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Médicos Veterinários

Especialização em medicina veterinária: Os primeiros passos de um caminho sem retorno

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Alguns dos médicos veterinários com o título de especialista europeu começam a voltar ao País e estão a contribuir para alterar o panorama nacional da medicina veterinária. O mercado – tutores e médicos veterinários generalistas – procura cada vez mais os serviços destes profissionais, as universidades nacionais já abriram as portas à criação de residências de especialidade e até a Ordem dos Médicos Veterinários está a modificar o enquadramento legal para acolher esta vertente da especialização nos órgãos reguladores da profissão.

Ser especialista europeu pelo European Board of Veterinary Specialisation (EBVS®) ainda é um caminho profissional pouco trilhado pelos médicos veterinários portugueses. Os dados disponibilizados na página oficial da instituição que supervisiona os Colégios das especialidades veterinárias na Europa (www.ebvs.eu) dizem que existem apenas 39 médicos veterinários [ver caixa] a trabalhar em Portugal com uma formação especializada homologada pelo organismo europeu. Um número ainda reduzido tendo em conta que, segundo os dados divulgados pela Ordem dos Médicos Veterinários (OMV), por ocasião do 30º aniversário do órgão regulador da profissão, em 2021 estavam ativamente inscritos na OMV 6677 médicos veterinários.

 

A VETERINÁRIA ATUAL ouviu Ana Oliveira, Especialista Europeia em Dermatologia pelo EBVS® e que representa o organismo europeu em Portugal, para perceber como funciona o modelo europeu de especialização veterinária.

Segundo explica a médica veterinária, cabe ao EBVS® “regular e dar as linhas de orientação aos colégios para uniformizarem a formação ministrada nas residências [na Europa]”, que podem ser em áreas clínicas, como a medicina interna ou a dermatologia, ou em áreas não clínicas, como a parasitologia ou saúde pública. No total, são 27 colégios [ver caixa] que ministram 36 especialidades, alguns colégios têm mais do que uma especialidade, e cuja formação tem como “objetivo fazer com que o residente fique proficiente na área em que se especializa”.

 

O caminho é longo até se obter o título de especialista europeu e começa antes de se entrar para a residência. É preciso construir um currículo que faça o candidato sobressair entre as dezenas, ou mesmo centenas, de candidatos às escassas vagas de residência de cada Colégio. Isso passa por fazer, por exemplo, um internato antes da residência, “uma formação de um ano já com um programa de treino clínico com um orientador e especificidades próprias da área que o interno pretende aprender”, explica a especialista, e pode incluir ainda uma entrevista aos candidatos à residência.

Cabe ao EBVS® “regular e dar as linhas de orientação aos colégios para uniformizarem a formação ministrada nas residências [na Europa]”

Ana Oliveira Veterinária Atual

Ana Oliveira – Especialista Europeu em Dermatologia

 

Só se o candidato apresentar um currículo “que demonstre interesse pela especialidade e capacidade científica para ser um bom residente”, frisa Ana Oliveira, pode ser colocado numa das poucas vagas existentes, mas isso não significa que pode dar por concluída a fase mais exigente da formação. Pelo contrário, seguem-se três anos de residência no modelo formal, se o formando estiver a tempo inteiro com os orientadores, ou cinco anos se a residência for alternativa, em que o residente não está permanentemente com o diplomado, mas tem de preencher um determinado número de horas de treino. Em ambos os casos espera-o “um estudo contínuo, uma grande dedicação, a escrita e publicação de artigos científicos, participações em congressos e a obrigatoriedade de ver um determinado número de casos clínicos”, relata Ana Oliveira. Um percurso sempre com os olhos postos nos principais objetivos: cumprir o programa da residência e passar no exame final.

Essa última prova é feita a nível europeu pelo colégio da especialidade, juntando no mesmo dia os residentes de todos os locais de formação para serem avaliados pelo comité do respetivo Colégio, o que “assegura que todos os residentes, independentemente do local onde fizeram a residência, estão ao mesmo nível”, e cuja taxa de sucesso é variável, dependendo da especialidade. Não são raros os candidatos que vão mais do que uma vez a exame final porque só quem supera essa etapa final poderá ter acesso aos títulos de Diplomado Europeu pelo Colégio da Especialidade e de Especialista Europeu pelo EBVS®.

 

Muito esforço e dedicação para ser especialista

Esse foi o caminho percorrido pelos especialistas ouvidos pela VETERINÁRIA ATUAL. Ana Oliveira fez a residência formal na Royal Dick School of Veterinary Studies na University of Edinburgh, na Escócia, e fez o exame de especialidade em Zurique, na Bélgica. Como tinha “um grande interesse pela área da dermatologia e queria saber aprofundadamente sobre o tema”, reconhece, a especialização foi a escolha mais lógica para atingir o nível de conhecimento que almejava e que hoje transmite enquanto professora na Egas Moniz School of Health and Science.

Na área da oftalmologia Cristina Seruca fez o mesmo. A médica veterinária fez um estágio de ano e meio na Universitat Autònoma de Barcelona, depois de acabar o curso de Medicina Veterinária na Universidade de Évora, que lhe abriu os horizontes para a especialização, mas também lhe deu consciência das dificuldades: “É um percurso difícil, abrem poucas vagas, são muitas pessoas a candidatarem-se e com currículos bons, em termos de prática clínica, de investigação, de publicações, com frequência de cursos e congressos internacionais”.

“Emocionalmente passamos por situações em que somos continuamente postos à prova e temos de ser muito resilientes a nível pessoal e profissional”

Cristina Seruca Veterinaria Atual

Cristina Seruca – Especialista Europeu em Oftalmologia

Para alargar as possibilidades de entrar na residência, Cristina Seruca realizou outro estágio de seis meses no Veterinary Teaching Hospital, na Ohio State University, e depois voltou a Barcelona para um internato de ano e meio no fim do qual se candidatou à residência formal em oftalmologia no hospital clínico da Universitat Autònoma de Barcelona, onde entrou em 2008.

“A formação é intensiva, mas é altamente gratificante porque a nossa curva de progressão é muito rápida”, reconhece Cristina Seruca. O horário de trabalho era das 8h às 20h, mas era raro o dia que não se estendia para lá da hora de saída, obrigava a estar de urgência noturna e a trabalhar ao fim-de-semana, semana sim, semana não, tudo para assegurar os cuidados “a uma casuística elevada de pequenos animais, de equinos e de animais exóticos”. Ao trabalho somavam-se ainda as horas de estudo e a participação em discussões de casos clínicos, journal clubs, preparação de seminários e apresentações em congressos.

Durante esse tempo, Cristina Seruca reconhece a exigência a que os residentes são sujeitos: “Emocionalmente passamos por situações em que somos continuamente postos à prova e temos de ser muito resilientes a nível pessoal e profissional. E estamos longe dos amigos, da família, é duro e exige muita dedicação e compromisso”. O percurso culminou no exame final que decorreu durante quatro dias, dois com exames teóricos e dois com exames práticos.

Depois de ter obtido o título de especialista, Cristina Seruca esteve seis anos a trabalhar no Reino Unido, paralelamente, foi desenvolvendo a sua atividade clínica em Portugal, mas quando foi mãe pela segunda vez, decidiu regressar definitivamente a Portugal.

Hoje, a especialista em oftalmologia exerce a sua atividade clínica num projeto pensado à semelhança dos locais onde trabalhou no estrangeiro, o Lisbon Vet. Specialists, onde especialistas europeus, de momento apenas nas áreas da oftalmologia e da cardiologia, vão trabalhar unicamente com casos referenciados nas áreas de especialidade, prestando um serviço de apoio multidisciplinar aos colegas referenciadores.

Também Paulo Borges decidiu regressar definitivamente a Portugal depois da formação na especialidade de Medicina de Reprodução e de ter trabalhado em França. O especialista europeu, que hoje trabalha no Hospital Veterinário do Atlântico, já acreditava enquanto estudante do curso de Medicina Veterinária da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) “que a diferenciação é parte integrante do futuro médico-veterinário e é isso que nos faz, enquanto classe, poder evoluir de forma mais rápida e precisa nas diversas disciplinas, providenciando melhores cuidados aos animais”.

Como sentia que a medicina da reprodução era uma área relativamente pouco abordada e percebia que a consequência era a falta de conexão entre o criador e o médico veterinário, optou por essa especialização. “Acredito que a nossa intervenção na matéria da criação é fundamental para a melhoria das condições de bem-estar e de melhoramento do resultado final, que será a saúde dos cachorros que recebemos em consulta posteriormente”. E questiona: “Se não for o médico veterinário a capacitar o criador e a participar no processo da criação animal, alguém mais terá responsabilidade de o fazer?”

“Começam a sentir que somos talvez um pouco diferentes da ideia da referência que existia, na medida em que há um respeito mútuo crescente entre os pares e a desconfiança na potencial perda do cliente não é tanta”

Paulo Borges – Especialista Europeu em Medicina de Reprodução

Em 2011 iniciou a residência formal na École Nationale Vétérinaire d’Alfortem (ENVA), em Paris, depois de ter feito um ano de internato especializado e também relata dificuldades do percurso: “A entrada num programa de residência é difícil, porque a procura é alta e as ofertas são relativamente parcas. A remuneração durante o período de residência, trabalhando numa universidade pública, é relativamente baixa, sobretudo quando se vive num sítio com um custo de vida oneroso, como Paris”. O dia-a-dia de “estudo constante, a intensidade académica, os journal clubs semanais, os longos dias de trabalho, as semanas intermináveis, por vezes com 70-80 horas de trabalho, foram talvez os pontos mais difíceis de gerir”, reconhece Paulo Borges, embora não esqueça as dificuldades que sentiu por estar longe da família e amigos.

Foi, precisamente, a distância do núcleo mais próximo que o fez voltar em 2020, depois de quase 10 anos a trabalhar em diversas estruturas em Paris, Toulouse e Perpignan, embora o regresso também não tenha sido fácil, admite: “Tudo o que eu conhecia tinha mudado e a adaptação quando voltei foi bastante desafiante”. Teve de lidar com o facto de ainda não se sentir o reconhecimento da especialização pelo EBVS® “sobretudo por algumas entidades empregadoras e por alguns colegas veterinários, que ainda não estão habituados a este novo paradigma”, refere o médico veterinário, que acredita, no entanto, “que o quadro está a mudar rapidamente, o que se observa pela quantidade de diplomados que são formados anualmente nas diversas áreas e através do aumento da procura que vejo nos alunos, querendo seguir este caminho”.

O reconhecimento pelos pares de profissão tem sido dos pontos com maior alteração de paradigma, já que os profissionais que referenciam para os especialistas europeus “começam a sentir que somos talvez um pouco diferentes da ideia da referência que existia, na medida em que há um respeito mútuo crescente entre os pares e a desconfiança na potencial perda do cliente não é tanta”. Aliás, a referenciação é um dos pontos focados durante a formação especializada, com os formandos a aprenderem “a cuidar do médico veterinário referente, respeitando-o e colocando-o, da melhor forma possível, a par da situação, tornando-o parte integrante do processo decisional, o que nos ajuda, a gerir estas situações diariamente”, conta Paulo Borges.

*Leia o artigo na íntegra na edição 167, janeiro, da VETERINÁRIA ATUAL.

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