Carla Monteiro conta à VETERINÁRIA ATUAL como é a vida de um veterinário num jardim zoológico. A médica veterinária do Zoo Santo Inácio, em Avintes, fala da importância que estes espaços têm na conservação de espécies ameaçadas, de como esse trabalho se reflete nos indivíduos que vivem em habitats naturais e do papel essencial que podem ter na sensibilização da população para “a diminuição impressionante da biodiversidade animal e vegetal”.
Estamos a fazer esta entrevista dias depois de os Estados Unidos da América anunciarem que o pinguim imperador passava a integrar a lista de espécies ameaçadas de extinção e de o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) ter divulgado no Relatório Planeta Vivo 2022 que o número de população animal selvagem diminuiu 69% desde 1970. É cada vez mais evidente que a lista de espécies ameaçadas está a crescer a um ritmo acelerado?
É verdade e há vários fatores implicados: As alterações climáticas e todas as ações diretas do homem, que têm um papel importante, como a ocupação dos habitats naturais e a desflorestação.
Estamos a alimentar uma situação insustentável, com uma redução de espécies a todos os níveis e em todos os grupos de animais e de plantas.
Só na Europa, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), já estão catalogadas 1677 espécies ameaçadas de extinção entre animais, plantas, árvores …
Acontece tanto a nível global como local. Por exemplo, há dois ou três anos surgiu uma infeção fúngica em salamandras que dizimou quase 90% da população desta espécie nos Países Baixos. Depende de vários fatores, mas é uma situação preocupante.
Que papel podem ter os zoológicos neste trabalho da conservação das espécies ameaçadas?
Têm um papel bastante abrangente e importante a nível da conservação das espécies ameaçadas, por exemplo, entrando nos programas de reprodução. No caso da Europa, os programas de reprodução estão ao abrigo da Associação Europeia de Zoos e Aquários (EAZA) – denominam-se Ex-situ European Programme (EEP) − e têm como objetivo vital não só aumentar o número de indivíduos, como também a variabilidade [genética dentro] da espécie.
Contudo, os programas de reprodução têm um trabalho diversificado que não é só aumentar o número de indivíduos, já que cada instituição zoológica que detém espécies ao abrigo desses programas tem indivíduos que dão informações importantíssimas para a espécie – seja em termos de material genético, citológico, orgânico – que podemos utilizar para ter maior conhecimento não só a nível de patologias, como também da fisiologia, da componente anatómica ou nutricional. Todas estas informações que cada zoo detém de todas as espécies a seu encargo são valiosas para essa mesma espécie.
No caso da EAZA, cada programa de reprodução tem um grupo de indivíduos que trabalha sobre essa espécie – são veterinários, biólogos, nutricionistas, responsáveis técnicos – e recebem toda a informação de cada um dos zoos e tentam elaborar um quadro geral sobre a espécie. Um dos pontos-chave de cada um desses grupos são os manuais de boas práticas que têm bastantes dados para que cada um dos grupos possa utilizar e melhorar o seu trabalho com cada uma das espécies.
Dentro da EAZA existe igualmente o biobank, conhecido também como o frozen zoo, e esse grupo recebe amostras de sangue, biológicas, reprodutivas e armazena o material congelado que permite elaborar o histórico de parâmetros hematológicos, bioquímicos e outros de uma espécie.
“O trabalho de um médico veterinário num zoo é um trabalho multidisciplinar, tem os momentos típicos de medicina veterinária – em que é preciso avaliar e estudar a medicina terapêutica, a cirurgia – mas tem toda a outra parte que associada ao maneio, à estrutura social e hierárquica do grupo, à nutrição e tudo isto pode ser investigação”
Esse conhecimento aprofundado que os zoológicos têm construído sobre as espécies nos programas de conservação e reprodução vai ajudar na conservação das espécies no meio selvagem?
Claro. Os ex situ programmes são todos os programas de reprodução das espécies fora do seu habitat natural e além de garantir o número de indivíduos, fornecem muita informação porque há espécies cujo conhecimento médico-veterinário é reduzidíssimo. Nesse sentido, toda a informação que possamos obter [com os exemplares em cativeiro] vai melhorar o conhecimento da espécie – a nível de comportamento social, hierárquico, etc. – que é essencial para depois fazer a reintrodução mais tarde. No trabalho ex situ cada EEP tem um grupo de trabalho multidisciplinar cujo objetivo é compilar o máximo de informação da espécie para termos melhor conhecimento. E funciona muito bem o trabalho entre os zoos, há uma rede de trabalho superinteressante e a informação que temos pode ser vista por outros zoos que tenham estas mesmas espécies.
Com as espécies que temos podemos apoiar outros projetos de conservação in situ, no habitat natural, não só do ponto de vista do conhecimento, mas também enviando pessoal que trabalha com essa espécie ex situ e formar pessoas que trabalham com a espécie no seu habitat natural em práticas de contenção, de maneio, de anestesia.
Há outro trabalho que se consegue fazer nos zoos que passa pela sensibilização das pessoas para esta problemática da diminuição impressionante da biodiversidade animal e vegetal. É mesmo importante que as pessoas percebam que todas as chamadas de atenção que se veem na televisão e nas notícias são mesmo importantes, que percebam que é real. Não é de agora que se fala, mas agora está a atingir proporções preocupantes. E porque os zoológicos são locais que as pessoas visitam, não só para ver animais, é importante que sejam sensibilizadas para a problemática da redução do número de espécies e qual a importância destas na natureza.
Que resultados pode o Zoo Santo Inácio apresentar nos programas que integra de conservação de espécies em vias de extinção?
Em termos gerais, na coleção animal do Zoo Santo Inácio, existem atualmente 29 espécies animais ao abrigo das EEP, com diferentes estatutos de conservação, desde os criticamente ameaçados, até aos menos preocupantes. Além de todas as informações relevantes que podemos obter com o contacto próximo destas espécies em cativeiro – do ponto de vista médico, comportamental, patologias características da espécie, etc. – há que acrescentar também os cerca de 150 nascimentos que afortunadamente obtivemos, dos quais 70 estão incluídos nas espécies ameaçadas e criticamente ameaçadas. Estes indivíduos, por sua vez, poderão contribuir para a manutenção de outras populações geneticamente estáveis e saudáveis noutros zoos de acordo a avaliação livro genealógico – studbook – e, em última instância, com reintrodução no habitat original.
Um dos exemplos que temos ouvido mencionar mais frequentemente é a diminuição do número de efetivos de abelhas. As pessoas estão alerta para a importância deste inseto na cadeia natural e de como esta questão em particular tem importância para a saúde do planeta?
Todos têm importância na vida no planeta. Há plantas e vegetais que só se propagam e reproduzem por ação externa das abelhas e sem as abelhas a vida vai ficar verdadeiramente em risco.
As nossas ações podem ter um impacto direto e negativo e é mesmo importante que as pessoas percebam que tudo aquilo que se faz causa dano na terra e na natureza e tem, realmente, um efeito. Por mais pequeno que se possa pensar que é, que não vai ser o papel que se deita hoje para o chão que vai ter impacto, na verdade vai, porque somos uma população de milhões e se toda a gente tomar uma atitude negativa, por mais pequena que seja, tem um impacto gigante.
Por isso, é mesmo importante fazermos a sensibilização e aproveitamos quando as pessoas vêm ao zoo para sensibilizá-las e para que percebam porque os animas estão aqui, qual a importância dos animais neste local e o que podemos fazer para que estes animais possam repovoar parte do seu habitat natural.
O trabalho de um zoo é verdadeiramente extenso e muito abrangente e era importante que as pessoas percebessem isso.
Comissão Europeia cria centro para preservar raças em vias de extinção
A propósito das políticas de conservação das espécies, no passado dia 27 de outubro, a Comissão Europeia adotou o Regulamento EU nº 2022/2077 do qual emana a criação de um Centro de Referência da União Europeia (EURC) para a preservação de raças em vias de extinção.
Este centro, que entrará em funções a partir de 1 de janeiro de 2023, será responsável pela contribuição científica e técnica para o estabelecimento ou harmonização dos métodos in situ e ex situ de preservação de raças animais ameaçadas e a preservação da diversidade do património genético existente dentro dessas raças e centrará a sua atividade em animais reprodutores de cinco espécies: bovinos, ovinos, caprinos, suínos e equinos.
Segundo a página oficial da Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), em Portugal, “as raças autóctones constituem uma das principais razões para o País ser considerado uma região Hot spot de biodiversidade pela FAO [Organização para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas]”, sendo, atualmente, oficialmente reconhecidas 52 raças autóctones portuguesas ameaçadas – 16 raças de bovinos, 16 raças de ovinos, seis raças de caprinos, três raças de suínos, seis raças de equídeos – que são enquadráveis no trabalho do EURC agora criado.
O programa de recuperação do lince ibérico é um exemplo de como se pode tentar recuperar uma espécie do estado de quase extinção?
Claro. Mesmo com um número limitado de indivíduos é possível, o que é preciso é criar condições. Muitas vezes o que as pessoas acham é que os programas de reprodução são unicamente para reproduzir. A reprodução é o objetivo final, mas, além disso, há necessidade de um espaço físico real, preferencialmente in situ, onde colocar essa espécie. Se esse espaço não estiver disponível, ou não existir, estas espécies manter-se-ão em cativeiro. Naturalmente mantendo a variabilidade genética, mas esses mesmos programas precisam de um local onde os indivíduos possam ser recolocados e dar continuidade à espécie no local original dos quais eles são naturais.
Na VETERINÁRIA ATUAL noticiámos há uns tempos que nas faculdades de medicina veterinária os alunos têm como perspetiva de carreira lidarem com animais de companhia e que havia uma carência de médicos veterinários noutras áreas. Esta vertente mais investigacional e da medicina de conservação carecem de profissionais veterinários?
Tem um pouco a ver com aquilo que as pessoas procuram na medicina veterinária, de uma forma um pouco idílica associada ao carinho e amor pelo nosso animal de companhia, o que é verdade e que deverá manter-se. Mas é preciso ter em conta a parte mais técnica da medicina, relacionada com a forma como melhorar a vida dos animais, integrado na saúde pública. É pensar que o médico veterinário tem um papel preponderante em muitas áreas.
Tudo quanto diz respeito aos animais de companhia é uma medicina importante porque é uma medicina mais intensivista, aliás a medicina interna está muito associada aos pequenos animais, e também há a investigação nestas áreas clínicas de pequenos animais, de espécies pecuárias, de animais exóticos ou animais selvagens.
O trabalho de um médico veterinário num zoo é multidisciplinar, tem os momentos típicos de medicina veterinária – em que é preciso avaliar e estudar a medicina terapêutica, a cirurgia – mas tem toda a outra parte associada ao maneio, à estrutura social e hierárquica do grupo, à nutrição e tudo isto pode ser investigação.
Mesmo o biobank, em que se trabalha apenas com amostras orgânicas, é uma parte incrivelmente importante para toda a gente que trabalha em medicina veterinária, especialmente em espécies selvagens.
Nas faculdades há pouca sensibilização dos alunos para esta área, ou seja, os cursos são muito focados para essa prática clínica mais ligada aos animais de companhia?
Creio que, atualmente, essa vertente de pequenos animais já não é tão acentuada como quando eu tirei o curso. Formei-me em 1999 e na altura não existia sequer clínica de exóticos, comecei a fazer clínica de exóticos, fiz cursos no estrangeiro, porque não tinha colegas a quem procurar e pedir auxílio.
É mais uma questão de os alunos procurarem, porque as universidades tendem a dar uma resposta.
“É mesmo importante que as pessoas percebam que todas as chamadas de atenção que se veem na televisão são mesmo importantes, que percebam que é real, não é de agora que se fala, mas agora está a atingir proporções preocupantes”
Atualmente, as universidades procuram ser um local mais dinâmico e conseguem proporcionar estágios intercalares e os alunos podem procurar e ver outras realidades na medicina veterinária. Cabe ao aluno perceber o que quer quando terminar o curso e o que procura no mercado de trabalho.
Retomando o princípio de que falámos, de que a medicina veterinária é mais do que apenas saúde animal, nos últimos anos cresceu muito o conceito One Health – da saúde de pessoas, animais e do ambiente – que entronca muito com todos os temas desta conversa. Como é que os veterinários podem ajudar a alavancar este conceito?
Parece-me que é um papel que o médico veterinário tem, até pela forma como se relaciona com as diferentes espécies com que trabalha. É uma situação verdadeiramente única na nossa profissão.
Hoje fala-se muito de pequenos animais, mas a medicina veterinária é muito mais abrangente, abrange tudo o que é relacionado com o espaço em que o animal habita, o que nos obriga aqui no zoo a pensar e a estabelecer um projeto para o espaço de cada animal em cativeiro, em que tentamos proporcionar um habitat o mais próximo possível do natural.
Outro ponto importante é a saúde das populações e, neste caso, o papel do médico veterinário é realmente importante, mas deveria haver uma interligação maior com a medicina em geral. Há uns anos houve um congresso que juntou médicos e médicos veterinários e foi mesmo muito importante, porque a One Health não é só a saúde animal, é também a medicina humana em simultâneo. É uma discussão essencial porque existem imensos fatores, não é só a diminuição das populações e o aparecimento das doenças emergentes, mas também a utilização de antibióticos e de outros fármacos e as repercussões que esse uso tem no ambiente.
Esta pandemia deveria ser uma chamada de atenção para a necessidade de interligação dessas áreas?
Claro. Achei, realmente, que a atitude iria mudar em muitas situações, mas, na minha opinião, não me parece que tenha sido isso que aconteceu. Era importante que houvesse a consciencialização de todos, de como a atitude de cada um pode afetar a imagem global.
*Entrevista publicada originalmente na edição n.º 166 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de dezembro de 2022.