Foi em 2017 que Gonçalo M. Rosa deu o primeiro alerta sobre a existência de uma nova estirpe de vírus que está a causar a morte em massa de várias espécies de anfíbios na Serra da Estrela. Os avanços mais recentes na investigação do português foram publicados na revista científica Animal Conservation, em abril, com o cientista a confirmar que a recuperação da infeção pode ser mais difícil do que inicialmente se pensava.
O tritão-de-ventre-laranja (Lissotriton boscai) é uma das espécies mais afetadas pela estirpe agressiva do ranavírus que tem causado a morte em massa de anfíbios na Serra da Estrela. O primeiro de uma série de surtos de ranavirose que têm causado o declínio acentuado de várias espécies de anfíbios foi detetado nesta região do País, em 2011. No seu mais recente trabalho, Sex‐biased disease dynamics increase extinction risk by impairing population recovery, o investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Gonçalo M. Rosa, revela que a recuperação destas populações pode ser mais difícil do que inicialmente se pensava, porque o número de fêmeas está a cair e não existe ainda tratamento conhecido. Enquanto os machos abandonam os charcos após a época de reprodução em várias das populações da Serra, um grande número de fêmeas permanece no habitat aquático durante todo o ano. Esta dinâmica tem conduzido a uma mortalidade bastante mais acentuada entre as fêmeas desta espécie (cerca de 90%), uma vez que o ranavírus se encontra na água.
Esta diferença de comportamento entre machos e fêmeas pode, segundo Rosa e a sua equipa de investigadores (J. Bosch; A. Martel; F. Pasmans; R. Rebelo; R. A. Griffiths e T. W. J. Garner), afetar indiretamente a dinâmica da doença, ao levar à redução significativa do número de fêmeas na população e a uma reversão da proporção entre os dois sexos.
“Os resultados dos modelos que desenvolvermos para os próximos 20 anos revelam que as populações desta espécie na Serra da Estrela podem ficar em risco de extinção no espaço de dez anos, caso o vírus não seja mitigado”, afirmou Gonçalo M. Rosa à VETERINÁRIA ATUAL.
Esta conclusão resulta de um acompanhamento de cinco anos às populações de tritões-de-ventre-laranja em dois charcos da Serra da Estrela, em Folgosinho, onde os surtos anuais e episódios de mortalidade em massa continuam até hoje; e em Sazes, onde apenas são registados episódios pontuais de infeção sem mortalidade. Com estes dados, a equipa de investigadores desenvolveu projeções para as populações para os próximos 20 anos, sob diferentes cenários: considerando surtos anuais que poderiam durar cinco, dez ou 20 anos, e avaliando qual o impacto na recuperação da população, tanto com uma maior mortalidade entre as fêmeas ou com igual mortalidade entre ambos os sexos.
“O que é curioso é que dada a elevada virulência deste agente patogénico, uma maior mortalidade entre as fêmeas não se revelou determinante para um declínio mais acentuado das populações quando comparado com um cenário hipotético em que machos e fêmeas registem um nível de mortalidade semelhante. No entanto, os modelos revelam que a recuperação destas populações, quando possível, é severamente condicionada por esta mortalidade direcionada às fêmeas a médio e longo prazo. Os nossos resultados indicam que, caso haja um cessar dos surtos, quer por ação de mitigação do vírus ou qualquer outra razão ambiental, isso não implica uma recuperação imediata da população – a recuperação, a ser possível, será mais complexa do que inicialmente se pensava”, acrescentou.
Gonçalo M. Rosa explicou ainda que o vírus pode permanecer na população pelo menos cinco anos, reduzindo o seu efetivo em mais de 90%. “Mesmo que o vírus não elimine totalmente a população de tritões – porque também não é vantajoso para ele –, pode deixar a população demasiado vulnerável a outros fatores de ameaça (como a seca, ou a contaminação de água, introdução de novos predadores na água, etc.). Qualquer disrupção na dinâmica estabelecida entre o vírus e a sua população hospedeira pode conduzir a um cessar dos surtos. Isto pode acontecer com intervenção humana ou mesmo natural – por exemplo, ao haver uma redução drástica da densidade de hospedeiros, aumenta por outro lado a dificuldade de transmissão do vírus entre indivíduos. O que os nossos modelos indicam, e que referi anteriormente, é que a recuperação destas populações na Serra é bastante mais lenta quando comparada com um cenário de mortalidade semelhante entre os dois sexos.”
Doenças infeciosas ameaçam biodiversidade
O investigador português avançou ainda que, apesar de ainda não existir um tratamento conhecido para a doença, têm vindo a ser testadas diferentes formas de minimizar os impactos deste vírus em populações selvagens. “Estamos a estudar algumas formas de gestão e manipulação dos charcos com vista a minimizar o impacto do vírus nas populações selvagens. Infelizmente, casos como este são cada vez mais frequentemente reportados”, disse.
A crescente emergência de doenças infeciosas apresenta-se como um dos maiores riscos do século para a saúde pública, segurança alimentar e, como ilustrado neste caso, para a biodiversidade. “As implicações vão para além da fauna silvestre, estando intimamente ligadas ao aumento de doenças infeciosas em humanos e animais de exploração”, garantiu Gonçalo M. Rosa.
“Na Serra da Estrela tínhamos já um outro patógeno (um fungo) associado aos declínios do sapo-parteiro, mesmo antes de terem início os surtos de ranavirose. A esmagadora maioria da investigação em doenças de fauna silvestre tem-se concentrado em agentes patogénicos isolados, o que não reflete a realidade. Este é, sem dúvida, um dos maiores desafios: o de olhar para estes sistemas naturais de múltiplas infeções e perceber de que forma não só os diferentes agentes emergem na natureza, mas como interagem entre si e com os seus diversos hospedeiros. Só assim podemos tomar decisões de gestão e conservação das populações selvagens e fazer a diferença”, concluiu.
“A Península Ibérica corre sérios riscos de perder várias espécies”
O investigador de pós-doutoramento defende que o estudo entre a relação das alterações climáticas e a perda de biodiversidade não é uma área nova, mas confessa que o ritmo acelerado destas alterações está a afetar “a capacidade de adaptação das espécies e mesmo dos ecossistemas”.
“Não estamos a falar apenas do degelo do Ártico, que levou ao declínio de 40% da população de ursos polares, ou da acidificação dos oceanos com consequências catastróficas para os corais e todas as comunidades que deles dependem. Portugal, e a Península Ibérica, são provavelmente uma das regiões mais afetadas da Europa, não só pela subida média das temperaturas, mas também devido a uma diminuição da precipitação e subida dos níveis do mar. Esta emergente realidade não só tem consequências imediatas para a população humana, mas afeta gravemente a vida selvagem”, alertou. “Apresentando-se como um dos maiores hostspots de biodiversidade da Europa, a Península Ibérica corre sérios riscos de perder várias espécies, particularmente em áreas de montanha, empurradas pelas espécies das planícies que se vão movendo para altitudes mais elevadas. Para tornar esta realidade mais dramática, o aumento de temperaturas registado parece estar envolvido no favorecimento da emergência e persistência de novas doenças que estão a afetar a vida selvagem. Ao mesmo tempo, estudos apontam para que vários agentes se possam tornar mais patogénicos quando combinados com outros fatores ambientais, tal como uma subida de temperatura, como é o caso do ranavírus”, afirmou Gonçalo M. Rosa.
Como travar uma catástrofe? O investigador sublinhou que a solução implica “um novo olhar” sobre a exploração de recursos e das atividades humanas, mas também sobre a conservação da natureza, um trabalho que não deve estar apenas nas mãos dos governos e das empresas, mas sobretudo nas mãos de todos “enquanto cidadãos e consumidores”.
“As nossas escolhas no dia a dia têm um enorme impacto no ambiente. O que pomos no prato, os sacos de plástico que usamos nas compras do supermercado, ou a quantidade e frequência de roupa que compramos e deitamos fora, terão o seu impacto no clima e, consequentemente, na emergência de novas e mais virulentas formas de doenças […]. As doenças designadas por ‘doenças infeciosas emergentes’ caracterizam-se por um aumento de incidência nos últimos anos, nomeadamente em termos do número de casos de expansão para novas áreas geográficas. Muitas destas são causadas por novas estirpes (como é o caso do Ébola e, mais recentemente, do Zika) ou simplesmente resultam de reemergências causadas por resistência a medicamentos”, referiu o investigador. “Há também um grande número de origem zoonótica, o que significa que a doença emergiu de um animal e saltou para os humanos, cruzando a barreira da espécie, como é o caso da gripe aviária ou da gripe suína. Como referido, a globalização tem facilitado a introdução de agentes patogénicos em novas áreas geográficas, ao mesmo tempo que um aumento da degradação ambiental cria condições para uma maior exposição a novos agentes.”
PERFIL
Gonçalo M. Rosa é investigador de pós-doutoramento do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Climáticas (CE3c), da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e do Instituto Zoológico de Londres (Institute of Zoology, Zoological Society of London), no Reino Unido.
Para além do seu trabalho na área da conservação da biodiversidade, na última década, a investigação do português tem-se debruçado sobre temas como a saúde ambiental e a sua relação com doenças emergentes nas populações de anfíbios, procurando entender as diferentes dinâmicas patógeno-hospedeiro e respostas das populações selvagens ao longo do tempo. O português tem estado ainda ligado a projetos com o objetivo de melhorar o sucesso reprodutivo de espécies ameaçadas em cativeiro, mas também com vista à sua conservação no habitat natural, nomeadamente estudos para perceber os impactos do aquecimento global em tartarugas marinhas na Guiné-Bissau, desvendar os hábitos secretivos da rã-arco-íris de Madagáscar ou para o desenvolvimento de um protocolo de tratamento contra a quitridiomicose em galinhas-da-montanha (uma das maiores rãs do mundo) em Montserrat, nas Antilhas.