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CAMV

As camadas do tutor

Padrões de cuidado e conhecimento legal dos tutores influenciam bem-estar canino

Em 2002, Annemarie Mol, publicou o livro “The Body Multiple: Ontology in Medical Practice”, onde reflete sobre a etnografia da aterosclerose, abordando as diversas dimensões onde está e é inserida, refletindo e descrevendo as camadas que fazem parte de alguém a quem é diagnosticada a doença.

Esta visão de multiplicidade de uma doença, ou de um paciente é tão necessária em medicina, como em medicina veterinária, sendo felizmente exposta de forma mais frequente por diversas áreas associadas com a prática de medicina veterinária, sobretudo em ambiente clínico.

 

Se olharmos para a relação tripartida do médico veterinário – tutor – paciente, podemos logo à partida identificar três dimensões, no entanto, existem mais camadas. O diagnóstico, o tratamento, a sala de espera, a rececionista, o ambiente, a viagem para o Centro de Atendimento Médico Veterinário (CAMV), a perspetiva e as expetativas do tutor, a experiência e valores do médico veterinário, entre outras camadas.

Provavelmente, a tendência mais recente empresarial na abordagem à experiência do cliente (“Customer Experience”) possa tocar em algumas dessas camadas, no entanto, focando-se essencialmente na interação, no ato da troca.

 

Quando o verdadeiro foco da comunicação entre o profissional veterinário e o tutor passa da perspetiva paternalista, em que o médico veterinário se foca unicamente na perspetiva biomédica e no seu papel de único decisor, do que há a fazer pela saúde do animal, minimizando o papel do tutor, para uma perspetiva centrada na relação entre o médico e o tutor, com decisões partilhadas, podemos começar a aflorar as camadas do tutor, assegurando uma relação mais equilibrada em todos as dimensões humanas.

Penso ser fundamental, para o que descrevemos como um serviço de qualidade aos clientes, usar uma das ferramentas mais poderosas que temos: a escuta ativa associada a questões abertas.

 

Por exemplo, no contacto com o tutor e o seu animal:

Sabemos como a viagem até ao CAMV é feita? Que esforço ou obstáculos encontram?

 

Sabemos qual a emoção dominante que toma o tutor em cada visita ao CAMV?

Sabemos o que realmente veem quando esperam na sala de espera? E com quem e como interagem?

Vivemos tão entranhados no nosso ambiente médico, as equipas rotineiramente a realizar as tarefas incumbidas, que esquecemos o que é visitar pela primeira vez o CAMV e que impacto tem ou teve nos clientes.

Em consulta, permitimos que o tutor dê a sua perspetiva, sem interrupções, expressando as suas preocupações e limitações, de forma psicologicamente segura, sem nos sentirmos ameaçados no controlo do tempo da consulta?

Permitimo-nos a sair do papel de herói capaz de salvar todos os animais que vemos, ou dessa pretensão, e aceitar que nem sempre o tutor entende, quer, concorda com alguns dos planos terapêuticos ou diagnósticos que indicamos, sem nos sentirmos postos em causa, julgados ou rejeitados?

Temos uma postura transparente em relação aos custos dos serviços, mesmo que nos obrigue a ter de lidar, com os comentários feitos pelos tutores baseados na frustração de não os poder realizar, alegando a nossa suposta insensibilidade e falta de compaixão?

Somos capazes de evitar o jargão médico, falando uma linguagem simples, para garantir uma proximidade linguística com a maior parte dos tutores?

Assim, é imperioso explorarmos as várias camadas dos tutores, de forma metódica, para podermos entender e aceitar que são eles, os guardiões do animal, que o conhecem como realmente é, nas suas camadas, mesmo que signifique discordar com algumas das análises e decisões.

Não é o conhecimento médico que estabelece a ligação com o tutor, mas sim a conexão mútua através da conversação efetiva, sincera e terra a terra.

O verdadeiro negócio do médico veterinário são as emoções. Entender as próprias e as dos tutores, geri-las, evitando o peso excessivo de decisões que influenciam negativamente o dia-a-dia dos animais, dos tutores e da profissão.

Acredito, que é na subtil arte de nos questionarmos sobre os chavões que aprendemos: eutanásia é negativa, a não aceitação de tratamento ou hospitalização põe em causa o nosso conhecimento, dar orçamentos pelo telefone demonstra pouco profissionalismo, temos a obrigação de salvar todos os animais, entre muitos outros, que ao questioná-los podemos permitir humanizar os tutores, criando a oportunidade também de receber a recompensa e reconhecimento tão necessários, que afinal também somos humanos e devemos ser respeitados.

Estou a imaginar-me a ter esta conversa com um colega veterinário às 19h50 no CAMV e de repente aparecer um tutor com um animal em estado grave pois só não come há três semanas… A realidade será por vezes esta, mas se pensarmos nas camadas do tutor, talvez tenhamos a oportunidade de poder mostrar as nossas e sermos mais entendidos e até entender porque este tutor só hoje pode vir ao CAMV…

Bem Hajam!

Banda sonora: No Surrender, Álbum “Medicine Babies”

*Médico veterinário, drpedro.fabrica@gmail.com

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