Entre 8 e 10 de março, a Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa recebeu mais uma edição das Jornadas Médico-Veterinárias. Este ano, o programa do encontro teve como tema principal a medicina interna em animais de companhia, em novos animais de companhia, equinos e animais de produção, mas houve também oportunidade para abordar temáticas fora do contexto clínico, nomeadamente o crescente interesse pela especialização da profissão. Mónica Augusto, Francesca del Baldo e Marisa Lourenço deram o testemunho da dedicação e esforço que são necessários no percurso para obter a especialidade dentro da medicina veterinária.
O que significa em termos emocionais, laborais e familiares fazer uma especialização no ramo da medicina veterinária? Este foi o ponto de partida do debate “O Futuro da Medicina interna” que encerrou o primeiro dia das XLVII Jornadas Médico-Veterinárias, organizadas em conjunto pela Faculdade de Medicina Veterinária (FMV) da Universidade de Lisboa, pelo Hospital Escolar Veterinário e pela Associação de Estudantes da FMV.
  “Há uns anos não havia tanta gente interessada em fazer uma especialização” – Marisa Lourenço
Moderado por Rodolfo Oliveira Leal, ele próprio especialista europeu em medicina interna de animais de companhia graduado pelo European College of Veterinary Internal Medicine (ECVIM) e professor na FMV, o momento juntou três médicas veterinárias especialistas com um percurso reconhecido nacional e internacionalmente. Contudo, o prestígio que, neste momento, cada uma delas tem na área de diferenciação a que se dedicou consegue ofuscar o caminho longo, exigente e, na maioria das vezes, solitário que tiveram de percorrer até chegar a este patamar de reconhecimento. Esse foi o ponto comum nos testemunhos de Mónica Augusto e Francesca del Baldo, ambas especialistas em medicina interna de animais de companhia pelo ECVIM, e de Marisa Lourenço que decidiu atravessar o Atlântico para cursar a residência em medicina de emergência pelo American College of Veterinary Emergency Critical Care (ACVECC).
Mónica Augusto, que concluiu a formação em medicina veterinária na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) em 2001, lembrou que, nessa altura, “o número de pessoas que queriam especializar-se em medicina veterinária era mesmo baixo. Apenas as pessoas mais esquisitas iam para o estrangeiro [fazer as residências]”, comentou com graça, uma visão partilhada com Marisa Lourenço: “Há uns anos não havia tanta gente interessada em fazer uma especialização”.
Ambas notam que o interesse por uma maior diferenciação dentro da profissão tem vindo a crescer entre quem entra nas faculdades de medicina veterinária, mas a especialista pelo colégio americano crê que “não se fala muito do sacrifício” necessário para alcançar o objetivo da especialização.
Para os médicos veterinários portugueses que pretendem diferenciar-se com a especialização de um dos colégios europeus ou dos americanos, como foi o caso de Marisa Lourenço, não resta outra alternativa a não ser emigrar. Estar longe de família e amigos, fora do ambiente que conhecem, num país onde não têm rede de suporte e onde, muitas vezes, não conhecem ninguém são fatores aos quais se juntam a exigência de uma especialização numa área do saber que requer muito estudo teórico e extensa prática clínica. Em suma, o que o trio de intervenientes reconheceu ser uma vida de muito trabalho e poucas horas de descanso.
Mesmo para Francesca del Baldo, que conseguiu fazer a especialização no país natal, Itália, e na faculdade que a formou enquanto médica veterinária e onde continua a lecionar, em Bolonha, o caminho para a especialização que a fez destacar-se no campo da diabetes mellitus em animais de companhia acarretou empenho e dedicação, com longas horas reservadas ao estudo e investigação, a par do tempo dedicado à prática clínica. “Estava em Itália, era o meu país, estava perto da minha família, admito que fez diferença”, reconheceu, mas também contou como a especialização é um caminho exigente que dura até aos dias de hoje, em que a investigação ocupa o espaço da grande maioria das noites e dos fins-de-semana. “Só o consigo fazer porque estou muito motivada e, eventualmente, nem todos os estudantes estão dispostos a este sacrifício. Depende, realmente, da motivação [de cada um]”, acrescentou.
Motivação foi também um dos termos usados por Marisa Lourenço quando questionada por Rodolfo Oliveira Leal sobre se, em algum momento da especialização nos Estados Unidos da América, tinha pensado desistir. “Não, porque já tinha sacrificado muito da minha vida para desistir. É preciso ter ambição, motivação, resiliência e mantermo-nos focados no objetivo final. Quando conseguimos uma residência já percorremos um longo caminho e é uma pena desistir”, contou.
Inteligência Artificial: queiramos ou não, ela já chegou
Se perante a exigência das especializações as três oradoras partilhavam a mesma visão, em matéria de avanços tecnológicos as perspetivas divergiram. Contudo, apesar das diferenças de opinião entre as intervenientes no debate, não há escapatória: a Inteligência Artificial chegou e a medicina veterinária não ficará imune às alterações que as novas ferramentas tecnológicas trarão à vida individual e coletiva.
“Só o consigo fazer porque estou muito motivada e, eventualmente, nem todos os estudantes estão dispostos a este sacrifício. Depende, realmente, da motivação [de cada um]” – Francesca del Baldo
Quem pareceu estar mais reticente sobre o que a Inteligência Artificial trará para a prática clínica foi Marisa Lourenço, atualmente consultora em medicina de emergência no Blaise Referral Hospital, em Birmingham. “Na realidade, não gosto de máquinas”, reconheceu a médica veterinária. Contou que, nos Estados Unidos da América, houve um momento durante a residência que se discutiu a possibilidade de usar um programa de Inteligência Artificial para ajudar a interpretar os exames radiológicos no serviço de urgência, algo que a especialista não viu com bons olhos. Admitindo que ainda é muito fã “do uso do papel”, Marisa Lourenço considera que o uso da Inteligência Artificial poderá “tornar as pessoas preguiçosas e não as estimulará a superarem-se”. “Nós devemos ser capazes de interpretar um raio X numa sala de emergência”, declarou.
Já Francesca del Baldo acredita que as novas ferramentas tecnológicas poderão ajudar em determinados momentos, nomeadamente “a acelerar o trabalho de interpretação no diagnóstico de imagem” e no campo da medicina interna podem vir a ser úteis aos médicos generalistas a lidar com diagnósticos mais desafiantes, como por exemplo o hipotiroidismo, fácil de diagnosticar para um especialista, mas mais complicado para um médico generalista. Ainda assim, a médica veterinária italiana está convicta de que a Inteligência Artificial “certamente não substituirá um especialista”.
“Discordo, não penso que os médicos generalistas possam ser os melhores utilizadores da Inteligência Artificial”, declarou Mónica Augusto, neste momento a lecionar na universidade de Dublin. Segundo a visão desta especialista europeia, os médicos veterinários generalistas podem ter maiores dificuldades em interpretar sintomas, o que terá impacto na informação que depois colocam nos programas de Inteligência Artificial e, consequentemente, na interpretação das conclusões apresentadas. “Os resultados apresentados podem não ser a preto e branco e um médico generalista pode perder a subtileza que, por vezes, as respostas têm e podem existir perigos da não utilização dos resultados da forma correta”, explicou, acrescentando que “um [médico veterinário] especialista saberá interpretar melhor os resultados e perceber se eles se encaixam ou não na história e na apresentação do doente”. Por esse motivo, Mónica Augusto declarou: “Tenho mais reticências na utilização da Inteligência Artificial por [médicos veterinários] generalistas do que por médicos veterinários especialistas”.
De qualquer forma, o que é claro para Mónica Augusto é que “gostemos ou não, concordemos ou não que ela poderá ser um substituto do nosso trabalho, a Inteligência Artificial chegará. Teremos de ser inteligentes na forma como a vamos usar e que a poderá tornar benéfica”. E, sublinhou, “não adianta dizermos que, enquanto médicos veterinários, não a usaremos porque chegará um momento em que isso acontecerá, mas teremos de ver como a programaremos, como usaremos os resultados e ser inteligentes na forma como a utilizamos. Queiramos ou não será o futuro”.
Medicina veterinária e medicina humana: onde se ligam, onde se apartam?
“Mas, os cães também tossem?”
Pelo que se ouviu no debate, não são raras as vezes que os médicos veterinários ouvem esta pergunta, ou outras semelhantes, por parte dos profissionais de medicina humana. Sendo ambos profissionais de saúde, cada vez mais integrados no conceito de Uma Só Saúde, o certo é que ainda há algumas diferenças entre estes dois ramos do conhecimento em saúde, apesar do caminho já percorrido pela medicina veterinária.
“Gostemos ou não, concordemos ou não que ela poderá ser um substituto do nosso trabalho, a Inteligência Artificial chegará. Teremos é de ser inteligentes na forma como a vamos usar e que a poderá tornar benéfica” – Mónica Augusto
A questão que exemplifica este distanciamento foi ouvida por Marisa Lourenço entre membros das suas relações pessoais e profissionais que se dedicam à medicina humana e dá nota do desconhecimento que ainda persiste entre estes sobre o trabalho realizado pelos médicos veterinários. Ainda assim, assegurou a especialista pelo colégio americano, “nunca me senti diminuída” em termos de conhecimento e valorização do trabalho realizado. Não obstante, Marisa Lourenço reconhece que, na medicina veterinária, “ainda estamos extremamente longe do que já é feito na medicina humana, sobretudo pelas nossas limitações financeiras”, mas assegurou a oradora: “Somos fantásticos em termos de diagnóstico e tratamento, tendo em conta as limitações que temos”.
Esta visão é partilhada com Mónica Augusto, que considera que ambos os profissionais médicos “não estão muito longe [em termos de conhecimento], embora, por vezes, pareça que eles assim o pensem”. Na perspetiva da especialista europeia em medicina interna, “o nosso conhecimento das condições e patologias é muito bom e a forma como abordamos os casos não é muito diferente do que se faz na medicina humana”, o que existem são, sobretudo, “limitações ao nível de procedimentos devido aos custos. O dinheiro que podemos gastar é uma limitação no que podemos fazer, não porque não tenhamos conhecimento de como o fazer”, mas porque os tutores não podem despender o valor dos custos das terapêuticas.
A oncologia, área de interesse de Mónica Augusto, é um exemplo de como o conhecimento veterinário das várias patologias tem aumentado enormemente nos últimos anos, mas, comparativamente com o que já é realizado em termos de tratamentos oncológicos e procedimentos cirúrgicos na medicina humana, a medicina veterinária ainda está longe das abordagens realizadas no tratamento de doentes humanos devido às limitações que existem do ponto de vista financeiro dos tutores.
Não obstante, Mónica Augusto tem a perceção de que os profissionais de medicina humana ainda olham para os médicos veterinários “como médicos inferiores e ficam espantados por cães e gatos terem determinadas doenças”, mas declarou de forma perentória: “Nós somos, definitivamente, melhor do que pensamos”.
O que parece ser vantajoso é a colaboração entre as duas áreas do saber, saúde humana e animal, tanto no que diz respeito ao conhecimento das patologias, como ao desenvolvimento de novas terapêuticas. Francesca del Baldo deu o exemplo do trabalho desenvolvido na Universidade de Bolonha na área da diabetes mellitus, no qual há uma colaboração estreita entre a medicina humana e a medicina veterinária “que pode ser muito profícua em termos de respostas para os dois mundos”. E assegurou aos presentes: “Somos tão bons como eles [médicos de medicina humana”.
Seguros: a resposta para problemas financeiros dos tutores?
A questão dos valores dos atos médicos em medicina veterinária é problemática em Portugal, mas também noutras partes do globo. Contudo, é nos países em que existe um serviço público de saúde humana que mais se fazem sentir as queixas dos tutores relativamente aos preçários dos centros de atendimento médico veterinário. A explicação, na opinião de Mónica Augusto, reside no facto de, em países como Portugal ou Reino Unido, as pessoas “não estarem habituadas a pagar pelos cuidados de saúde. Têm o SNS [Serviço Nacional de Saúde] e o NHS que pode não ser o melhor ou o mais rápido, mas assegura sempre o tratamento”.
Tendo trabalhado no Reino Unido e estando agora na Irlanda, Mónica Augusto tem uma perspetiva de como esta matéria dos custos está a ser tratada em ambos os países. Se no Reino Unido o mercado dos seguros de saúde animal já está muito implantado, cerca de 80% dos tutores fez seguro de saúde ao seu animal de companhia, na república vizinha essa percentagem não ultrapassa os 40%. O que poderá ser “um problema serão os plafonds”, apontou Mónica Augusto, já que estes impõem limites a despesas que, eventualmente, deixam de fora alguns dos atos médicos mais dispendiosos colocando, desta forma, entraves às despesas médicas dos animais de companhia.
Em Itália, referiu Francesca del Baldo, o mercado dos seguros de saúde animal é incipiente, mas está “em crescendo” e na perspetiva da especialista europeia poderá fazer a diferença em matéria de pagamento dos cuidados médico-veterinários.
Já do outro lado do Atlântico o cenário é completamente diferente. Como não existe um serviço público de saúde, os utentes estão habituados a pagar pelos atos médicos e, no caso dos animais de companhia, Marisa Lourenço referiu que o recurso ao cartão de crédito é o mais usual nos Estados Unidos da América, sendo o mercado dos seguros de saúde mais aplicável à medicina humana.
Agora a trabalhar no Reino Unido, a especialista em medicina de emergência rematou, no entanto, que independentemente da existência de seguros de saúde animal e do cartão de crédito, “o mais importante é o amor [dos tutores pelo animal de companhia] porque quando há amor as pessoas conseguem encontrar uma solução”.
O que significa em termos emocionais, laborais e familiares fazer uma especialização no ramo da medicina veterinária? Este foi o ponto de partida do debate “O Futuro da Medicina interna” que encerrou o primeiro dia das XLVII Jornadas Médico-Veterinárias, organizadas em conjunto pela Faculdade de Medicina Veterinária (FMV) da Universidade de Lisboa, pelo Hospital Escolar Veterinário e pela Associação de Estudantes da FMV.
Moderado por Rodolfo Oliveira Leal, ele próprio especialista europeu em medicina interna de animais de companhia graduado pelo European College of Veterinary Internal Medicine (ECVIM) e professor na FMV, o momento juntou três médicas veterinárias especialistas com um percurso reconhecido nacional e internacionalmente. Contudo, o prestígio que, neste momento, cada uma delas tem na área de diferenciação a que se dedicou consegue ofuscar o caminho longo, exigente e, na maioria das vezes, solitário que tiveram de percorrer até chegar a este patamar de reconhecimento. Esse foi o ponto comum nos testemunhos de Mónica Augusto e Francesca del Baldo, ambas especialistas em medicina interna de animais de companhia pelo ECVIM, e de Marisa Lourenço que decidiu atravessar o Atlântico para cursar a residência em medicina de emergência pelo American College of Veterinary Emergency Critical Care (ACVECC).
Mónica Augusto, que concluiu a formação em medicina veterinária na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) em 2001, lembrou que, nessa altura, “o número de pessoas que queriam especializar-se em medicina veterinária era mesmo baixo. Apenas as pessoas mais esquisitas iam para o estrangeiro [fazer as residências]”, comentou com graça, uma visão partilhada com Marisa Lourenço: “Há uns anos não havia tanta gente interessada em fazer uma especialização”.
Ambas notam que o interesse por uma maior diferenciação dentro da profissão tem vindo a crescer entre quem entra nas faculdades de medicina veterinária, mas a especialista pelo colégio americano crê que “não se fala muito do sacrifício” necessário para alcançar o objetivo da especialização.
Para os médicos veterinários portugueses que pretendem diferenciar-se com a especialização de um dos colégios europeus ou dos americanos, como foi o caso de Marisa Lourenço, não resta outra alternativa a não ser emigrar. Estar longe de família e amigos, fora do ambiente que conhecem, num país onde não têm rede de suporte e onde, muitas vezes, não conhecem ninguém são fatores aos quais se juntam a exigência de uma especialização numa área do saber que requer muito estudo teórico e extensa prática clínica. Em suma, o que o trio de intervenientes reconheceu ser uma vida de muito trabalho e poucas horas de descanso.
Mesmo para Francesca del Baldo, que conseguiu fazer a especialização no país natal, Itália, e na faculdade que a formou enquanto médica veterinária e onde continua a lecionar, em Bolonha, o caminho para a especialização que a fez destacar-se no campo da diabetes mellitus em animais de companhia acarretou empenho e dedicação, com longas horas reservadas ao estudo e investigação, a par do tempo dedicado à prática clínica. “Estava em Itália, era o meu país, estava perto da minha família, admito que fez diferença”, reconheceu, mas também contou como a especialização é um caminho exigente que dura até aos dias de hoje, em que a investigação ocupa o espaço da grande maioria das noites e dos fins-de-semana. “Só o consigo fazer porque estou muito motivada e, eventualmente, nem todos os estudantes estão dispostos a este sacrifício. Depende, realmente, da motivação [de cada um]”, acrescentou.
Motivação foi também um dos termos usados por Marisa Lourenço quando questionada por Rodolfo Oliveira Leal sobre se, em algum momento da especialização nos Estados Unidos da América, tinha pensado desistir. “Não, porque já tinha sacrificado muito da minha vida para desistir. É preciso ter ambição, motivação, resiliência e mantermo-nos focados no objetivo final. Quando conseguimos uma residência já percorremos um longo caminho e é uma pena desistir”, contou.
Inteligência Artificial: queiramos ou não, ela já chegou
Se perante a exigência das especializações as três oradoras partilhavam a mesma visão, em matéria de avanços tecnológicos as perspetivas divergiram. Contudo, apesar das diferenças de opinião entre as intervenientes no debate, não há escapatória: a Inteligência Artificial chegou e a medicina veterinária não ficará imune às alterações que as novas ferramentas tecnológicas trarão à vida individual e coletiva.
Quem pareceu estar mais reticente sobre o que a Inteligência Artificial trará para a prática clínica foi Marisa Lourenço, atualmente consultora em medicina de emergência no Blaise Referral Hospital, em Birmingham. “Na realidade, não gosto de máquinas”, reconheceu a médica veterinária. Contou que, nos Estados Unidos da América, houve um momento durante a residência que se discutiu a possibilidade de usar um programa de Inteligência Artificial para ajudar a interpretar os exames radiológicos no serviço de urgência, algo que a especialista não viu com bons olhos. Admitindo que ainda é muito fã “do uso do papel”, Marisa Lourenço considera que o uso da Inteligência Artificial poderá “tornar as pessoas preguiçosas e não as estimulará a superarem-se”. “Nós devemos ser capazes de interpretar um raio X numa sala de emergência”, declarou.
Já Francesca del Baldo acredita que as novas ferramentas tecnológicas poderão ajudar em determinados momentos, nomeadamente “a acelerar o trabalho de interpretação no diagnóstico de imagem” e no campo da medicina interna podem vir a ser úteis aos médicos generalistas a lidar com diagnósticos mais desafiantes, como por exemplo o hipotiroidismo, fácil de diagnosticar para um especialista, mas mais complicado para um médico generalista. Ainda assim, a médica veterinária italiana está convicta de que a Inteligência Artificial “certamente não substituirá um especialista”.
“Discordo, não penso que os médicos generalistas possam ser os melhores utilizadores da Inteligência Artificial”, declarou Mónica Augusto, neste momento a lecionar na universidade de Dublin. Segundo a visão desta especialista europeia, os médicos veterinários generalistas podem ter maiores dificuldades em interpretar sintomas, o que terá impacto na informação que depois colocam nos programas de Inteligência Artificial e, consequentemente, na interpretação das conclusões apresentadas. “Os resultados apresentados podem não ser a preto e branco e um médico generalista pode perder a subtileza que, por vezes, as respostas têm e podem existir perigos da não utilização dos resultados da forma correta”, explicou, acrescentando que “um [médico veterinário] especialista saberá interpretar melhor os resultados e perceber se eles se encaixam ou não na história e na apresentação do doente”. Por esse motivo, Mónica Augusto declarou: “Tenho mais reticências na utilização da Inteligência Artificial por [médicos veterinários] generalistas do que por médicos veterinários especialistas”.
De qualquer forma, o que é claro para Mónica Augusto é que “gostemos ou não, concordemos ou não que ela poderá ser um substituto do nosso trabalho, a Inteligência Artificial chegará. Teremos de ser inteligentes na forma como a vamos usar e que a poderá tornar benéfica”. E, sublinhou, “não adianta dizermos que, enquanto médicos veterinários, não a usaremos porque chegará um momento em que isso acontecerá, mas teremos de ver como a programaremos, como usaremos os resultados e ser inteligentes na forma como a utilizamos. Queiramos ou não será o futuro”.
Medicina veterinária e medicina humana: onde se ligam, onde se apartam?
“Mas, os cães também tossem?”
Pelo que se ouviu no debate, não são raras as vezes que os médicos veterinários ouvem esta pergunta, ou outras semelhantes, por parte dos profissionais de medicina humana. Sendo ambos profissionais de saúde, cada vez mais integrados no conceito de Uma Só Saúde, o certo é que ainda há algumas diferenças entre estes dois ramos do conhecimento em saúde, apesar do caminho já percorrido pela medicina veterinária.
A questão que exemplifica este distanciamento foi ouvida por Marisa Lourenço entre membros das suas relações pessoais e profissionais que se dedicam à medicina humana e dá nota do desconhecimento que ainda persiste entre estes sobre o trabalho realizado pelos médicos veterinários. Ainda assim, assegurou a especialista pelo colégio americano, “nunca me senti diminuída” em termos de conhecimento e valorização do trabalho realizado. Não obstante, Marisa Lourenço reconhece que, na medicina veterinária, “ainda estamos extremamente longe do que já é feito na medicina humana, sobretudo pelas nossas limitações financeiras”, mas assegurou a oradora: “Somos fantásticos em termos de diagnóstico e tratamento, tendo em conta as limitações que temos”.
Esta visão é partilhada com Mónica Augusto, que considera que ambos os profissionais médicos “não estão muito longe [em termos de conhecimento], embora, por vezes, pareça que eles assim o pensem”. Na perspetiva da especialista europeia em medicina interna, “o nosso conhecimento das condições e patologias é muito bom e a forma como abordamos os casos não é muito diferente do que se faz na medicina humana”, o que existem são, sobretudo, “limitações ao nível de procedimentos devido aos custos. O dinheiro que podemos gastar é uma limitação no que podemos fazer, não porque não tenhamos conhecimento de como o fazer”, mas porque os tutores não podem despender o valor dos custos das terapêuticas.
A oncologia, área de interesse de Mónica Augusto, é um exemplo de como o conhecimento veterinário das várias patologias tem aumentado enormemente nos últimos anos, mas, comparativamente com o que já é realizado em termos de tratamentos oncológicos e procedimentos cirúrgicos na medicina humana, a medicina veterinária ainda está longe das abordagens realizadas no tratamento de doentes humanos devido às limitações que existem do ponto de vista financeiro dos tutores.
Não obstante, Mónica Augusto tem a perceção de que os profissionais de medicina humana ainda olham para os médicos veterinários “como médicos inferiores e ficam espantados por cães e gatos terem determinadas doenças”, mas declarou de forma perentória: “Nós somos, definitivamente, melhor do que pensamos”.
O que parece ser vantajoso é a colaboração entre as duas áreas do saber, saúde humana e animal, tanto no que diz respeito ao conhecimento das patologias, como ao desenvolvimento de novas terapêuticas. Francesca del Baldo deu o exemplo do trabalho desenvolvido na Universidade de Bolonha na área da diabetes mellitus, no qual há uma colaboração estreita entre a medicina humana e a medicina veterinária “que pode ser muito profícua em termos de respostas para os dois mundos”. E assegurou aos presentes: “Somos tão bons como eles [médicos de medicina humana”.
Seguros: a resposta para problemas financeiros dos tutores?
A questão dos valores dos atos médicos em medicina veterinária é problemática em Portugal, mas também noutras partes do globo. Contudo, é nos países em que existe um serviço público de saúde humana que mais se fazem sentir as queixas dos tutores relativamente aos preçários dos centros de atendimento médico veterinário. A explicação, na opinião de Mónica Augusto, reside no facto de, em países como Portugal ou Reino Unido, as pessoas “não estarem habituadas a pagar pelos cuidados de saúde. Têm o SNS [Serviço Nacional de Saúde] e o NHS que pode não ser o melhor ou o mais rápido, mas assegura sempre o tratamento”.
Tendo trabalhado no Reino Unido e estando agora na Irlanda, Mónica Augusto tem uma perspetiva de como esta matéria dos custos está a ser tratada em ambos os países. Se no Reino Unido o mercado dos seguros de saúde animal já está muito implantado, cerca de 80% dos tutores fez seguro de saúde ao seu animal de companhia, na república vizinha essa percentagem não ultrapassa os 40%. O que poderá ser “um problema serão os plafonds”, apontou Mónica Augusto, já que estes impõem limites a despesas que, eventualmente, deixam de fora alguns dos atos médicos mais dispendiosos colocando, desta forma, entraves às despesas médicas dos animais de companhia.
Em Itália, referiu Francesca del Baldo, o mercado dos seguros de saúde animal é incipiente, mas está “em crescendo” e na perspetiva da especialista europeia poderá fazer a diferença em matéria de pagamento dos cuidados médico-veterinários.
Já do outro lado do Atlântico o cenário é completamente diferente. Como não existe um serviço público de saúde, os utentes estão habituados a pagar pelos atos médicos e, no caso dos animais de companhia, Marisa Lourenço referiu que o recurso ao cartão de crédito é o mais usual nos Estados Unidos da América, sendo o mercado dos seguros de saúde mais aplicável à medicina humana.
Agora a trabalhar no Reino Unido, a especialista em medicina de emergência rematou, no entanto, que independentemente da existência de seguros de saúde animal e do cartão de crédito, “o mais importante é o amor [dos tutores pelo animal de companhia] porque quando há amor as pessoas conseguem encontrar uma solução”.
Acompanhamento alargado do encontro
O programa das XLVII Jornadas Médico-Veterinárias foi extenso e teve a participação de vários profissionais nacionais e internacionais que trouxeram as diferentes perspetivas e novidades terapêuticas ao encontro.
A VETERINÁRIA ATUAL acompanhou o primeiro dia do evento e, além do momento de debate que encerrou os trabalhos, no website da revista, em www.veterinaria-atual.pt, pode também ficar a conhecer a perspetiva de Miguel Barbosa, psicólogo e docente na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, sobre os desafios que as mais recentes alterações na relação entre o tutor e o animal trouxeram ao trabalho das equipas veterinárias.
Também pode ficar a par dos avanços no diagnóstico e tratamento da doença oncológica em aves com a conferência de Dario d’Ovidio, especialista europeu graduado pelo European College of Zoological Medicine com particular interesse em animais exóticos, e conhecer a visão de Pedro Carreira, médico veterinário consultor para as áreas de suinicultura e bovinicultura, sobre as mais recentes armas e desafios do diagnóstico em suinicultura.
*Artigo publicado na edição 181, de abril, da VETERINÁRIA ATUAL.