Ricardo Chantre foi eleito no final de junho para mais um mandato enquanto presidente da Federação Académica de Medicina Veterinária (FAMV). O estudante da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona acredita que não existem demasiados alunos a cursar medicina veterinária, até porque algumas faculdades têm-se dedicado a formar “quase maioritariamente alunos estrangeiros”.
Em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL, o dirigente fala da necessidade de revisão das atuais componentes curriculares, dos receios sobre o mercado de trabalho e pede uma “mudança clara de paradigma no âmbito das remunerações”.
Foi eleito para um novo mandato à frente dos destinos da FAMV. Quais são os objetivos desta direção para os próximos dois anos?
No ano passado, a direção anterior organizou o II Congresso Nacional de Estudantes de Medicina Veterinária e o 7º Encontro Nacional de Estudantes de Medicina Veterinária e este ano vamos avançar com novas edições destes dois eventos. Para nós, são claramente encontros para continuar, não só pela vertente da formação complementar – com a realização de palestras, workshops e mesas-redondas – como também pela dinâmica que criam de contacto com os profissionais de todo o País.
Queremos muito manter esta dinâmica de formação complementar e momentos de convívio que costuma reunir entre 120 e 130 alunos.
Afinal, somos oito associações de estudantes de oito faculdades de medicina veterinária e temos de trabalhar para que os alunos que vêm aos nossos eventos ganhem um sentimento de comunidade nacional a que pertencem e com a qual podem conviver.
No mandato anterior também assumi que a Federação estava sub-representada e tinha pouca voz nos fóruns em que se insere, nomeadamente no Fórum Nacional de Estudantes de Saúde e no Conselho Nacional de Juventude. Entramos nesses fóruns com alguma calma, mas sempre com propostas no sentido de sermos reconhecidos pelos nossos pares, sejam eles da área da saúde ou da área da juventude.
Assumimos o compromisso no mandato passado de contribuir em ambos os fóruns para que seja cada vez mais percetível que os estudantes de medicina veterinária têm uma voz ativa, querem participar e que a Federação tem de ser o garante de que essa a voz é ouvida.
Muitos dos estudantes mais novos não sabem que são representados por uma federação. Conhecem a associação de estudantes da sua faculdade desde o primeiro dia, muitas vezes até têm a intenção de se envolver nela, mas a Federação é sempre uma realidade que vem depois. Por esse motivo, no ano passado estivemos presentes em todas as receções aos novos alunos e este ano vamos continuar a fazer esse trabalho para que os alunos ganhem a perceção do que a Federação faz, como os representa e o que lhes oferece.
“Se não houver uma mudança clara de paradigma no âmbito das remunerações e das condições de trabalho vamos chegar à geração que não quer ser médico veterinário de todo” – Ricardo Chantre, presidente da FAMV
Enquanto FAMV é importante estar no terreno para ouvir as diferentes realidades. Quais são as principais preocupações que lhe chegam de quem está a estudar medicina veterinária?
Fazemos esse trabalho [de audição] no Grupo Senado da Federação, no qual estão presentes os presidentes ou vice-presidentes das várias associações onde discutimos todas as medidas e propostas. Procuramos trabalhar sempre em conjunto com as associações, mantendo a nossa autonomia, para termos uma participação de todas.
Uma das nossas grandes preocupações, e que é transversal aos cursos, prende-se com o facto de os programas curriculares nas faculdades de medicina veterinária serem extraordinariamente exigentes e com horários muito pesados. Ou seja, são dias completos em que se vai para o campo ou para o hospital, com muitas avaliações e apresentações regulares de trabalhos pelo meio e a preocupação pelo stress que isso gera. Tudo isso cria um peso na vida dos alunos que é excessivo.
Por exemplo, um aluno que queira participar numa associação ou federação, ou simplesmente que queira assumir a sua vida pessoal como jovem, precisa de ter mais espaço para ter essa organização.
A medicina veterinária sempre foi um curso muito exigente e a forma como os programas estão desenhados torna-os extraordinariamente pesados, mas temos de pensar no tipo de estudante que queremos ter no futuro e perceber que um aluno não precisa de estar exclusivamente na faculdade. Um aluno precisa de procurar atividades extracurriculares, precisa de procurar estágios e isso está, cada vez mais, em linha com a visão de o profissional do futuro não ser apenas um mero veterinário tecnicamente competente, mas um profissional dotado das ditas soft skills que passam por uma boa capacidade de comunicação, de relacionamento interpessoal e de lidar com situações mais pesadas e não apenas pela formação técnica.
A necessidade de adequação dos currículos das faculdades também se aplica às distintas áreas na medicina veterinária? Ou seja, continuam muito voltados para a prática clínica em centro de atendimento médico veterinários (CAMV), com os tradicionais cães e gatos, deixando de fora outras realidades da profissão, como a investigação ou mesmo a prática clínica com os novos animais de companhia…
Acho que sim. Temos uma medicina veterinária muito virada para a clínica de pequenos animais de companhia e sinto que vai ser quase obrigatório incluir os novos animais de companhia, que são um segmento emergente, traduzindo-se numa ampliação dos conteúdos.
É muito complicado chegar ao final do curso, ter interesse nos novos animais de companhia e na medicina de conservação e depois perceber que as oportunidades existem para quem já tem experiência na área, mas é muito difícil chegar junto dos profissionais dessa área que nos dão essa experiência.
Na medicina de conservação ainda se sente mais. Temos alguns centros de recuperação [de animais selvagens] no País, mas tem de ser o aluno a pesquisar, porque não há no currículo da maioria das faculdades – penso que com exceção de Évora e Vila Real – uma ligação a esses centros. Tem de haver uma simbiose entre essas entidades [centros de recuperação e faculdades] para formarem os alunos nessa área.
Por esse motivo, a Federação assinou um protocolo com um centro – Natuwa Wildlife Sanctuary, um centro de recuperação animal – na Costa Rica para que os alunos de medicina veterinária em Portugal tenham acesso a um preço especial e possam ter essa experiência.
Sobre o número de alunos e de cursos de medicina veterinária, a FAMV corrobora com a ideia de que existem muitos alunos e que o mercado ficará saturado de profissionais?
Não partimos do princípio de que há demasiadas faculdades ou demasiados estudantes de medicina veterinária. Reconhecemos que, para a realidade nacional, oito escolas, em comparação com outros países, como Espanha, é um número grande, mas não demasiado.
É preciso formar cada vez mais profissionais, o mercado exige isso, e não antevejo que haverá esse problema da sobrelotação [de profissionais] por dois motivos.
O primeiro é que há algumas faculdades que são quase dedicadas aos alunos estrangeiros. É um fenómeno que está a acontecer e que acredito que vá crescer cada vez mais. São três as associações que [representam faculdades que] formam quase maioritariamente alunos estrangeiros, especialmente franceses, que depois vão procurar oportunidades no seu País. Não me parece que esses alunos queiram ficar cá e sobrelotar o mercado de trabalho.
O segundo motivo é que o mercado de trabalho em veterinária está a crescer a um ritmo que permite acolher os atuais alunos [nacionais].
“Temos de assumir como um objetivo, ou uma ambição, a criação dos colégios [de especialidade]” – Ricardo Chantre, presidente da FAMV
Efetivamente, alguns responsáveis por CAMV queixam-se de dificuldades em contratar profissionais…
É uma dificuldade que se explica porque há profissionais de medicina veterinária com alguma experiência que procuram oportunidades lá fora. É um fenómeno que se vai tornar cada vez mais frequente. Já o disse: nós vamos ser a geração que não quer ser médico veterinário em Portugal porque lá fora são oferecidas melhores condições.
Parece-me que ainda não há uma noção clara em quem faz a gestão dos CAMV que os salários praticados não são motivadores para quem está a estudar e não são, de todo, consonantes com a realidade que os alunos de hoje querem ter no futuro.
Quando sabemos que existem profissionais remunerados a mil euros, ou mesmo menos, estamos a dizer aos alunos de uma forma clara que a profissão não os vai valorizar pois não valoriza quem já lá está.
Estamos com esse problema grande – transversal às várias áreas da saúde – de não conseguirmos reter profissionais em Portugal porque não estamos a dar as oportunidades corretas às pessoas, adequadas ao custo de vida que têm hoje.
É uma realidade desmotivadora para ficar em Portugal e até para ficar na profissão.
Se não houver uma mudança clara de paradigma no âmbito das remunerações e das condições de trabalho vamos chegar à geração que não quer ser médico veterinário de todo.
Temos oito universidades, quatro delas particulares, e para andar numa universidade particular o esforço que as famílias têm de fazer, e por vezes os próprios estudantes através do seu trabalho, é muito grande.
Depois as deslocações para quem, mesmo no público, fica colocado longe de casa, a que se acresce o valor do aluguer do quarto, os custos de alimentação etc.
Mas trata-se apenas de uma questão salarial? Encontra outros fatores desmotivadores no mercado de trabalho nacional?
Sobretudo a falta de perspetivas de carreira, o sacrifício que é feito na vida pessoal para estar na profissão.
Há uma flexibilidade pedida às pessoas para fazer noites nas urgências e retirar esses momentos à vida pessoal, que não é correspondida salarialmente.
E também para a formação há poucas oportunidades. Os CAMV proporcionam poucas oportunidades para os profissionais irem melhorando as capacidades técnicas e progredindo na carreira. Temos a noção que já há alguma oferta, mas não é em todo o lado, há uma sensação de estagnação de conhecimento porque a pessoa não recebe o suficiente para fazer formações por si própria, mas também não lhe é dada essa oportunidade no ambiente de trabalho em que está inserida.
Queremos ser profissionais de excelência, não queremos chegar ao mercado de trabalho e ser só profissionais. Queremos ser a melhor versão profissional que conseguirmos.
“É preciso formar cada vez mais profissionais e não antevejo que haverá problema da sobrelotação por dois motivos. O primeiro é que há algumas faculdades que são quase dedicadas aos alunos estrangeiros. O segundo motivo é que o mercado de trabalho em veterinária está a crescer a um ritmo que permite acolher os atuais alunos [nacionais].” – Ricardo Chantre, presidente da FAMV
Mas nessa questão da valorização profissional, assistimos também a uma cada vez maior escolha pela especialização europeia. Como olha para esse movimento?
Sinto que vai continuar em crescimento. Não creio que será 100% da nossa realidade, continuaremos a ter veterinários generalistas, mas penso que vamos caminhar no sentido de termos o veterinário generalista que consegue fazer uma primeira abordagem ao diagnóstico e estabelecer uma primeira linha de tratamento e depois o paciente pode ser encaminhado para a especialidade (em certos casos).
Cada vez mais, os alunos querem saber como se obtém a especialização, que hoje é uma realidade apenas europeia, e esse será o caminho da medicina veterinária: não termos apenas o médico generalista, mas termos também o especialista que sabe muito de uma área.
E como olharia para a possibilidade de, no futuro, existirem colégios especialidades, no seio da Ordem dos Médicos Veterinários, como já existem noutras congéneres na área da saúde?
Eu sou muito favorável. Em fevereiro, no II Congresso Nacional de Estudantes de Medicina Veterinária, estive numa mesa-redonda em que também participou o senhor bastonário e deixei claro que esse vai ser o caminho nos próximos anos e não vale a pena remar contra a corrente: temos de assumir como um objetivo, ou uma ambição, a criação dos colégios [de especialidade]. Não vai ser um processo nem imediato, nem pouco complexo, termos especialistas conscientes do conhecimento que querem adquirir e especialistas dos colégios europeus conscientes do que querem transmitir.
Vai ser um trabalho em que os especialistas europeus trabalharão em proximidade com a Ordem e esta deve ouvi-los para criar esses colégios e começar o caminho de quem queira procurar uma especialização nacional sem ser preciso ir para fora.
Será um passo a dar pela profissão e é um sinal de valorização, de que queremos reter quem quer procurar mais conhecimento.
Nesse processo as faculdades também têm de ser chamadas? Lá fora é fundamental o papel dos hospitais universitários para as residências …
Sim, temos de ver essa aproximação da academia às necessidades que a Ordem identificar. Se for para estabelecer as residências em hospitais universitários para termos especialistas nacionais, não só acho que as universidades vão querer ter essas oportunidades, porque prestigiam as suas próprias instituições, como veem a necessidade de dar essa formação mais aprofundada aos profissionais que procuram especialização para ganharem também algum reconhecimento no serviço que prestam.
Será uma relação simbiótica na qual a universidade passa a ter profissionais especializados que conseguem transmitir conhecimento e para os profissionais que não precisam ir lá para fora procurar essas oportunidades.
A terminar, que mensagem deixa enquanto presidente da FAMV para quem vai iniciar o ano académico?
Sobretudo lembro que este é um caminho difícil, exigente, mas que vale a pena. Mesmo com todas as questões que falámos, esta é uma profissão extraordinariamente gratificante.
Queremos trabalhar enquanto Federação para que os estudantes de medicina veterinária tenham esse sentimento: que o curso que vão tirar vale a pena, que os interesses que têm são válidos, têm de ser acolhidos e ouvidos, e queremos trabalhar para ter uma proximidade com estes alunos que lhes permita participar nas discussões da profissão.
E para quem está já a acabar o curso que recado deixa?
Que todas as ansiedades, todos os momentos mais stressantes, mais exigentes têm de ser vistos como transformadores para depois sermos profissionais de excelência. Os últimos anos de curso podem ser avassaladores, mas que o caminho de terminar o curso e entrar na profissão da forma mais preparada possível vale a pena.
Sobrecarga do ponto de vista emocional e mental “não é, de todo, indicada para quem quer dedicar a vida a esta profissão”
Sentem que a necessidade de adaptação dos currículos das faculdades às novas necessidades do mercado de trabalho, nomeadamente nas áreas da comunicação – entre equipa e com clientes – será importante até para melhorar a saúde mental dos profissionais?
Toca em dois aspetos importantes. O primeiro é essa necessidade de adequar os currículos à evolução do papel do animal de companhia no lar das pessoas e as preocupações atuais com o bem-estar do animal. Hoje, um cão não é simplesmente um cão, mas sim mais um membro da família que passou a ter cuidados de saúde regulares.
Contudo, também sinto que há uma falta de perceção por parte do tutor do trabalho que o médico veterinário faz. Por exemplo, o tutor não percebe, ou poucos percebem, o porquê de o animal ser desparasitado. O animal é desparasitado pelo seu bem-estar, mas também para proteger a família porque há parasitas do animal que podem passar para os elementos humanos da família. O animal é vacinado contra a leptospirose, mas não percebem que se trata de uma doença zoonótica que pode passar ao tutor.
Em suma, concordo que os currículos têm de se adaptar a essa nova realidade do papel do animal de companhia, mas também devemos preocuparmo-nos em ter uma comunicação mais eficiente com os tutores para que estes deixem de ver o veterinário com desconfiança, que faz algo porque quer cobrar mais dinheiro, mas entendam que a proposta do veterinário é necessária e tem uma importância no bem-estar do animal e, no limite, no próprio bem-estar da família.
Isto é, os currículos têm de se adaptar no sentido de incluir as competências de comunicação com o tutor, para conseguirmos chegar um diagnóstico tecnicamente complexo e transmitir essa informação de forma que o tutor a perceba.
A mesma coisa dentro das equipas. Temos de perceber que o trabalho em medicina veterinária nunca se faz sozinho e é importante transmitir as noções de que é necessário trabalhar em equipa, saber liderar uma equipa, saber organizar uma equipa. Até são competências que vêm muito do associativismo e que hoje há pouco espaço para as ganhar [nesse contexto].
Esta falta de preparação para o trabalho em equipa e para a relação com o tutor torna-nos mais expostos aos problemas de saúde mental. Os estudos têm mostrado que os profissionais de medicina veterinária estão hoje com uma sobrecarga do ponto de vista emocional e mental que não é, de todo, indicada para quem quer dedicar a vida a esta profissão.