O Regulamento Europeu 2019/6 relativo aos medicamentos veterinários de 11 de dezembro de 2018 entrou em vigor a 28 de janeiro deste ano conforme o previsto. Tempo de mudança para a medicina veterinária. A alavanca de toda esta mudança chama-se antibiótico. Das 125 páginas do Regulamento, os termos “antibiótico/s”, “antimicrobiana/s” somados são citados 118 vezes. Paralelamente os termos “resistência/s” repetem-se por 33 ocasiões. Este regulamento, põe claramente no centro da atenção o Antibiótico e o seu Uso.
As razões são sobejamente conhecidas: a luta contra a resistência antimicrobiana, a inovação e lançamentos limitados nessa classe terapêutica por parte da indústria e o mau uso pelas profissões envolvidas no processo de prescrição e dispensa. Neste último ponto, o conceito de Uma Só Saúde, sublinha a importância comprovada das diferentes contribuições por parte do Homem, Animal e Ambiente para o acréscimo de antibiorresistências.
E a nós, médicos veterinários, que parte nos compete nesta luta? O recente Regulamento dá-nos uma ajuda.
1º Lembra-nos que toda a prescrição e dispensa de medicamentos deve ter como base a prescrição das especialidades veterinárias autorizadas no País, para todas as classes terapêuticas, incluindo os antibióticos.
2º Excepcionalmente, lembra-nos que podemos continuar a recorrer ao uso da “Cascata” definida no artigo 78º do Decreto-lei nº 148/2008 de 29 de julho, republicado pelo Decreto-lei nº314/2009, de 28 de outubro. Lembrar que mesmo antes da publicação do novo Regulamento, já o médico veterinário era obrigado a cumprir o uso da “Cascata”, desde 2008. Resumidamente, o uso em cascata1, acontece quando:
- a) o profissional usa um medicamento veterinário:
– numa espécie-alvo diferente, para a qual não estava autorizada,
– na espécie-alvo autorizada, para uma indicação diferente da autorizada
- b) não existindo o medicamento veterinário autorizado, é possível o uso de:
– um medicamento autorizado para uso humano,
– um medicamento veterinário autorizado noutro Estado Membro
- c) caso não seja possível nenhum dos cenários acima, pode ser usado um medicamento veterinário
preparado extemporaneamente (uma preparação medicamentosa, magistral ou oficinal).
O uso em cascata também é aplicável à prescrição de antibióticos.
A nova plataforma de Prescrição Electrónica Médico-Veterinária (PEMV), permite a traçabilidade de prescrições, em que a atenção à prescrição de antibióticos será redobrada para uma luta activa contra a antibiorresistência, responsável a nível mundial anualmente por cerca de 700 000 mortes humanas. No futuro, se o ritmo de resistência antibacteriana não for combatido urgentemente, através de programas educativos e legislação, estima-se que em 2050, teremos 10 milhões de pessoas mortas por bactérias antibiorresistentes2.
O médico veterinário quer na cedência ou prescrição habitual de antibióticos veterinários autorizados em Portugal, usando ou não a “Cascata”, deve ter em conta as orientações de antibioterapia emanadas pelo AMEG (Antimicrobial Advice Ad Hoc Expert Group) da Agência Europeia do Medicamento (EMA), para além das indicações do RCMV dos medicamentos, entre outras considerações.
O AMEG categoriza em 4 classes3, os antibióticos para uso veterinário, de forma a um uso mais racional, responsável e seguro:
Baseado nesta matriz A, B, C e D, diria que a maioria dos CAMV precisa de transformar os seus hábitos de prescrição, pois pela percepção e experiência de terreno, existem muitos pontos de possível melhoria, para o grande Bem Comum da Uma Só Saúde. Dou-vos dois exemplos para reflexão:
Exemplo A: O gato que chega ao final da tarde com febre, com um tutor que demonstra séria preocupação com os gastos que irá ter para além da simples consulta. O que hipoteticamente por vezes fazemos? Numa tentativa de resolver de forma simples, como o tutor espera, aliviando a sintomatologia do animal, mas secundarizando o diagnóstico. Anti-inflamatório e… e tantas vezes da Categoria B ou C… Como é compreensivelmente difícil lidar com as limitações económicas dos tutores, no entanto, devemos de forma quase metódica, focar no diagnóstico, para uma medicina de maior qualidade para o profissional, para o tutor e acima de tudo, para o animal. Assim uma vez mais, devemos recusar o uso impulsivo de antibióticos sem evidência científica para tal.
Exemplo B: A cirurgia e a antibioterapia, com uma panóplia de cenários, foquemo-nos num procedimento rotineiro de ovariehisterectomia electiva planeada na espécie canina. Administramos antibiótico? Intravenosamente 30 minutos antes? Depois da cirurgia? E quantos dias? E finalmente, precisamos realmente de o administrar? Segundo as orientações de prescrição australiana veterinária4, numa cirurgia considerada limpa, sem complicações, não há recomendação de antibioterapia, recomendação esta, com forte evidência científica.
Deixo o desafio a cada CAMV, de questionar os protocolos actuais de antibioterapia, quer na escolha da substância activa, quer na combinação das mesmas, quer na duração de tratamentos e sobretudo na real necessidade do uso do Antibiótico.
Este movimento, implicará o reforço de outras boas práticas:
– rigorosa higiene e assepsia em cenários cirúrgicos, nos internamentos em animais com vias parentéricas, entre os elementos da equipa nas centenas de interacções entre pares e pacientes;
– monitorização do ratio de diagnóstico, indicador de uso de provas diagnósticas, para a prática de uma medicina veterinária orientada para o diagnóstico;
– investigação dos casos clínicos de sinais clínicos vagos, evitando a prescrição medicamentosa diagnóstica;
– reforço da técnica anestésica, cirúrgica e hemostática para redução de tempos cirúrgicos, diminuição do risco de contaminação e de complicações.
Recomendo a leitura detalhada da infografia e o relatório a AMEG para maior detalhe e criação de protocolos de antibioterapia. Toda a mudança implica desconforto e esforço, ainda mais na prescrição, lembrando que até mesmo o resistir, já é por si, o início do processo de mudança.
Sugestão musical: Boy Harsher – The Runner (https://www.youtube.com/watch?v=8dtjK0sSs-o)
Bem Hajam!
Referências bibliográficas:
1DGAMV- DSMDS, Nota interpretativa sobre o Uso da “Cascata”, 06/2021. https://www.dgav.pt/wp-content/uploads/2021/06/USO-EM-CASCATA-Nota-interpretativa-DGAMV-final.pdf
2O’Neill J. Tackling drug-resistant infections globally: final report and recommendations. Government of the United Kingdom; 2016 Jan. https://amr-review.org/sites/default/files/160525_Final%20paper_with%20cover.pdf.
3Relatório completo do AMEG: bit.ly/30ZEuRi
4Australian Veterinary Prescribing Guidelines Companion animal surgery guidelines, The University of Melbourne, 2022. https://vetantibiotics.fvas.unimelb.edu.au/surgery-guidelines/
* Médico veterinário (drpedro.fabrica@gmail.com)
*Artigo de opinião publicado originalmente na edição n.º 158 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de março de 2022.