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Hipertensão felina

O que esconde o aumento da pressão arterial?

gato doente Veterinária Atual

Atua em silêncio e não é facilmente diagnosticada. A hipertensão felina implica rastreios contínuos e a avaliação de vários fatores que alteram a pressão arterial. O desafio começa na tentativa de diagnosticar bem, o que justifica, para alguns médicos veterinários, a instituição de protocolos clínicos e o seguimento das guidelines.

Tanto nos cães, como nos gatos, a hipertensão é uma doença silenciosa. “Os sinais clínicos podem não ser evidentes até que se manifestem nos chamados órgãos alvo”, explica Rui Miguel Máximo, médico veterinário e presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia Veterinária (SPCAV). Recomendam-se, por isso, rastreios frequentes. “Doenças como o hipertiroidismo ou a insuficiência renal crónica (frequentemente associadas à hipertensão) fazem como que se recomende a avaliação de hipertensão em pacientes com idade superior a 10 anos”, sublinha. Sabe-se também que a medição da pressão arterial pode ser influenciada por “fatores como o stresse, a ansiedade, os erros técnicos, o que pode levar ao sobrediagnóstico. Haver um protocolo com maneio do stresse/ansiedade, bem como um conhecimento adequado do equipamento torna-se fundamental para tentar ultrapassar essas limitações”.

 

Os desafios dos médicos veterinários começam, desde logo, pela correta medição dos valores sistólicos, diastólicos e médios da pressão arterial. “É difícil separar valores verdadeiramente elevados dos que são induzidos pela manipulação, contenção, pelo efeito ‘bata branca’, entre outros, sobretudo nos gatos”, defende José Sales Luís, professor catedrático da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa. Mas afinal, esta doença é mais comum em gatos ou cães? “A hipertensão idiopática é uma entidade difícil de valorizar em ambas as espécies (ao contrário do homem), e nos gatos, causas de hipertensão secundária são mais frequentes como a Insuficiência renal crónica (IRC), o hipertiroidismo ou a cardiomiopatia hipertrófica (CMH). Pelo contrário, no cão pode estar mais frequentemente associado ao hiperadrenocorticismo, que é mais expressivo nesta espécie”, acrescenta José Sales Luís.

O facto de os felinos serem “pacientes nervosos e pouco colaborativos leva a que não se consiga evitar o efeito da bata branca”, na opinião de Manuel Monzo, do serviço de consultadoria em cardiologia veterinária – Cardiocare, e professor auxiliar convidado da Universidade de Évora. Este facto conduz a que se tenham valores de pressão arterial “acima do limiar sem que o paciente seja mesmo hipertenso. Apesar de existirem protocolos que minimizam o stresse associado a este procedimento, não o eliminam”. Apesar de algumas características da doença, semelhantes aos seres humanos, nos gatos e cães, a hipertensão arterial é “quase sempre secundária a outras patologias, sendo as mais relevantes a insuficiência renal e o hipertiroidismo”, diz-nos Cláudia Abreu, médica veterinária do serviço ambulatório de cardiologia – CVM (cardiologia veterinária móvel).

 

Protocolos de rotina

Perante este cenário, o ideal seria diagnosticar a patologia antes do aparecimento “de lesões nos órgãos alvo, mas nem sempre é possível”, salienta Rui Miguel Máximo. A doença evolui “sem sintomatologia evidente, o que torna difícil diagnosticar, monitorizar e evitar as complicações associadas a lesões vasculares nos órgãos alvo”, acrescenta.

 

A hipertensão “é mais comum em gatos de meia idade e idosos, podendo resultar em alterações oculares, neurológicas, e como agravantes da insuficiência renal crónica e da cardiomiopatia hipertrófica felina, numa espécie de ciclo vicioso com estas duas entidades. Agravam-se mutuamente”, defende José Sales Luís. O facto de durante um longo período de tempo não existirem “evidências clínicas ou detetáveis pelos donos da presença de hipertensão atrasa o diagnóstico e a respetiva tentativa de correção”.

endocardite infeciosa de felinos

 

Deve ter-se em conta “a etiologia subjacente da pressão arterial. Podemos ter pacientes da mesma espécie com comportamentos distintos”, explica Manuel Monzo. Quanto mais idosos forem os pacientes, maiores se tornam os desafios de deteção da doença. “É muito importante termos presentes que a hipertensão primária em gatos é rara, pelo que num gato que apresenta sistematicamente valores de pressão arterial elevados há que descartar doenças como insuficiência renal, hipertiroidismo e patologias mais raras, como o hiperaldosteronismo ou o feocromocitoma. Na ausência de uma causa primária é muito importante equacionar a necessidade de instituição de terapia anti-hipertensora”, defende Cláudia Abreu.

Mas para se chegar a uma conclusão terapêutica há que apostar na prevenção. Um dos problemas com o diagnóstico também se prende com a relutância por parte de alguns médicos veterinários em introduzir “o rastreio de pressão arterial para a sua prática clínica, devido à dificuldade de reprodutividade deste tipo de metodologia, bem como a validação da mesma”, defende Sofia Arvela, na sua tese de dissertação de mestrado, datada de 2013, e intitulada: “Medição da pressão arterial em canídeos e felinos”, pela Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa. O seu estudo teve como objetivo “conseguir sensibilizar os clínicos de animais de companhia para a utilização rotineira dos aparelhos de medição de pressão arterial como forma de diagnóstico de doenças associadas a alterações da pressão arterial, bem como de forma a conseguir prevenir consequências lesivas de estados hipertensivos ou hipotensivos em órgãos alvo”.

A tese defende que este método deva ser uma rotina nos animais que chegam a consulta, “da mesma forma que é medida a temperatura corporal, tendo o cuidado de sistematizar o protocolo, de forma a recolher o valor de pressão arterial normal para um determinado animal. Estes dados devem ser anotados na ficha clínica do animal, para que seja um dado clínico a considerar quando ocorre alteração do estado de saúde”, sugere a autora.

No ano 2009, uma outra aluna da mesma Faculdade apresentou a sua dissertação de mestrado integrado dedicada à hipertensão arterial felina, onde defendia também a importância da educação dos médicos veterinários no que respeita à medição da pressão arterial. “A medição indireta com recurso ao método Doppler e oscilométrico pode atualmente ser utilizada em pacientes felinos conscientes, com resultados fiáveis, desde que aplicadas as regras gerais e os protocolos adequados.  O conhecimento de que, em animais de companhia, a hipertensão sistémica surge sobretudo associada a uma doença primária significa que o diagnóstico de hipertensão pode funcionar como um marcador precoce no diagnóstico de várias doenças, melhorando a oportunidade de recuperação do animal e o seu tempo de sobrevivência”, defende Vera Lúcia de Carvalho.

Além do diagnóstico da hipertensão, a medição da pressão arterial tem “um largo leque de indicações, sendo de grande interesse clínico na área dos cuidados paliativos, na monitorização de pacientes em estado crítico, durante a anestesia ou quando o animal está a ser medicado com fármacos que tenham potenciais efeitos hemodinâmicos. Incluir a medição da pressão arterial como componente de programas de rastreio de saúde, geriatria e pré-anestesia não é mais do que um cuidado de saúde preventivo, que caracteriza as boas práticas veterinárias e a medicina de excelência”, sublinha a autora. Além disso, o adequado diagnóstico pode ser útil para uma investigação clínica que conduza “ao despiste de outras doenças”, explica Rui Miguel Máximo.

Além do reconhecido papel dos médicos veterinários, os proprietários “são decisivos, quer no diagnóstico precoce da doença, ao realizarem consultas de rotina com o seu animal, mas também posteriormente, ao cumprirem as orientações terapêuticas propostas pelo médico veterinário”, sublinha Cláudia Abreu.

Como tratar?

No que respeita à abordagem terapêutica, existem algumas diferenças entre cães e gatos. “O fármaco de primeira escolha para gatos hipertensos é a amlodipina, o que não ocorre noutras espécies em que esta é reservada para casos refratários”, esclarece a médica veterinária. Um médico veterinário com interesse na área de cardiologia “deve avaliar o paciente aquando do diagnóstico, já que um dos órgãos alvo da hipertensão é o coração.

“Descartadas alterações cardíacas, o paciente deve ser acompanhado pelo seu médico veterinário para que este integre todo o quadro clínico, e estabeleça o plano terapêutico mais adequado a cada situação”, sugere a médica veterinária.

“O diagnóstico e acompanhamento de um paciente com hipertiroidismo é um trabalho que exige colaboração entre várias áreas, obviamente que os efeitos da hipertensão no coração devem ser acompanhados pela cardiologia, mas o trabalho de diagnóstico da causa subjacente é um trabalho de medicina interna”

O presidente da SPCAV defende, também, um acompanhamento multidisciplinar no acompanhamento de um gato com hipertensão. “O diagnóstico e acompanhamento de um paciente com hipertiroidismo é um trabalho que exige colaboração entre várias áreas, obviamente que os efeitos da hipertensão no coração devem ser acompanhados pela cardiologia, mas o trabalho de diagnóstico da causa subjacente é um trabalho de medicina interna. Um paciente com lesão ocular deverá ser acompanhado pela oftalmologia, ou seja, são pacientes que precisam de um seguimento de um seguimento multidisciplinar”.

Também Manuel Monzo destaca a complementaridade de especialidades: “A hipertensão é uma consequência de desordens metabólicas e, como tal, deve ser acompanhada pela medicina interna. Contudo, tendo em conta as consequências cardíacas da hipertensão, deve haver a colaboração entre o médico interno e o colega com interesse em cardiologia, de forma a minimizar os efeitos da doença”. Considerando que a maioria dos autores “elegem a amlodipina como o fármaco de eleição”, salienta a mais recente novidade relacionada com o lançamento de um medicamento no mercado “com dose ajustada para gatos” que defende como sendo “muito útil”. Na sua opinião, “os controlos médicos regulares, a minimização do stresse do paciente e a educação dos proprietários no que respeita à adesão à terapêutica” são três aspetos fundamentais e que não se devem descurar, no acompanhamento desta doença.

A Ceva Saúde Animal está a preparar uma novidade, a ser lançada no mercado nacional, até ao final do ano. Trata-se da primeira amlodipina autorizada para utilização em Medicina Veterinária, especialmente desenvolvido para o tratamento de hipertensão em gatos. É um comprimido hipertensivo, especialmente desenvolvido para gatos, palatável e divisível em duas partes iguais, que responde às necessidades de médicos veterinários e tutores de gatos, diminuindo eficazmente a pressão arterial, de uma forma gradual e segura, a longo prazo”, explica Nádia Silva, Marketing and Technical Manager Companion Animals da empresa.

A WePharm, laboratório do Grupo Propecuária, lançou há tempos “um produto para controlo nutricional da Doença Renal Crónica (DRC), patologia muito associada à hipertensão felina”, explica Marcelo Dinis Sousa, médico veterinário, Technical and Product Manager / DVM da WePharm Veterinária. Tendo na sua composição uma substância destinada a “auxiliar o controlo da hipertensão, o Crateagus oxycanta (Espinheiro Alvar), rico em compostos polifenólicos. Estes resultam do metabolismo secundário das plantas, e são muito utilizados na medicina tradicional chinesa pelos seus efeitos na doença cardíaca congestiva e na hipertensão arterial, assim como pelos seus efeitos antioxidantes. O Crataegus tem sido muito utilizado para ajudar a manter uma pressão arterial adequada em animais com DRC”, sublinha o responsável.

Cláudia Abreu considera que “a dieta é um outro fator no controlo da pressão arterial, a par da terapia farmacológicas”.

Cabe ao médico veterinário selecionar a dieta mais adequada, “tendo em conta o historial clínico, e ao proprietário respeitar as indicações, o tipo de dieta e as quantidades diárias estabelecidas”. São ainda sugeridas medidas que contribuam para um maior equilíbrio destes pacientes, como as que se relacionam “com o enriquecimento ambiental e a redução de fatores de stresse no meio ambiente felino”.

No que respeita às dietas, a Cesman-Hill’s Pet Nutrition Portugal desenvolve produtos cujos benefícios se centram na qualidade de vida em cães e gatos com doença renal crónica”. O laboratório oferece dois produtos para animais com esta doença, que proporcionan uma solução nutricional que ajuda a ultrapassar a perda de apetite e de massa muscular que tantos animais com doença renal sofrem”, pode ler-se em comunicado de imprensa. “Para os pacientes com a patologia, está recomendada uma redução gradual da ingestão de sódio com o objetivo de evitar retenção e líquidos e reduzir o risco de hipertensão (associada a problemas renais e cardíacos). Todas as soluções melhoradas de k/d cão e gato, assim como as novas dietas k/d+mobility cão e gato contêm um conteúdo em sódio reduzido com o objetivo de ajudar a reduzir a progressão da doença renal e limitar a retenção de líquidos nos problemas cardíacos iniciais (também associados aos pacientes com doença renal crónica)”, explica a Veterinary Affais Manager Ana Margarida Tomé.

EM CAIXA

Existem guidelines disponíveis para maneio da hipertensão em cão e gato (http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1939-1676.2007.tb03005.x/pdf), realizadas, em 2007, pelo Colégio Americano de Medicina Interna. “Não sendo especificas para a espécie são um documento relevante”, defende Rui Máximo. As guidelines visam essencialmente: métodos de medição da pressão arterial, valores de referência, tipos de hipertensão, danos nos órgãos alvo, seleção dos pacientes a avaliar, diagnóstico e graus de hipertensão e instituição de terapia. Apresentamos-lhe um resumo das mesmas sugerido por Cláudia Abreu.

Ponto 1Métodos de medição da pressão arterial – As medições devem ser realizadas com aparelhos validados para a espécie, numa sala silenciosa e calma, preferencialmente, com um tempo de adaptação ao ambiente de 10 minutos, para de alguma forma diminuir o “efeito bata branca”.

Ponto 2 – Os valores de referência – Utilizando métodos oscilométricos, os valores de referência considerados são pressão arterial sistólica (PAS) <150mmHg e pressão arterial diastólica (PAD) <95mmHg.

Ponto 3 – Tipos de hipertensão – A hipertensão poderá ser dividida em primária, quando não tem uma causa associada, secundária quando ocorre devido a uma outra patologia, ou “efeito bata branca”, quando ocorre devido ao stress do animal no momento da medição.

Ponto 4Dano em órgãos alvo – A presença de hipertensão arterial de forma sustentada leva à ocorrência de lesões em alguns órgãos, como por exemplo, rim, sistema nervoso central, retina ou coração.

Ponto 5 – Seleção dos pacientes a avaliar – A pressão arterial deve ser medida em animais com alterações que possam ser secundárias à hipertensão, como por exemplo: hifema, corioretinite, epistaxis, proteinúria, ou alterações neurológicas. Deve também ser medida em pacientes com patologias que possam provocar hipertensão, insuficiência renal crónica e hipertiroidismo.

Ponto 6 – Diagnóstico e Graus de hipertensão – O paciente é considerado normal quando PAS< 150mmHg e PAD<95mmHg. O risco de dano nos órgãos alvo vai aumentando com a elevação da pressão sendo ligeiro quando 150mmHg<PAS<159mmHg e 95mmHg<PAD<99mmHg, moderado quando 160mmHg<PAS<179mmHg e 99mmHg<PAD<110mmHg e severo quando PAS>180mmHg e/ou PAD>120mmHg.

Ponto 7 – Instituição de terapia – A terapia deverá ser iniciada em animais com pressão sistólica superior a 180mmHg, animais com pressão arterial superior a 150mmHg associada a sinais clínicos ou a doenças primárias que possam estar na origem da hipertensão. O objetivo da terapia consiste em obter valores de pressão entre 120-150mmHg, sem sinais clínicos associados.

 

 

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