomada, facilmente percebem que o seu caminho não é por aqui”, reconhece Rita Chaves.

O que a médica veterinária nota é que tem crescido o interesse por estes animais de companhia entre os alunos universitários, muito mais do que o que existia no tempo em que as amigas e sócias frequentavam a faculdade. Referem que já existem grupos de interesse nas faculdades de medicina veterinária e as formações começam a abordar, cada vez mais, as especificidades destes animais menos comuns nos lares das famílias. Na altura em que frequentaram o ensino universitário, diz Rita Chaves, “tivemos muito pouco, ou quase nada” de formação sobre animais exóticos o que as obrigou a procurar formações especializadas e a contar com a rede de contactos nacional e internacional dos profissionais veterinários que se dedicam à medicina de exóticos para esclarecer dúvidas e debater casos clínicos. Uma verdadeira “safety net, pequena, mas muito unida, que é uma família que está sempre em contacto”, assegura.

Tutores continuam a ser um desafio

É certo que uma população de animais tão diferentes entre eles e tão diferentes dos que mais comummente estão habituados aos lares humanos levanta desafios a quem decide dedicar a vida a cuidar deles. Mas se os dentes arreganhados de um cão ou as unhas afiadas de um gato conseguem fazer bastantes estragos durante a visita ao médico veterinário, os exóticos trazem com eles todo um manancial de características que requerem conhecimento, engenho e alguma criatividade.

A começar pelo maneio e contenção. Se os coelhos gigantes já podem ser considerados de um porte considerável pelo peso que atingem, os hámsteres são mais pequenos e leves, mas com uma personalidade mais irritadiça que os leva a morder “e muito”. Por vezes, os animais são tão pequenos que as limitações clínicas exigem aos médicos veterinários características de MacGyver, o herói da série televisiva da década de 1980 capaz de encontrar soluções fora da caixa para quase todas as situações. “Temos de adaptar tudo aos nossos pacientes. Não temos tubos endotraqueais para lagartos ou hámsteres de 30 gramas, mas nós precisamos de os operar na mesma e, por isso, andamos sempre a inventar soluções e estas condicionantes nunca nos impediram até hoje de fazer o nosso trabalho”, diz Rita Chaves. Por exemplo, os consumíveis cirúrgicos para esta população são os usados na oftalmologia de cães e gatos e a recolha de sangue fez-se a muito custo, sobretudo em canários de 15 gramas ou hámsteres de 30 gramas.

Outro desafio que acompanha os animais exóticos são os tutores. Cuidar de um animal de companhia exige conhecimento e adaptabilidade às características do animal, mas, no caso dos exóticos, o desconhecimento costuma ser maior. A diretora clínica da ExoticMed Lisboa garante mesmo que uma parte do paciente réptil ou ave “vem até nós, precisamente, em consequência do maneio incorreto por parte dos tutores, por falta de conhecimento, de pesquisa e das informações que são dadas nas lojas de animais aquando da compra do animal”. Aliás, acrescenta, “no caso dos exóticos, alguns vivem anos e anos em situações que até poderiam ser consideradas de maus-tratos, mas acontecem apenas por desconhecimento do tutor”.

Este é o motivo pelo qual a primeira consulta neste CAMV é sempre mais demorada, já que é feita uma revisão completa do animal e das necessidades da espécie em causa, do estilo de vida, das doenças e dos sinais de alarme a que estar atento, sempre com o “foco na prevenção”.

Com a coincidência de ter falado com a VETERINÁRIA ATUAL precisamente quando O CAMV estava a comemorar três anos de existência, fazia todo o sentido fazer um balanço do caminho percorrido. “As coisas têm corrido muito bem”, garante a diretora clínica. Houve uma fase de crescimento muito acentuada, agora o período é de maior estabilidade e consolidação da atividade o que leva as sócias a pensarem em alargar a equipa com enfermeiros e mais um médico veterinário.

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Os olhos estão postos no futuro e as necessidades que veem no terreno, sobretudo ao nível da urgência veterinária para animais exóticos levam as médicas veterinárias a projetar, a longo prazo, a transformação da clínica em hospital veterinário para que nenhum exótico fique sem resposta num momento mais difícil.

Um CAMV também é um lugar para fazer ciência

A evidência científica no ramo da medicina veterinária de exóticos é uma área ainda carente. É certo que existem estudos publicados, protocolos desenhados e os profissionais “não estão a trabalhar totalmente às cegas”, garante Rita Chaves, muito embora reconheça que, por vezes, para um único caso é preciso realizar muitas horas de pesquisa e muitos contactos com colegas para encontrar a solução mais adequada.

Por isso, fazer ciência é quase um imperativo para quem se dedica a estes animais de companhia, no sentido de aumentar o conhecimento da comunidade.

E é precisamente isso que Rita e Filipa pretendem com o trabalho que estão a realizar no campo da oncologia, especialmente em roedores. “Com a ajuda de oncologistas e de uma colega russa que trabalha com exóticos temos feito um trabalho interessante com quimioterapia em ratazanas, que têm muitos casos de cancro, e temos tido resultados interessantes”, com regressões quase completas dos tumores, com o recurso à cirurgia quando possível e com a utilização de quimioterapia paliativa para aumentar a qualidade de vida do animal.

*Artigo publicado na edição 177, de dezembro, da VETERINÁRIA ATUAL

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