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Animais de Companhia

Medicina de reprodução com crescente interesse de veterinários e tutores

Seja por motivos afetivos ou por objetivos ligados à comercialização de determinadas raças, a fertilidade dos animais de companhia e a medicina de reprodução em veterinária têm vindo a ser cada vez mais temas de interesses entre os tutores e, por conseguinte, entre veterinários. A VETERINÁRIA ATUAL falou com Sara Brito e Paulo Borges que se dedicam a esta temática e abordam os desafios e as técnicas utilizadas para garantir o sucesso da reprodução animal.

Nas palavras de ambos os médicos veterinários consultados pela VETERINÁRIA ATUAL é notório que o assunto da fertilidade e da reprodução dos animais de companhia tem vindo a crescer entre os tutores. “Nos últimos anos tem-se verificado um aumento do interesse dos tutores na fertilidade dos seus animais, não só pelo constante aumento da popularidade das raças puras, mas também, muitas vezes, devido a fatores sentimentais ou financeiros”, conta a médica veterinária Sara Brito, do Anicura Alma Veterinária – Hospital Veterinário, que tem dedicado parte da vida profissional a esta temática.

 

Também Paulo Borges tem particular interesse pela medicina de reprodução dos animais de companhia e vem notando uma atenção crescente por esta temática entre os tutores e os profissionais. O médico veterinário do Hospital Veterinário do Atlântico, e que é responsável pelo Centro de Reprodução Veterinário do Atlântico, revela que é procurado “por vários médicos veterinários ou futuros médicos veterinários, seja do País ou do estrangeiro, que procuram, através de estágios, adquirir capacidades na área da reprodução”, demonstrando que a disciplina da reprodução “tem vindo a crescer bastante no seio da comunidade veterinária, o que me apraz, porque mesmo sabendo que há ainda imenso caminho a desbravar, vejo que estamos a evoluir no bom sentido”.

No que diz respeito aos tutores, o médico veterinário identifica no interesse crescente os mesmos motivos do apontados pela colega. “Uma minoria de tutores quer reproduzir o seu animal de companhia tendo em conta o laço afetivo entre ambos”, refere, lembrando que a estes “cuja formação é, frequentemente, muito rudimentar neste campo deve ser facultada toda a informação necessária para que possam tomar uma decisão consciente e informada sobre o desejo de reproduzirem os seus animais”.

 

A outra vertente de interesse entre tutores nomeada por Paulo Borges diz respeito aos criadores. E entre estes encontram-se os que optam “por ser selecionadores, onde o principal foco é aprimorar determinada raça e, para tal, seguem rigorosos critérios éticos, estéticos e cada vez mais com um enfoque na saúde dos seus animais” e os que podem ser classificados como multiplicadores, cujo principal foco é comercial e o objetivo é alcançar uma maior produção de cãs e gatos. “Estes sim, já têm uma ideia bem mais estruturada da complexidade da reprodução de um animal de companhia, no entanto, sendo que a formação dos criadores não é de fácil acesso e é opcional, passa pelos médicos veterinários a responsabilidade, pelo menos ética, de capacitar estes criadores”, explica o veterinário.

Neste âmbito, para Paulo Borges existem aspetos importantes a ter em consideração no que à medicina de reprodução diz respeito, pois, apesar de o mercado da criação do animal de raça estar bem enraizado na sociedade, o veterinário considera “de boa índole que este seja acompanhado de bom senso e algum escrutínio”. “Devemos ser exigentes, respeitando as diversas perspetivas, ser críticos de forma construtiva e sobretudo proativos nessa mesma crítica, tentando dar o exemplo ou indicando aos criadores o caminho a seguir”, numa perspetiva de exigência, na qual o papel do médico veterinário será cada vez mais importante e “devendo ser o vetor mais informado e fidedigno, com informação qualificada, o que lhe dá alguma responsabilidade na função primordial da educação e sensibilização dos criadores”, acrescenta.

 

Será nessa relação privilegiada que se constrói entre o veterinário e os criadores que, diz Paulo Borges, o profissional de saúde animal consegue incutir “a realização das ditas boas práticas de uma criação responsável, respeitando, assim, os pilares do bem-estar e ética animal, onde o principal resultado deverá almejar em prioridade a saúde do animal, descurando talvez um pouco aquilo que se tem vindo a observar nas últimas décadas, que é uma desmensurada preocupação com o valor estético dentro de cada raça”.

Ainda no que diz respeito ao papel dos tutores e criadores, Sara Brito conta que no campo da medicina reprodutiva os profissionais são muitas vezes confrontados com inseminações artificiais realizadas pelos próprios criadores “sem sucesso e/ou com baixa prolificidade das fêmeas”. Este é o motivo que leva a veterinária a considerar que a otimização da fertilidade da fêmea é fundamental quando se utiliza inseminação artificial, sendo que esta técnica “tem ganho muita popularidade, pois permite reduzir a distância física entre macho e fêmea, sendo possível utilizar sémen de alta qualidade de qualquer parte do mundo, diminuindo stresse no transporte, possível consanguinidade e ainda transmissão de alguns agentes infeciosos”.

E quando o animal de companhia é infértil?

 

Além das questões que levam ao recurso à medicina de reprodução nos animais de companhia, por motivos comerciais ou afetivos, outra matéria que está interligada é a infertilidade.

Paulo Borges – que fez o estágio de final do curso de Medicina Veterinária na Escola Veterinária Nacional de Alfort, em Paris e realizou a residência do Colégio Europeu em Reprodução Animal (ECAR) no Centre d’Etudes en Reproduction des Carnivores (CERCA) – começa por reconhecer que “este é, de facto, um tema bastante complexo”.

De forma simplista, pode dizer-se que a infertilidade nos animais de companhia “pode ser definida como a dificuldade de se reproduzir em função de um determinado período de tempo ou em função do número de cópulas”, explica o veterinário, sendo que nos animais “frequentemente se considera principalmente a infertilidade em relação ao número de cópulas sem sucesso, ao passo que no ser humano o termo de infertilidade relaciona-se como um período temporal em que não houve sucesso em obter reprodução, amiúde definindo-se um ano de tentativas sem sucesso”.

Contudo, a complexidade do tema está relacionada com o facto de a taxa de prevalência de infertilidade ser “bastante variável em função da espécie, raça e/ou género, o que torna os números de incidência sobre a infertilidade bastantes escassos, demasiado abrangentes e, portanto, relativamente pouco fiáveis”, explica o veterinário.

A mesma visão é partilhada por Sara Brito. “É complicado aferir com certeza qual a taxa de fertilidade real na cadela uma vez que esta varia consoante a raça analisada e ainda com os critérios utilizados na sua classificação”, refere a veterinária, que desde a Faculdade de Medicina Veterinária se interessa pelo tema da reprodução em animais de companhia.

Apesar de alguns canis na Europa publicarem resultados anuais de fertilidade das suas fêmeas fazem-no com base em casos de cruzamentos sem qualquer intervenção humana – avaliação do cio da fêmea/inseminação artificial – o que poderá motivar taxas de fertilidade mais baixas do que o esperado. Ainda assim, do que é conhecido da evidência científica, “estudos controlados realizados em França revelaram uma taxa de fertilidade que ronda os 80% em cadelas de raça pura cujo cruzamento – natural ou por inseminação artificial – foi realizado de forma controlada, isto é, com acompanhamento através de citologia vaginal, doseamento de progesterona”, explica a veterinária.

Sobre a infertilidade no cão, Paulo Borges refere ainda que “nos últimos anos, tem-se vindo a verificar uma diminuição na qualidade seminal em várias espécies” ao mesmo tempo que se tem identificado no sémen e no sangue “a presença de determinados químicos ambientais, mais conhecidos por perturbadores endócrinos, como Ftalatos ou PCB’s (bifenil policlorado)”. Na visão do veterinário, “visto viver em proximidade com o homem, o cão pode ser considerado como um animal-sentinela, o que significa que, quando exposto a determinados agentes, pode apresentar sintomas semelhantes ao homem”, nomeadamente em matéria de fertilidade. “Vários estudos recentes demonstram a diminuição da fertilidade no cão como fator preditivo da fertilidade do homem, demonstrando que o estudo reprodutivo em cães pode ter um papel importante a desempenhar na nossa sociedade”, frisa.

“Visto viver em proximidade com o homem, o cão pode ser considerado como um animal-sentinela, o que significa que, quando exposto a determinados agentes, pode apresentar sintomas semelhantes ao homem”, nomeadamente em matéria de fertilidade.  – Paulo Borges, médico veterinário do Hospital Veterinário do Atlântico

Mas além dos fatores ambientais, que até colocam em causa a fertilidade nos humanos, que outras causas podem estar por trás da infertilidade dos animais de companhia?

“Existem inúmeras causas que podem levar ao declínio da fertilidade, no entanto, o maneio reprodutivo inadequado é em 40% a 80% dos casos a causa para a classificação de algumas fêmeas como «inférteis»”, esclarece Sara Brito, acrescentando que a “infertilidade do macho é a segunda causa mais frequente para a falha gestacional”. Por esse motivo, de modo a conhecer o cenário concreto e assegurar o sucesso da reprodução “deve ser não só avaliado o sémen a utilizar, como se deve questionar o sucesso reprodutivo do macho noutros acasalamentos”.

Outras causas para a infertilidade nomeadas pela veterinária incluem alterações do ciclo éstrico, com intervalos inter-éstricos aumentados ou diminuídos, alterações hormonais (hipotiroidismo, hipoluteoidismo, hiperadrenocorticismo), quistos/tumores ováricos, alterações anatómicas da vulva/vestíbulo/vagina, patologia uterina (endometrite, hiperplasia quística do endométrio, piómetra, alterações congénitas) e a ingestão de fármacos. Existem ainda múltiplas causas infeciosas que podem levar a infertilidade, como por exemplo o Herpesvirus Canino, a brucelose e outros agentes bacterianos.

Relativamente ao cão, Paulo Borges sublinha que entre os agentes bacterianos mais conhecidos está a bactéria Brucella canis “que segundo estudos recentes se está a espalhar pelo panorama europeu como nunca antes se viu”. Apesar de este agente ser considerado uma zoonose menor, o que significa que tem a capacidade de ser transmitida ao homem, “com o disseminar desta infeção, os veterinários devem estar ainda mais atentos e responder a mais este perigo sanitário, em particular quando estão perante animais que apresentam problemas de foro reprodutivo, embora os sintomas da Brucella canis não sejam específicos à parte genital”.

Infertilidade: quando e como tratar

Tendo em conta o cenário descrito por ambos os veterinários, a dificuldade na escolha do tratamento indicado para cada caso de infertilidade prende-se diretamente com a dificuldade de diagnóstico do agente ou fator que causou a infertilidade.

“No entanto, em medicina veterinária, com o crescimento e melhoramento da qualidade dos meios de diagnóstico por imagem, seja ecografia, tomografia computorizada ou até mesmo ressonância magnética, aliado à descoberta de novos fármacos, nomeadamente a utilização de moléculas agonistas GnRH e de outras hormonas que agem a nível do eixo hipotálamo-hipófise, hoje em dia temos mais ferramentas para abordar problemas endócrinos e hormonais, relacionados também eles à infertilidade”, refere Paulo Borges.

Tal como Sara Brito já havia mencionado, “a principal causa para a infertilidade na cadela continua a ser o maneio reprodutivo inadequando e, assim sendo, a recomendação passará sempre pelo acompanhamento médico veterinário desde cerca do 5º dia de pró-estro através de citologia vaginal e/ou doseamento de progesterona”. Segundo a veterinária, “os doseamentos devem ser mantidos até confirmação efetiva da ovulação e após a deteção do pico de LH e dia da ovulação são determinados os melhores dias para o acasalamento/inseminação artificial”.

O ponto-chave para obter bons resultados num maneio reprodutivo “continua a ser escolha adequada do momento do cruzamento ou da inseminação artificial” e no caso de a escolha recair sobre a segunda hipótese deve garantir-se “a correta preparação do sémen com adequada deposição no trato reprodutivo feminino (vaginal vs intrauterina)”. – Sara Brito, do Anicura Alma Veterinária – Hospital Veterinário

Caso haja falha de conceção em duas tentativas controladas, Sara Brito diz que se deve “investigar a fundo a causa da infertilidade da fêmea através de mais exames complementares de diagnóstico”, como seja o exame físico completo com anamnese cuidada relativamente ao ciclo éstrico, ecografia abdominal, análises gerais, doseamentos hormonais ou despistes de doenças infeciosas. “Após identificação da causa da infertilidade, o tratamento deverá ser direcionado”, frisa.

Questionada sobre as taxas de sucesso, a veterinária refere que o ponto-chave para obter bons resultados num maneio reprodutivo “continua a ser escolha adequada do momento do cruzamento ou da inseminação artificial” e no caso de a escolha recair sobre a segunda hipótese deve garantir-se “a correta preparação do sémen com adequada deposição no trato reprodutivo feminino (vaginal vs intrauterina)”. Segundo garante Sara Brito, “os estudos indicam taxas de fertilidade elevadas utilizando a inseminação artificial, 80-90% com sémen fresco ou refrigerado, 67-84% com sémen congelado com deposição intrauterina”.

“Os estudos indicam taxas de fertilidade elevadas utilizando a inseminação artificial, 80-90% com sémen fresco ou refrigerado, 67-84% com sémen congelado com deposição intrauterina”. – Sara Brito, do Anicura Alma Veterinária – Hospital Veterinário

No Anicura Alma Veterinária – Hospital Veterinário, Sara Brito diz que é possível fazer um acompanhamento completo da fêmea, e macho reprodutor, desde o início, “com realização de citologia vaginal e doseamentos de P4 com resultados obtidos no momento da consulta”. “Dispomos de equipamento para inseminação artificial e de meios complementares de diagnóstico necessários para o diagnóstico de gestação ou causa de infertilidade e sempre que necessário estão disponíveis também outros tratamentos, hormonais por exemplo, específicos para cada patologia identificada”.

Da mesma forma Paulo Borges, refere que no Centro de Reprodução Veterinário do Atlântico tem à disposição todo o equipamento veterinário com tecnologia de ponta, que permite estudar os casos exaustivamente de forma a chegar aos mais variados diagnósticos, e as técnicas assistidas de reprodução tanto no cão, como nos felídeos. Paulo Borges volta a frisar que “a taxa de sucesso vai depender da capacidade de conseguir chegar ao diagnóstico em determinada situação”. Nos cães existem algumas limitações, relativamente à fisiologia reprodutiva muito específica desta espécie, e “dentro das técnicas de reprodução assistida (ART) disponíveis, conseguirmos apenas fazer inseminação artificial e criopreservação de gâmetas masculinos”, explica o veterinário, lembrando que “nesta espécie não temos ainda à nossa disposição ART como FIV (fertilização in vitro) e ICSI (injeção intracitoplasmática de espermatozoide)”. No caso dos gatos, sobretudo num contexto de investigação, já é possível realizar FIV.

“Na minha prática diária abordo variadíssimos casos de infertilidade e, segundo a minha experiência, uma das chaves para o sucesso é a abordagem do contexto médico-sanitário da coletividade, um pouco como se realiza em animais de produção, e um dos índices que melhoram quando melhoramos o anterior, são efetivamente um incremento da taxa de fertilidade e de prolificidade”, refere Paulo Borges. Relativamente ao paciente individual, o veterinário considera que “a grande dificuldade em pequenos animais prende-se com a falta de meios complementares de diagnóstico que permita obter um diagnóstico e a multitude de variáveis que podem incidir na fertilidade”. No entanto, assegura, “na prática clínica em fêmeas obtemos resultados relativamente aceitáveis, ao passo que em a abordagem da infertilidade em machos continuamos a ter resultados bastante dececionantes”.

Nessa medida, em contexto de centro de atendimento médico e veterinário, o mais importante para o veterinário “é não usar ou diria abusar de tratamentos padrão sem ter uma suspeita diagnóstica forte e fazer os exames complementares suficientes para a comprovar”. Apesar de acreditar que qualquer veterinário pode abordar o fundamental da infertilidade e propor determinados exames de primeira linha, mediante a complexidade de alguns casos, Paulo Borges considera fundamental a referenciação “para um colega que esteja melhor preparado/equipado” e, neste campo, o veterinário considera que se está “a caminhar cada vez mais no sentido da especialização e da capacitação dos nossos profissionais, enaltecendo a qualidade de tratamento dos nossos animais e aumentando o contato, comunicação e respeito entre os pares na nossa classe”.

Paulo Borges termina a lembrar alguma sensibilidade que ainda rodeia o tema da fertilidade e da medicina de reprodução nos animais de companhia. “Junto da comunidade médico-veterinária, em geral, a reputação que os criadores têm não é a melhor e também sei que o contrário também se verifica, sendo que esta realidade é transversal a muitos países”, reconhece o veterinário. No entanto, por ter trabalhado intensamente na última década com os criadores, Paulo Borges considera que “é possível através de paciência, método, rigor e muita dedicação, construir com os criadores uma relação verdadeiramente vindoura, de confiança, de benefício bilateral, através da qual quem verdadeiramente ganha são os animais”.

Afinal, recorda, a formação não é inerente à profissão de criador, “ao contrário da nossa e que nós, os médicos veterinários, devemos ser, talvez, a quem cabe a responsabilidade/função de sensibilizar ou capacitar os criadores e melhorar as práticas e gestão das coletividades”. O resultado de um trabalho conjunto e de uma relação profícua entre médicos veterinários e criadores será, nas palavras de Paulo Borges, “a melhoria das condições de vida dos animais, assim como um melhor resultado do trabalho dos criadores, o que significa, na verdade, que teremos uma melhor saúde nos nossos futuros pacientes”.

*Artigo publicado originalmente na edição n.º 158 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de março de 2022.

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