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Médicos Veterinários

Emigração de médicos veterinários: “É uma enorme perda de massa crítica”

Esmeralda Delgado assumiu em outubro passado a presidência da Sociedade Europeia de Oftalmologia Veterinária (ESVO). Em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL, a também professora da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa aborda a crescente especialização dos profissionais portugueses, o ensino da especialidade e deixa um apelo: é necessário estancar a fuga de cérebros com melhores projetos profissionais.

Foi eleita para a presidência da ESVO no final de setembro de 2022. Que balanço faz destes primeiros meses de mandato?

 

É uma enorme honra e também um privilégio poder representar o nome de Portugal e da Universidade de Lisboa a nível europeu. Em termos de balanço dos primeiros meses no cargo, apostamos fortemente na formação contínua à distância através da realização de webinars, o último dos quais contou com mais de 200 participantes. Estes webinars estão abertos a todos os interessados, sendo gratuitos para os nossos membros e ficando a gravação disponível no website da ESVO.

Atualmente estamos a trabalhar ativamente na organização do congresso anual, que decorrerá em Roma no final de setembro, dedicado ao tema da Imagiologia Ocular. Além do programa científico de dois dias e meio de palestras proferidas por especialistas europeus, haverá também lugar à apresentação de comunicações orais e de posters após peer-review, com publicação dos respetivos abstracts na revista Veterinary Ophthalmology.

 

Irão também ocorrer dois workshops práticos para melhoria de competências dos participantes nas temáticas da ultrassonografia ocular e da cirurgia de glaucoma.

O mandado dura até 2024, que objetivos pretende alcançar neste período?

 

Os objetivos são contribuir para o progresso científico e melhoria da disseminação do conhecimento na área da Oftalmologia Veterinária, na Europa e no mundo.

A digitalização veio permitir a globalização no acesso à informação. Fazendo uso destas ferramentas digitais, a ESVO vai continuar a promover educação contínua para os seus membros através de webinars para formação à distância e os nossos congressos anuais decorrerão em modo híbrido, presencial e online. A transmissão da conferência em modo streaming possibilita a chegada da informação a colegas dispersos por todos os países do mundo, desde a Índia ao Egipto, e o feedback tem sido muito positivo.

 

Isto está a abrir o caminho para uma ESVO mais moderna, dinâmica e aberta a todos.

No entanto, o modo online não substitui o presencial, visto que no contacto humano criam-se dinâmicas de grupo e relações interpessoais muito enriquecedoras que culminam na troca de experiências e na implementação de guidelines terapêuticas.

Além disso, com o objetivo de fomentar a investigação, a ESVO concede suporte financeiro através da atribuição anual de uma Research Grant e de duas Travel Grants, para possibilitar a deslocação ao congresso de estudantes cujos trabalhos científicos tenham sido aceites para apresentação.

A criação de uma rede de contactos a nível internacional que conecta oftalmologistas veterinários, investigadores e indústria é outro dos nossos objetivos, para possibilitar colaborações em projetos de investigação, evolução tecnológica e transferência de conhecimento.

“A criação de uma rede de contactos a nível internacional que conecta oftalmologistas veterinários, investigadores e indústria é outro dos nossos objetivos, para possibilitar colaborações em projetos de investigação, evolução tecnológica e transferência de conhecimento.” – Esmeralda Delgado, presidente da ESVO

Quais são os principais desafios na Oftalmologia Veterinária, tanto no ensino como na prática clínica?

Os principais desafios no ensino são a necessidade de ser seletivo na informação a veicular aos estudantes sobre esta especialidade, proporcionado os Day One Skills nesta matéria.

Nenhum aluno de medicina veterinária sai da faculdade com esta ou outra especialização, é necessária formação avançada adicional ao longo da vida.

Num mundo digital em constante evolução, também no ensino os docentes têm de se adaptar e introduzir as ferramentas digitais e os telemóveis na sala de aula, estimular a autoaprendizagem por parte dos estudantes e rever o paradigma da avaliação.

Outro dos desafios que se colocam na atualidade é a inteligência artificial e o impacto que pode ter no ensino superior, sendo necessário criar regras para a sua utilização, não adiantando proibir o seu uso ou negar a sua existência. Atualmente é difícil prever os limites da aplicação da inteligência artificial a todos os níveis.

Na prática clínica um dos maiores desafios é a evolução rápida do conhecimento e a necessidade de uma constante atualização. O progresso tecnológico nesta área tem evoluído de forma exponencial, especialmente nos últimos 10/15 anos. É um desafio para os oftalmologistas veterinários acompanharem este ritmo.

Outros desafios prendem-se com a aquisição de equipamentos técnicos de diagnóstico e de intervenção terapêutica que são dispendiosos, a necessidade de interdisciplinaridade e a importância da melhoria constante nas capacidades de comunicação interpessoal dos profissionais, tanto com os tutores como com a restante equipa clínica.

O que a fez optar por esta especialidade?

Foram três as principais razões. A primeira foi o facto de ter ficado fascinada com esta matéria quando me foi lecionada pela primeira vez no 4 º ano da licenciatura pelo Professor Limão Oliveira, que costumava dizer, a propósito da maioria das cirurgias oftálmicas: “Esta cirurgia é só para especialistas…”

Lembro-me de pensar para mim própria, desafiando-me: “Um dia vou fazer estas cirurgias!”

A segunda foi o facto de ser uma área carenciada de profissionais em Portugal quando acabei o curso, existindo a necessidade de fomentar o seu desenvolvimento, tanto na prática clínica como no âmbito do ensino universitário.

A terceira prendeu-se com o facto de ser uma especialidade médico-cirúrgica, o que me deu a possibilidade de desenvolver competências na área da microcirurgia e de realizar técnicas de cirurgia oftálmica, que é uma das minhas paixões.

Como olha para a crescente especialização na área da medicina veterinária?

É uma inevitabilidade. Promove a melhoria dos cuidados de saúde prestados aos nossos pacientes, uma maior realização profissional dos colegas especialistas e avanços fundamentais no conhecimento através da investigação clínica fundamental e aplicada. Na minha perspetiva, as universidades devem continuar a reafirmar o seu papel nesta formação terminal dos médicos veterinários, conferindo especialização, com ciclos de estudos posteriores ao da profissionalização dirigidos para estas competências adicionais. Mas também acredito que é necessário continuar a haver médicos veterinários de primeira opinião que façam a ligação mais próxima à comunidade, ou seja, o chamado “médico de família”.

“Na minha perspetiva, as universidades devem continuar a reafirmar o seu papel nesta formação terminal dos médicos veterinários, conferindo especialização, com ciclos de estudos posteriores ao da profissionalização, dirigidos para estas competências adicionais.” – Esmeralda Delgado, presidente da ESVO

Enquanto professora universitária, sente que os alunos já têm essa perspetiva da especialização dentro da medicina veterinária no horizonte profissional?

A partir do 4º ano do Mestrado Integrado em Medicina Veterinária, quando os estudantes começam a amadurecer e a ter mais contacto com a prática clínica, surge a oportunidade para uma maior reflexão e tomada de decisões importantes em relação ao futuro. Mas é na transição para o estágio, no final do curso, que verdadeiramente equacionam a procura de uma área de interesse dentro do enorme leque de possibilidades, encarando a perspetiva da especialização.

No entanto, é fundamental realizar uma formação inicial mais generalista que confira competências básicas, o chamado internato, antes de avançar para uma residência, pois um dos princípios fundamentais na especialidade de Oftalmologia veterinária é dominar conceitos gerais de medicina interna.

Esta maior especialização dos profissionais vai também contribuir para um maior reconhecimento internacional dos especialistas portugueses?

A elevada qualidade da formação em medicina veterinária em Portugal é bem reconhecida lá fora, aliando sólidos conhecimentos técnicos com dedicação, resiliência e capacidade de adaptação a novas situações.

Muitos dos nossos recém-licenciados saem do País em busca de especialização, mas também em busca de melhores salários, mais compatíveis com as suas legítimas aspirações. É uma enorme perda de massa crítica para o País e devíamos tentar evitar esta fuga de cérebros procurando oferecer-lhes alternativas sólidas em termos de saídas profissionais. Os médicos veterinários portugueses que se especializam no estrangeiro são reconhecidos pela sua competência e profissionalismo, mas raramente regressam, por razões económicas.

“Os médicos veterinários portugueses que se especializam no estrangeiro são reconhecidos pela sua competência e profissionalismo, mas raramente regressam, por razões económicas.” – Esmeralda Delgado, presidente da ESVO

Já participa na vida da ESVO há mais de uma década. Da sua experiência, como tem evoluído a forma como as organizações internacionais e os profissionais de outros países olham para a medicina veterinária em Portugal?

Tanto as organizações internacionais, como os colegas de outros países reconhecem nos portugueses competência, humildade e boas capacidades de trabalho. A medicina veterinária no nosso País tem evoluído ao mesmo ritmo do resto da Europa e tal realidade fica bem espelhada pelo elevado número de oftalmologistas portugueses que participa ativamente no Congresso Anual da ESVO, que apresenta trabalhos científicos e que demonstra um elevado grau de expertise na área.

No Board da ESVO existem sempre diversas nacionalidades europeias representadas e a representação de Portugal a este nível tem sido motora de uma mudança de opinião relativamente às capacidades de trabalho e de organização dos portugueses.

O que nos diferencia de outros países não é a menor expertise dos nossos profissionais, mas a menor capacidade financeira dos nossos tutores, o que dificulta a acessibilidade a algumas soluções terapêuticas, pois o nível de desenvolvimento da medicina veterinária nos diferentes países está diretamente ligado aos incentivos financeiros.

Na sua perspetiva, qual deve ser o caminho a trilhar no sentido de aumentar a participação dos médicos veterinários portugueses nos organismos internacionais ligados à medicina veterinária? Quem é que está preparado para liderar um organismo internacional?

Para liderar um organismo internacional um profissional tem de mostrar credibilidade, ser de confiança e ser reconhecido pelos seus pares. Deve ter espírito de missão e contribuir para o progresso e para a partilha do conhecimento científico nessa área do saber, dando continuidade à formação contínua dos seus membros, numa perspetiva de atualização de conhecimentos e inovação na prática clínica.

Nas associações internacionais existem profissionais com diferentes antecedentes e diferentes sensibilidades em termos de contexto científico, sociocultural, geopolítico e histórico. Para liderar um organismo internacional é necessário estabelecer consensos e harmonia dentro de um grupo de trabalho e não procurar o protagonismo. Procurar soluções para as diferentes situações com base no respeito mútuo e na transparência, assegurando a representatividade de todos.

Exigência dos tutores “teve um impacto global na tendência para uma maior especialização”

A maior exigência do mercado, ou seja, por parte dos tutores, nos cuidados aos animais de companhia tem também contribuído para esta mudança de paradigma – com maior enfoque na especialização – na medicina veterinária?

A exigência de uma qualidade crescente nos serviços médico-veterinários teve um impacto global na tendência para uma maior especialização. A maior disponibilidade financeira por parte dos tutores para aderirem a planos terapêuticos dispendiosos, a existência de um número crescente de pacientes que possuem seguro de saúde animal e o reforço da ligação existente entre o tutor e o seu animal de companhia, mais conhecido por human-animal bond, são outros dos fatores que favorecem a especialização dos nossos profissionais.

Atualmente, o animal de companhia é percecionado como um elemento da família na maioria dos lares portugueses e os tutores estão cada vez mais bem informados e exigentes no que respeita ao nível dos cuidados médicos prestados.

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