O movimento cívico Quebr’a Corrente liberta cães acorrentados em todo o País com a ajuda de voluntários e o apoio de médicos veterinários. “Embora existam situações de negligência e até algumas de maus-tratos e abandono, a grande maioria dos casos acontece por desconhecimento dos detentores do sofrimento que o acorrentamento causa aos animais”, afirma Vanessa Arrobas.
O Quebr’a Corrente – Movimento de Libertação de Cães Acorrentados foi criado em dezembro de 2017, por Tânia Mesquita, e desde aí já libertou centenas de cães acorrentados, explica Vanessa Arrobas, que também faz parte do movimento. Todas as ações são levadas a cabo por voluntários, em colaboração com entidades locais, como juntas de freguesia ou câmaras municipais. “Quando necessário, recorremos a veterinários que alguém conhece na zona da situação em causa e temos tido sempre uma ótima resposta de todos os médicos que contactamos.”
O movimento surgiu na zona de Santarém e aí tem tido mais ação, tendo também veterinários com quem colabora mais amiúde, mas, dada a amplitude do projeto, foi necessário criar uma rede de contactos nacional: “Como recebemos apelos de todo o País, começámos a criar uma rede de voluntários e contactos para podermos resolver estas situações.”
Vanessa Arrobas explica à VETERINÁRIA ATUAL que, “embora existam situações de negligência e até algumas de maus-tratos e abandono, a grande maioria dos casos acontece por desconhecimento dos detentores do sofrimento que o acorrentamento causa aos animais”. E acrescenta: “As pessoas acham que lhes dando água e alimento os cães ficam bem assim, não têm consciência de que o animal sente… frio, calor, dor, solidão, tristeza.”
Presos por um crime que não cometeram
O movimento liberta os cães acorrentados através da criação de espaços exteriores vedados, seguros e adequados às suas necessidades, e sempre em colaboração com os cuidadores.
Vanessa salienta que, “à partida, o seu âmbito de atuação não passaria por situações que pudessem consubstanciar maus-tratos e, nessa medida, que requeressem imediata assistência médico-veterinária”, já que estas devem ser encaminhadas para as autoridades competentes. “No entanto, são inúmeras as situações em que, como intermediários, e a par da nossa intervenção, temos diligenciado no sentido de obter esta ajuda para acorrer a necessidades e cuidados mais urgentes, para isso recorrendo a veterinários locais”, refere.
A responsável adianta que, “excetuando as situações que ocorram na zona de Santarém, cidade onde nasceu o movimento, não podemos dizer que tenhamos um veterinário habitual que se encontre alocado ao projeto a quem recorramos sempre que se justifique, mas alguns médicos veterinários, consoante o local onde tenha lugar a respetiva situação que nos é reportada, vão colaborando connosco”.
Sensibilização é a principal ‘arma’
Vanessa Arrobas explica que, na esmagadora maioria dos casos, os detentores se disponibilizam para resolver a situação, em conjunto com os voluntários do movimento, quando se apercebem dela. Perante a falta de meios financeiros de muitos cuidadores para fazerem uma vedação para proteger o animal sem estar acorrentado, o movimento avança com campanhas de crowdfunding e oferta de trabalho voluntário para dar uma solução a estas situações. “É assim que temos resolvido a maioria dos casos”, afirma.
“Abordamos as situações sempre de forma positiva, tentando não julgar, sensibilizando os detentores para a natureza do animal, que precisa de espaço e exercício, de ser passeado e de socializar, além de água, alimento e cuidados de saúde.”
Os voluntários do Quebr’a Corrente tentam perceber sempre o porquê da situação e, como em muitos casos a resposta é “Para o cão não fugir”, surge então a necessidade de se fazer uma vedação para que o animal fique seguro, mas tenha liberdade de movimentos e um espaço para descansar. “Temos também fornecido e construído muitas casotas para estes animais terem mais conforto”, diz Vanessa Arrobas.
Dez anos confinada a uma casinhota
As justificações para manter o animal preso são, segundo a responsável, muitas vezes “impensáveis”: “’Está preso porque estraga as flores’ e outras bem mais ‘fúteis’, mas tentamos sempre não julgar e sugerir alternativas, levando o tutor a colaborar connosco para libertar o animal.”
A voluntária relata várias situações que aconteceram nos últimos tempos, como um caso no Cartaxo: “Fomos libertar um cão que estava acorrentado e deparámo-nos com uma outra cadela que estava confinada a uma casinhota mínima de cimento, e soubemos que estava ali há dez anos sem nunca sair sequer para ser passeada.” O que aconteceu a seguir revela a emoção do animal: “Quando a retirámos sentiu-se mal, tivemos de chamar o médico veterinário, mas depois verificou-se que estava bem alimentada e tratada, sem qualquer doença aparente e começou a andar. Andou durante mais de duas horas e não queria parar de andar, cheirar e tocar as plantas e tudo à sua volta.”
Depois de explicada a situação, os tutores perceberam a situação e disponibilizaram-se para a alterar. “O senhor explicou-nos que o filho emigrou e que as cadelas – há uma outra já velhota – ficaram ali.” A responsável afirma que “é uma situação que ainda estamos a acompanhar”, explicando que “tentamos sempre que algum dos voluntários vá acompanhando a situação depois de resolvida para ver como as coisas estão a correr e se é necessário mais algum apoio”.
Nos casos em que os animais estão presos e abandonados ou que os detentores não se mostram interessados em resolver a situação, o Quebr’a Corrente tenta arranjar Famílias de Acolhimento Temporário (FAT) ou adotantes para os cães.
SEPNA de ‘mãos atadas’
Vanessa adianta que, em muitos casos, já houve denúncias às autoridades de que estão ali animais presos e em más condições. “Mas o SEPNA vai, verifica os documentos, vacinas obrigatórias e se têm água e alimento, e não pode fazer mais nada, porque a lei não considera maus-tratos o acorrentamento, e isso é que tem de mudar.”
Ainda assim, alegra-se porque existem “muitas situações com ‘finais felizes’, onde os tutores até se envolvem depois para dar o exemplo a outras pessoas da zona, explicando que também achavam que não havia mal nessa situação, mas que não, que assim o animal está muito melhor”.
Vanessa conta também uma situação em Lisboa, “em que estamos a colaborar com a Junta de Freguesia da Penha de França para libertar um cão, o Luca, que estava acorrentado e tinha um problema de saúde visível, estava quase sem pelo e teve de receber logo cuidados veterinários”.
Na página crowdfunding que o Quebr’a Corrente criou para esta situação, explica-se que, “após ser submetido a uma avaliação médico-veterinária, foi detetado um tumor testicular responsável por provocar uma produção exagerada de estrogénio, o que explica o aumento dos mamilos e a queda de pelo. Foi ainda detetado um sopro no coração”. Tendo em conta o diagnóstico, o Luca foi submetido a uma intervenção cirúrgica ainda em julho do ano passado, e está “a recuperar favoralmente”.
O movimento salienta ainda que “a tutora está a acompanhar todo o processo e a colaborar connosco no sentido de garantir a recuperação total do Luca, bem como um espaço livre de correntes que lhe permita viver em liberdade”.
Alguns casos de gatos e cavalos
Apesar de ser raro, Vanessa admite que o movimento já lidou com casos de gatos presos. “Se para um cão é uma tortura estar acorrentado, para um gato é inimaginável”, lamenta. E recorda que: “Também já nos chamaram para tentarmos ajudar em situações de cavalos negligenciados, o que, infelizmente, ainda acontece nas zonas rurais, o cavalo é um animal que muitas vezes é deixado ‘para ali, ao Deus dará.’”
Vanessa Arrobas refere igualmente casos em que o movimento conseguiu prevenir o acorrentamento. “Tivemos, por exemplo, um caso recente no Algarve, onde uma senhora nos contactou para saber se a podíamos ajudar porque senão teria de prender o cão no quintal. Pediu-se orçamentos e conseguimos um valor para o material da vedação que a senhora disse que podia pagar, arranjámos voluntários para fazer a vedação e o cão nunca chegou a estar preso.”
Voltando às questões de saúde, a responsável do Quebr’a Corrente salienta que: “Na maior parte dos casos, os animais precisam de cuidados básicos, como desparasitações, e até conseguimos uma parceria com uma marca de desparasitantes que nos oferece pipetas.”
Sobre a sensibilização, adianta que “o movimento também já levou a cabo algumas ações em escolas, para chamar a atenção para o problema dos cães acorrentados. Temos de apostar na educação das nossas crianças para evitar estas situações”.