O Banco de Sangue Animal tem vindo a crescer, de forma sustentada, desde 2011. Após uma mudança de instalações no Porto, prepara-se agora para uma nova aventura internacional. Depois de Barcelona, chegou a vez de Inglaterra.
Longe vai 2011, ano em que nascia – de forma tímida, podemos dizê-lo agora –, o Banco de Sangue Animal (BSA), com o objetivo claro de desenvolver a medicina transfusional em veterinária. Na altura instalado no Hospital Veterinário da Universidade do Porto (UPVet), em pleno Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto, este banco privado espelhava a vontade de Rui Ferreira em querer marcar a diferença na medicina transfusional aplicada aos animais. E fê-lo. O empreendedor e mentor do projeto esteve os primeiros meses sozinho ao leme do ‘barco’, tendo mais tarde contado com a ajuda da colega Rita Graça.
Hoje, passados oito anos, são já 15 o número de pessoas envolvidas no BSA, desde veterinários, enfermeiros, auxiliares e administrativos. E mesmo o ‘palco’, é outro. O próprio UPVet cresceu e o BSA também, pelo que tinha chegado a altura de dar o salto. Agora, estão instalados na rua João de Deus, numas instalações claramente adaptadas à dimensão do projeto. “Era uma necessidade premente. Já tínhamos demasiadas pessoas a trabalharem num pequeno espaço. Durante todo o tempo as pessoas do ICBAS foram absolutamente fantásticas, mas as instalações não ajudavam ao normal funcionamento das atividades do BSA. Precisávamos obrigatoriamente de mais espaço, que nos permitisse não só no prestar um melhor serviço no imediato, mas também crescer”, contou Rui Ferreira à VETERINÁRIA ATUAL.
Em oito anos, e apesar de muita coisa ter mudado, há algo que permanece intacto: a visão de continuar a olhar sempre para os parâmetros usados na medicina humana, tentando acompanhar a sua evolução e aplicá-la à medicina veterinária. Aliás, garante o diretor-técnico do BSA, cada vez mais há uma aproximação entre as duas medicinas: “É um caminho natural, até porque começamos a ter mais volume e, consequentemente, mesmo junto dos fornecedores, conseguimos melhores condições para fazer mais e melhor.”
Desleucocitação das unidades de sangue é uma realidade
Exemplo claro disso é o facto de o Banco de Sangue ter passado a fazer a desleucocitação das unidades no início deste ano. “É a primeira vez que um banco de sangue de medicina veterinária o faz de forma normal e sistemática em todas as unidades, tal como se faz em medicina humana há já alguns anos.” Basicamente, estamos a falar de sacos próprios, que permitem, logo de início, retirar os leucócitos das unidades e, dessa forma, diminuir o risco de reações transacionais e melhorar o condicionamento das unidades, já que elas não hemoalisam tão rapidamente. Algo que em medicina humana se começou a fazer na altura da BSE – encefalopatia espongiforme bovina, vulgarmente conhecida como doença das vacas loucas. “Isto foi algo que nos aproximou muito da medicina humana.”
Outro exemplo dado por Rui Ferreira é o CompoMat G5, um equipamento altamente eficiente para processamento de unidades de sangue. “É o de última geração. Aliás, se for ao Instituto Português de Sangue ou ao Hospital de São João, é este o aparelho que eles usam.” Segundo o responsável, é igualmente a primeira vez que um destes equipamentos está a ser usado na medicina veterinária. Nas palavras de Rui Ferreira, o equipamento separa automaticamente os componentes que integram as unidades de sangue para os vários sacos, pesa-os, etiqueta-os, e atribui-lhes um código de barras sem qualquer intervenção. “Conseguimos uma rastreabilidade perfeita ao nível da medicina humana”, garantiu o diretor-técnico.
Pujança internacional
Perguntamos a Rui Ferreira se quando fundou o BSA achava possível, passados oito anos, ter esta dimensão. O mentor do projeto diz que não. Que nunca pensou que tal viesse a acontecer, apesar de garantir que o crescimento, apesar de notório, é sustentado. “Às vezes perguntam-me porque não faço mais isto, ou aquilo. Tem de ser uma coisa de cada vez, muitas coisas aumentam a margem de erro. E não é isso que queremos. Queremos crescer, mas sempre de forma sustentada.”
E se, no início, era o mercado nacional o grande impulsionador do negócio, rapidamente a veia internacional começou a fervilhar, até que, em 2015, resolveram expandir-se para Barcelona. “Já trabalhávamos para fora, obviamente, mas Barcelona constituiu um passo grande para o BSA, porque constituímos empresa aí.”
Hoje, Barcelona basicamente ‘alimenta’ as necessidades do mercado espanhol. Portugal, além de dar apoio ao centro catalão, satisfaz as necessidades de sangue de clientes em todo o mundo. Cerca de 40% do negócio da empresa já é feito fora de Portugal, nomeadamente em países como Itália, Inglaterra, França, Suíça, Alemanha e até China. “Conseguimos colocar unidades de sangue em Hong Kong em 48 horas. Para qualquer ponto da União Europeia, conseguimos em 24 horas.” Para isso, Rui Ferreira garante ser vital a parceria que tem com a DHL, para o mercado internacional, e com a MRW, para o nacional.
No mercado luso, é mais ou menos o vale tudo: Rede Expressos, táxi, Uber, Cabify ou estafetas. “O importante é colocar as unidades o mais rapidamente possível onde são necessárias”, diz.
De 50 a 500
A primeira vez que entrevistámos Rui Ferreira foi em 2013, para um balanço de dois anos de atividade. Na altura, o diretor técnico disse que lidava com 50 a 60 unidades requisitadas por mês. Confrontado com este número, Rui Ferreira esboçou um sorriso admitindo que, hoje, a realidade é um pouco diferente. “Há meses em que chegamos às 500 unidades.” E, se na altura eram 25 os centros espalhados pelo País que colaboravam com a BSA, hoje esse número estendeu-se a 40 centros. “Já temos cobertura de norte a sul e mesmo interior, a rede está muito bem espalhada. Diria que, numa distância de 40 ou 50 quilómetros, conseguimos ter um centro colaborador.” Porto e Lisboa continuam a ser os dois principais polos.
Em Espanha, a realidade é a mesma, sendo que o BSA tem 45 centros espalhados desde a Galiza ao País Basco.
Inglaterra já está garantida
Uma das novidades que Rui Ferreira partilhou com a VETERINÁRIA ATUAL é que Inglaterra vai ser o terceiro país a contar com a presença do BSA. Após a visita de uma comitiva da Sociedade Internacional de Medicina Veterinária às instalações do Porto – que comprovou serem cat friendly – para perceberem o que se está a fazer em medicina felina na área das transfusões, foram encetadas conversas mais sérias para ser instalado um Banco de Sangue Animal em Inglaterra. “Pensamos que dentro de um par de meses estaremos efetivamente lá. Inglaterra vai funcionar muito diretamente com Portugal, mas não deixa de ser um centro próprio, com dádivas, armazenamento e distribuição local”. A empresa já foi inclusivamente inspecionada pela Veterinary Medicines Directorate, a entidade equivalente à portuguesa Direção-Geral de Alimentação e Veterinária.
Os dadores aparecem
Salvo raras exceções, nunca foi particularmente dramático arranjar dadores de sangue animal, neste casos cães e gatos. Apenas recentemente, num tipo de sangue raro nos felinos, tipo B, foi necessário recorrer às redes sociais e apelar à dádiva. De resto, a lista de inscritos no banco habitualmente consegue suprimir as necessidades. “Do tipo de sangue B temos cerca de 50 gatos, o que é muito, duvido que haja algum banco com tantos dadores inscritos com este tipo de sangue. O problema, é que no âmbito europeu, como sabem que temos disponibilidade, acabamos por centralizar os pedidos e houve algumas semanas com demasiados pedidos, com vários gatos tipo B a precisarem de mais do que uma transfusão.” Quando é assim, normalmente o apelo é feito aos criadores.
Expandir a outras espécies é complicado
A expansão a outras espécies sempre foi um objetivo do BSA, mas tem sido complicado, apesar de continuarem a evoluir nessa área. “Notamos que ainda não há uma recetividade muito grande do mercado. Também é verdade que o crescimento dos cães e gatos tem sido tão grande que não nos deixa muito tempo para apostarmos mais em outras espécies. Se tivéssemos uma equipa dedicada apenas a isso conseguir-se-ia outros números.”
No verso da moeda, há uma aposta claramente ganha: o gel plaquetário, um componente que permite um concentrado de plaquetas, que, através da adição de gluconato de cálcio, gelifica e liberta fatores de crescimento. O gel é depois colocado, por exemplo, em feridas de difícil cicatrização, úlceras, não uniões ósseas, fendas do palato, entre outras.
Para futuro, o que esperar do BSA? Rui Ferreira diz claramente que a aposta vai passar por uma maior especialização da equipa, algo que têm feito até agora. O diretor-técnico acrescenta que não vai parar de procurar componentes que se adaptem às necessidades crescentes da medicina transfusional. “Por último, queremos solicitar a nossa posição a nível europeu, com um crescimento sustentado.”
Gatos zen
Aquando da visita guiada às instalações, uma coisa saltava desde logo à vista. Ou melhor, ao ouvido. Num piso inferior, de uma sala ecoava uma relaxante música, a roçar o jazz ligeiro. Rui Ferreira explicou que aquela era a sala “zen”. Os gatos entram – a colheita dos felinos é feita nas instalações do BSA, enquanto nos cães é feita em casa dos animais – e ficam literalmente a relaxar da viagem num espaço próprio, ao som de música. Depois, sim, estão prontos para a colheita, seguida de mais uma visita ao acolhedor espaço. “Sabemos que se garantirmos um caminho exclusivo para gatos, salas dedicadas, sem cheiros ou barulhos, a experiência é menos negativa. Há gatos que nestas condições passam a precisar de menos sedação, ou mesmo de nenhuma.” Assim, os gatos têm uma melhor experiência e os tutores ficam mais contentes. “Não queremos dadores para uma vez. Queremos que continuem connosco e, para isso, temos de garantir que as coisas correm bem.”
Com os cães é radicalmente diferente, já que a espécie permite outras atitudes. Não é que o cuidado seja diferente, mas é tudo muito mais tranquilo. “São mais fáceis de gerir”, diz Rui Ferreira. Neste momento, 60% dos dadores são cães e os restantes 40% felinos. As recolhas são feitas entre a segunda e a quinta-feira.