Uma equipa de cientistas da Universidade de Coimbra e da Universidade de Oxford, no Reino Unido, desenvolveu um software com base em inteligência artificial (IA) que consegue detetar e reconhecer rostos de primatas em ambiente selvagem, anunciou ontem a universidade portuguesa. A descoberta vai permitir que investigadores e conservacionistas da vida selvagem poupem tempo na análise de vídeo destes animais, podendo ainda ser aplicada ao estudo de outras espécies.
“Este estudo é o primeiro a rastrear e reconhecer continuamente indivíduos numa ampla variedade de poses, e executa com alta precisão vídeos mais complexos, caracterizados por condições naturais variáveis, como baixa iluminação, baixa qualidade de imagem e desfoque do movimento”, pode ler-se no comunicado enviado pela Universidade de Coimbra. “O modelo computacional foi treinado utilizando mais de dez milhões de imagens de rostos de chimpanzés selvagens na Guiné Conacri, do arquivo de vídeo da Universidade de Quioto.”
Os resultados da investigação foram publicados ontem, dia 4 de setembro, na revista científica Science Advances. O software foi desenvolvido nos últimos dois anos pelos cientistas do Primate Models Lab, da Universidade de Oxford, e do Centre for Functional Ecology, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Utiliza os mais recentes avanços de deep learning, ou seja, de aprendizagem profunda, uma área da IA, para detetar, rastrear e reconhecer os rostos dos chimpanzés na natureza, bem como ferramentas gratuitas que permitem a outros investigadores identificar vídeos e ‘treinar’ o software com os seus próprios dados.
Segundo os cientistas, as abordagens existentes, que recorrem a visitas de campo para recolher dados e à análise manual, consomem demasiado tempo e recursos. É por isso que a primatóloga Susana Carvalho, coordenadora da investigação e orientadora de Daniel Schofield (o primeiro autor do artigo), sublinha três grandes mais-valias desta nova ferramenta: “A primeira é possibilitar análises de volumes enormes de vídeos de animais diretamente. Houve muitas tentativas anteriores de conseguir esta identificação automática de indivíduos, mas nunca foi possível superar os desafios dos vídeos que fazemos em habitat natural, com mudanças de luz, de zooms, variação na qualidade ao longo do tempo, e muito mais. Tudo o que se fez antes foi feito ou em cativeiro, ou a partir de fotos – nunca de raw vídeos, como é o caso do nosso trabalho.”
Para a coordenadora da investigação, esta vantagem competitiva é particularmente evidente no estudo dos chimpanzés, em que muitas comunidades têm sido analisadas em África nos últimos 40 anos. “Imagine-se o tesouro científico, o potencial acumulado em milhões de vídeos arquivados, que guardam informação sobre os mesmos chimpanzés desde a infância até à idade adulta? Processar este volume de forma manual é quase impossível, mas com as ferramentas que criámos, é possível automatizar uma parte desse trabalho.”
A segunda vantagem prende-se com a automatização da identificação dos indivíduos: “Ao automatizar a identificação de indivíduos, obtém-se também a automação das redes sociais desses indivíduos no seu grupo (produzindo automaticamente as chamadas Social Network Analysis). Com isso conseguimos ver a posição do indivíduo no seu grupo, ao longo dos anos – como indica o artigo, os indivíduos mais velhos do nosso grupo de Bossou mostram mais isolamento e distância relativamente ao grupo à medida que envelhecem”, diz a primatóloga do Centre for Functional Ecology e coordenadora do Primate Models Lab da Universidade de Oxford.
Por último, outro grande benefício e, sublinha Susana Carvalho, “talvez o mais importante”, é o potencial para aplicações no trabalho de conservação de animais, particularmente em primatas (embora o sistema possa ser adaptado a outras espécies). “Existe um potencial enorme para identificação de indivíduos, contagem automática de indivíduos em cada frame, etc.”, nota a coordenadora.
Veja abaixo uma demonstração desta ferramenta.