Um médico veterinário é sempre um médico veterinário, mesmo que não esteja na prática clínica. Miguel Moura Esteves formou-se em medicina veterinária, exerceu em Espanha e em Portugal, mas apaixonou-se pela Programação Neurolinguística (PNL) e largou os consultórios e os hospitais para se dedicar a tempo inteiro a ajudar pessoas a melhorarem os seus processos linguísticos e, assim, a serem mais felizes e plenas no trabalho. Agora avança com um projeto para o setor da veterinária, porque, sabe por experiência própria, há muito a fazer para cuidar da saúde mental dos profissionais.
Como foi o seu percurso enquanto médico veterinário?
Comecei o curso na Faculdade de Medicina Veterinária na Universidade de Lisboa. Fiz lá os três primeiros anos e depois fui fazer Erasmus na Universidade Autónoma de Barcelona. Enquanto lá estava, decidi que queria continuar na Catalunha e, por isso, pedi transferência e acabei lá a licenciatura.
Fui, então, estagiar num hospital de animais de companhia em Aberdeen, na Escócia, que tinha muito poucos recursos, vivia de doações. Foi uma escola incrível do ponto de vista médico, porque não tinha meios para fazer diagnóstico, era tudo com base na anamnese.
Quando acabou esse estágio final da licenciatura, voltei a Barcelona e fiquei a trabalhar no hospital de referência. Era um hospital de fim de linha, recebíamos casos de outros sítios, tinha condições ótimas – havia TAC, tínhamos quatro blocos operatórios – o oposto do que tinha na Escócia. Foi aqui que começou o meu gosto pela Medicina Interna e comecei a dedicar-me a essa especialidade.
“Podemos trabalhar para que cada centro encontre o seu equilíbrio, não necessariamente um equilíbrio igual ao da clínica ao lado. Da mesma forma que a gestão emocional não é igual de uma pessoa para outra, as necessidades não são iguais de um CAMV para o outro.”
 
Estava na equipa das noites, éramos três pessoas para assegurar turnos de 24 horas, o que significa que trabalhávamos mais do que 40 horas por semana. Cheguei a ter turnos de 29 horas, em que entrava sábado às 10 da manhã e saía domingo às 15h.
Decidi não continuar ali, sentia-me muito cansado, sem tempo para estudar e sentia que não prestava os serviços que achava que podia prestar aos animais e aos tutores.
Nessa altura, surgiu a oportunidade de vir para Lisboa, para o Hospital Veterinário Berna trabalhar com o Joaquim Henriques e aprendi imenso com ele.
Mantinha-me em contexto hospitalar e, passados dois anos, estava cansado e perto de exaustão. Nunca tive um burnout, mas percebi que não devia continuar.
Como estava um pouco zangado com a prática clínica, quis experimentar outras coisas e mudei para a indústria farmacêutica, onde comecei por trabalhar no departamento de marketing. Deixei completamente a clínica a pensar que não queria mais exercer.
Depois, percebi que alguns valores de negócio não estavam alinhados comigo e fui experimentar novamente o contexto clínico, desta feita numa clínica pequena em Alfornelos, onde estava novamente a ganhar mão, a sentir-me cómodo a lidar com os doentes. Ainda passei por outra clínica em Santos, Lisboa, até que chegou a pandemia.
Neste percurso, já andava a querer perceber-me um pouco melhor, a tentar perceber o que me fazia ter determinadas escolhas e acabei por tropeçar um pouco por acaso na PNL.
Disse que foi para a indústria farmacêutica por se sentir um pouco zangado com a clínica. Esse sentimento vinha da forma como a medicina veterinária se organiza ou das dificuldades que a prática clínica apresenta a um médico, como ter de lidar com a eutanásia por exemplo?
Na altura, a visão tinha mais a ver com a gestão e com a equipa, mais a questões ligadas ao trabalho diário, às pessoas, à liderança – e hoje tenho uma ótima relação com o Joaquim Henriques – ao cansaço das noites e a problemas ao nível da comunicação, mais do que a gestão emocional. Porque o que mais gostava era, realmente, de receber pessoas que vinham com um determinado problema e ajudá-las a perceber o que se passava e que opções tinham.
Obviamente, há dias piores que outros e também tive casos de pessoas que queriam eutanasiar animais e eu não concordava. São situações muito duras e horríveis, mas felizmente acho que sempre tive estrutura emocional para lidar com isso.
Mas estava mais cansado, não tinha muita disponibilidade para estudar e sentia que o serviço que prestava não era aquele que eu considerava justo e adequado para a minha missão. Sentia-me numa incoerência grande: sou veterinário, o meu propósito é ajudar estes animais e estes tutores e não estou a fazer isto bem.
Havia algum cansaço emocional, alguma fadiga por compaixão, mas não chegou a burnout.
Não chegou a ter sintomas como os reportados pelos colegas no encontro VET Mental Summit?
Tinha alguns episódios de ansiedade antes de ir para o hospital, sentia dor de barriga, havia uma componente grande de mal-estar, mas não dei muita importância. Só hoje percebo que, quando estava à espera da hora para entrar de noite, não conseguia jantar porque estava maldisposto.
Olhando para trás, havia um cansaço extremo acumulado, havia muitos desentendimentos do ponto de vista da comunicação e foi isso que me levou a procurar esta formação de PNL. Queria perceber o motivo pelo qual entre pessoas que se dão bem, havia falhas de comunicação que terminavam em conflitos.
E como encontrou a PNL?
Ouvi falar da PNL no contexto de colegas de trabalho da minha mãe, que me falaram do assunto. Achei que podia ser interessante algo que teria a ver com a linguagem e como esta programa a forma como o nosso cérebro processa o que está a acontecer.
Fui investigar e percebi que existe de tudo no mercado, existem coisas fantásticas e existem coisas péssimas. Há uma franja que está muito ligada aos oradores motivacionais, a grandes eventos, a coisas que, na minha opinião, têm pouca consequência na transformação de hábitos e de comportamentos.
Até que encontrei uma escola, onde fiz o primeiro nível de PNL, com a trainer Joana Sobreiro, e senti-me a chegar a casa.
“A magia da PNL é termos a capacidade de olhar para nós, percebermos como funciona o nosso processo interno, perceber como está organizado o nosso processo mental e usar isso para nosso proveito.”
Na altura, ainda era para um processo pessoal, mas comecei a achar que havia uma série de ferramentas que seriam úteis a todas as pessoas, por inerência aos veterinários ainda mais, sobretudo na ótica de como gerem as suas emoções e de como comunicam com os clientes.
Nessa altura, estava novamente a trabalhar na indústria farmacêutica, a dar muita formação, e comecei, de forma informal, a utilizar algumas ferramentas da PNL na resolução de conflitos com colegas e a ajudar as pessoas que me rodeavam e pediam ajuda.
Ouvimos falar muito da PNL, mas o que é e o que traz, efetivamente, para a vida prática do dia-a-dia?
A definição clássica é uma frase que gosto muito, mas a primeira vez que a ouvimos, parece não dizer nada: a PNL é o estudo da estrutura da experiência subjetiva e o que podemos fazer com ela. Ou seja, o que a PNL faz é estudar de que forma é que as pessoas têm organizado o seu processo mental, como é que elas processam a informação que lhes chega do exterior, como é que a organizam [mentalmente] e como é que a comunicam.
Ao estudarmos esta estrutura, conseguimos perceber se em algum ponto existe uma disfuncionalidade ou alguma coisa que a pessoa queira alterar, seja num comportamento, num hábito, uma emoção que está exacerbada por estar ligada a determinados contextos. Ao perceber como ela está codificada no nosso processo mental, podemos mexer nessa estrutura, com técnicas, para produzir resultados diferentes.
Para mim, é como se fosse uma medicina interna dos processos mentais, porque o objetivo é perceber como cada um de nós colhe a informação do mundo, a filtra e a processa de acordo com aquilo que foi a nossa experiência e, depois de essa informação ser filtrada e processada, criamos aquilo que é o nosso modelo interno da realidade. Afinal, nós nunca lidamos com a realidade em si, mas com aquilo que interpretamos e é por isso começam a surgir os problemas, que duas pessoas, mesmo estando a viver a mesma coisa, podem ter versões diferentes do que aconteceu.
A PNL também pode ser definida como um conjunto de técnicas e como uma filosofia de vida e, para mim, a definição melhor até é essa, a de filosofia de vida, porque predispõe a uma curiosidade e a uma abertura que é a chave para navegar nesta existência.
O que encontrei na trainer com quem fiz o primeiro nível de PNL foi um pouco a minha filosofia de vida: não existe nada que seja uma verdade absoluta, que não possa ser questionada, não possa ser observada para retirar alguma coisa, alguma aprendizagem.
Com a PNL, começamos a aprender a usar a nossa linguagem, a perceber o que as palavras que usamos fazem na cabeça das outras pessoas e na nossa cabeça, a perceber porque escolhemos determinadas palavras para descrever um acontecimento ou uma experiência. Esta noção da ligação entre aquilo que é a nossa comunicação, a nossa linguagem, com o nosso processo mental é o que nos permite, depois, na comunicação com as outras pessoas, perceber como elas codificam o seu mundo e como estão a interpretar aquela experiência.
Em que momento percebeu que a PNL podia ser uma nova carreira profissional?
Ainda estava na indústria farmacêutica quando fiz o primeiro nível de PNL, que é o practitioner, depois fiz o master e, por fim, fiz o último nível de formação, que é o de trainer.
Percebi, no trabalho na indústria farmacêutica, que havia coisas que podia trabalhar – além do que era a formação sobre o produto ou a patologia – ao nível do inconsciente para resolver alguns problemas da equipa, nomeadamente as inseguranças com determinadas questões e os conflitos que surgiam.
“Para mim, [a PNL] é como se fosse uma medicina interna dos processos mentais, porque o objetivo é perceber como cada um de nós colhe a informação do mundo, a filtra e a processa de acordo com aquilo que foi a nossa experiência e, depois de essa informação ser filtrada e processada, criamos aquilo que é o nosso modelo interno da realidade.”
Da experiência dos sítios onde tinha passado, entendi que os problemas de comunicação eram transversais, as dificuldades e as inseguranças no decorrer dos percursos profissionais são muito semelhantes e comecei a perceber que muitas pessoas não tinham essa consciência. Eram vítimas de coisas que não sabiam que tinham dentro delas e, por isso, acabavam por estar constantemente a repetir padrões e a boicotar-se por não encararem algumas questões que estavam inconscientes.
Nesse momento, entendi que era aquilo que queria fazer: treinar pessoas dentro deste contexto da PNL, porque acho realmente que é uma mais-valia ter este conhecimento para navegar no mundo. Como não era possível fazer isso na empresa onde estava, saí de uma forma totalmente amigável e muito planeada.
Embora ainda não tivesse totalmente claro que seria dentro do setor da medicina veterinária. Tinha, ainda, alguma convicção que o setor não estava para aí virado, havia a necessidade e eu sabia disso, mas não havia a consciência dessa necessidade.
Agora dedico-me à PNL, que pode ser aplicada em várias vertentes desde a gestão emocional, liderança, comunicação interpessoal. O meu trabalho passa pela formação base e também sou assistente de cursos.
Para ter alguma estrutura que me permitisse fazer a condução de processos individuais, fiz também certificação internacional em coaching, embora o meu trabalho central seja como trainer de PNL.
A pessoa com quem trabalho lembrou-me, então, que era veterinário e questionou se não ia fazer nada na medicina veterinária. Eu estava muito renitente.
Mas, a partir do momento em que decidi voltar e contribuir para o setor de outro ponto de vista, começaram a surgir os convites para palestras, para formações, para acompanhamento individual.
O que tenho identificado, e que me gera algum desconforto, é que muitas vezes as pessoas estão à procura de receitas, do comprimido mágico, os cinco passos para isto ou para isto. Mas também tenho encontrado pessoas conscientes de que é preciso fazer alguma coisa, estão mais do lado da causa, de ser responsáveis pelas ações que tomam. Não estão apenas à espera que seja a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) a protegê-los, que sejam os colegas e o chefe a mudar e começam elas próprias a tomar as rédeas da sua própria vida.
A magia da PNL é termos a capacidade de olhar para nós, percebermos como funciona o nosso processo interno, perceber como está organizado o nosso processo mental e usar isso para nosso proveito.
Entretanto criou o VET Program – Programa de bem-estar para o setor veterinário. Como surgiu esta ideia e em que consiste?
Surge de uma necessidade minha de pôr as coisas em papel e criar alguma estrutura que fosse percetível para quem tivesse potencial interesse.
O VET Program não é um produto fechado. O que faço é ter uma reunião com as pessoas interessadas para perceber quais as necessidades, com o objetivo de estabelecer um projeto de intervenção para mudar a cultura emocional de uma empresa. Grande parte dos problemas tem a ver com questões relacionais, muitas vezes não é a remuneração, não é o horário, mas sim o facto de as pessoas não se sentirem parte da equipa, não haver comunicação entre os membros da equipa. No fundo haver uma perda de vínculo entre a missão que as pessoas abraçaram e depois a concretização dessa missão.
O que me ajudou a concretizar o projeto foi perceber que isto não é sobre mim, tem a ver com uma necessidade que existe no setor: as pessoas estão infelizes no seu local de trabalho e não é preciso.
Podemos trabalhar para que cada centro encontre o seu equilíbrio, não necessariamente um equilíbrio igual ao da clínica ao lado. Da mesma forma que a gestão emocional não é igual de uma pessoa para outra, as necessidades não são iguais de um CAMV para o outro.
A apresentação [do projeto] começou por ser aos contactos mais próximos, empresas que conhecia e de quem gostava de ter feedback e depois resolvi publicar o site.
Tem estado a correr bem e tem sido muito bem recebido. Acho que existe mesmo esta necessidade de olhar para os profissionais como pessoas e começar a tratá-los como tal, inclusive os líderes, que sofrem muito na gestão entre vida profissional e pessoal.
E onde está o médico veterinário neste momento?
Não acho que tenha uma resposta para dar. Tenho algumas saudades, sobretudo da parte da interação com as pessoas, mas acabo por conseguir isso tanto no trabalho que tenho dentro e fora do setor.
Voltar a exercer é uma questão que pondero, mas acho que, agora, teria de ir estagiar outra vez, porque sinto que aquilo que sei não me permite prestar os serviços que seriam adequados. Mas, posso contribuir para a comunidade veterinária de outra forma.
VET Mental Summit “marcou um ponto de viragem”
Disse que sentia que a classe podia estar renitente em recorrer a estes processos. No congresso VET Mental Summit, os números apresentados sobre a saúde mental do setor foram preocupantes, mas havia uma relutância da classe em reconhecer o seu problema? Nas faculdades são formatados para uma fórmula perfeita – um doente tem um problema, dá-se o medicamento e fica bom – só que, na prática, as coisas não funcionam assim …
Mas eu acho que essa fórmula é precisamente aquilo que os médicos veterinários vão usar para resolver este problema da saúde mental. Somos formatados durante a faculdade para identificar os problemas, pensar em soluções, aplicá-las e, em função da resposta, ajustarmos ou não o tratamento.
Penso que este evento marcou um ponto de viragem. Não acho que a classe estivesse com vergonha da questão, simplesmente não havia mesmo noção dos números reais. Havia a perceção do mal-estar, uma noção de salários maus, de horários exigentes, mas não havia uma clareza dos números e estes não mentem.
Aquilo que tinha assistido até então era os veterinários estarem um pouco na postura de vítima, de quem sentia que era mal pago, que fazia muitas horas, que se queixava do patrão e que a OMV não tomava posição.
A convicção que tenho é que, a partir do momento em que o setor percebe que existe um problema, então pode ativar aquilo que sabe fazer melhor que é resolver o problema.
Já existem uma série de ofertas de colegas que estão a enveredar por esta área que são possíveis soluções, temos o gabinete [de apoio psicológico] da OMV, temos uma série de ferramentas no site da APMVEAC, temos uma série de recursos e as pessoas, na minha perceção, estão a tomar as rédeas da sua situação.
A classe tem todas as condições para escolher entre as várias opções e para protocolizar determinadas coisas, para haver um grupo de proprietários com quem se possa negociar os contratos coletivos de trabalho e outas questões.
A partir do momento em que os veterinários identificaram um problema acho que é questão de tempo [até ficar resolvido].
Era importante que nas faculdades a questão da comunicação fosse abordada e também que a classe fosse formatada de outra forma?
Nas faculdades já começa a haver alguma coisa. A CESPU vai criar uma unidade curricular de comunicação e gestão emocional.
Há uma grande mudança a acontecer no setor e estou muito satisfeito de estar a assistir a isso e poder contribuir, se assim o desejarem, para esta transformação.
Para que isto surgisse, foi preciso ter acontecido esta chapada da luva branca dos dados para as pessoas perceberem, realmente, que há números que são assustadores e não podem ser ignorados.
As faculdades têm um papel fundamental para capacitar os estudantes nestas vertentes e, parece-me, o perfil dos veterinários que agora sai das faculdades já é diferente.
Nós tínhamos já a noção de que íamos trabalhar horas a fio, íamos ganhar mal, mas era assim e havia um sentido de missão que depois culminou nestes problemas todos.
Os veterinários que saem agora das faculdades já têm outra arquitetura de valores. Têm o mesmo sentido de missão, sem dúvida, mas têm uma maior noção do que são e do que querem.
Isso obriga, inevitavelmente, a uma reestruturação do setor e a uma postura diferente dos empregadores.