Duas médicas e uma enfermeira abrem o livro das suas vidas para contar na primeira pessoa o que é passar por problemas de saúde mental na comunidade veterinária. As três sentem que estiveram à beira de um abismo que poderia ter corrido muito mal. A jornada ainda não terminou, é um processo contínuo, mas hoje sentem que voltaram a abraçar com vontade e entusiasmo a profissão que escolheram.
Com emoção, mas também com muita vontade de contarem a história pessoal e, sobretudo, explicarem como conseguiram sair de situações perigosas para a saúde e para a vida. Assim se pode resumir a intervenção das três profissionais que foram ao VET Mental Summit dar o testemunho do que é passar por problemas de saúde mental na profissão.
A conversa conduzida pelo embaixador do encontro, Gonçalo da Graça Pereira, foi delicada e o silêncio que imperou na sala durante aqueles quase 60 minutos é o reflexo da seriedade com que a comunidade veterinária está a sentir os problemas que as várias classes profissionais sofrem no dia-a-dia de consultórios, clínicas e hospitais.
Os apelidos das participantes são preservados, como forma de proteção da individualidade de cada uma, revelamos apenas os nomes próprios e as profissões: Ana e Joana são médicas veterinárias e Rute é enfermeira veterinária.
Desistir da profissão foi uma hipótese
Médica veterinária no norte do País, Ana consegue identificar o momento a partir do qual começou a sentir que já não era nem a mesma profissional, nem a mesma pessoa com que sempre se tinha identificado. Foi com a maternidade que começou a crescer um sentimento de desconforto, de descontentamento, de incapacidade para lidar com os desafios da vida pessoal e profissional.
As exigências do novo papel, associadas às exigências da profissão começaram a assoberbar a médica veterinária, que desejava ter a melhor performance nos vários papeis que agora desempenhava de mãe, esposa, médica e mulher. “São as crenças que a sociedade nos impõe de querermos ser tudo [ao mesmo tempo] e pormo-nos a nós próprias em último lugar”, explicou, acabando por reconhecer: “Foi muito duro”.
A solução parecia passar por sair do local de trabalho onde estava para uma clínica mais pequena, mas onde não tivesse de fazer urgências, horas extraordinárias e turnos. No novo local de trabalho – um consultório onde era a única veterinária – o horário eram oito horas diárias, com folgas aos domingos e feriados, e as urgências aconteciam por chamada telefónica, mas Ana percebeu que ainda assim “não estava a chegar, aumentaram-me [quando se queixou do horário], mas percebi logo que a questão não era o dinheiro”, lembrou.
A questão era mesmo o tempo que não era dedicado à família que estava a constituir e não era dedicado ao autocuidado, apenas com uma folga por semana e, admitiu, houve momentos em que lhe passou mesmo pela cabeça deixar de ser médica veterinária.
“São as crenças que a sociedade nos impõe de querermos ser tudo e pomo-nos a nós próprias em último lugar” – Ana, médica veterinária
Chega, então, a pandemia causada pela Covid-19. Com o marido a trabalhar, um bebé pequeno para cuidar, as creches fechadas, um consultório onde estava sozinha a assegurar a atividade e as férias que continuavam por tirar, os dias eram vividos “a correr e sem dormir”, e o corpo começou a dar sinais de que algo não estava bem. Em várias ocasiões, Ana relatou que se sentia zonza e acabava por se deitar no chão do consultório entre consultas até recuperar o equilíbrio.
Até ao dia em que o corpo a mandou mesmo parar. Teve uma espécie de choque anafilático, com fechamento da glote, mesmo não tendo ingerido alimentos com alergénios ou tomado qualquer medicamento que provocasse tal quadro sintomatológico. O corpo encheu-se de manchas, “placas brutais que davam comichão” e, encaminhada para o serviço de Imunoalergologia, acabou por ter de fazer doses elevadas de anti-histaminicos e foi “mesmo obrigada a estar em casa, que era o que eu não queria”, lembra.
Contudo, o tempo de paragem, em que passou mais tempo sozinha em casa com os gatos, serviu para calibrar as prioridades. “Percebi a duras penas que quem poderia ser o príncipe de cavalo branco que me viria salvar teria de ser eu própria”, contou. Procurou a meditação, conseguiu perceber como os exercícios de relaxamento a poderiam ajudar a controlar a mente e, sobretudo, conseguiu “resgatar o antigo desejo que nasceu em criança de ser médica veterinária”.
Quando os pensamentos assustam
Sair das raízes que nos viram nascer, viver longe da família e amigos pode ser uma oportunidade de crescimento pessoal, mas é também um desafio que deixa a pessoa sem amparo nos momentos menos bons. É um pouco o enquadramento da vivência da médica veterinária Joana que se mudou do norte do País para o Algarve, onde vivia apenas com o companheiro. Aproveitou uma oportunidade para fazer aquilo que sonhava: estar numa estrutura em que fazia urgências e sentir que podia fazer a diferença na vida dos animais.
Mas a exigência dos dias começou a pesar: longas horas no trabalho, noites nas urgências, as férias por tirar, o levar para casa todas as dúvidas e receios pelos doentes que deixava internados no hospital.
Joana relatou que começou a sentir “sinais de ansiedade, embora arranjasse desculpas [para o que sentia]”, mas ficou “mais atenta quando comecei a sentir esses sintomas também em casa”, numa altura em que também já era mãe.
“Não me lembro o que aconteceu naquele dia, mas lembro-me que foi um dia complicado em termos de decisões [clínicas]. Quando saí do hospital pensei ‘quero morrer’. Foi um pensamento que me assustou muito” – Joana, médica veterinária
“Até que um dia tive um ataque de pânico. Tinha saído do turno da noite e tive uma discussão com um colega por causa de um caso clínico. Já estava em casa e comecei a não conseguir respirar, a sentir o coração a bater muito forte. Já tinha algumas ferramentas para trabalhar a respiração, mas o que me ajudou foi a minha gata, a sensação de a acariciar ajudou-me a acalmar”, relatou.
Decidiu que estava na altura de procurar ajuda psicológica e o diagnóstico da profissional foi claro: “Tinha ansiedade, depressão e a médica disse-me logo ‘estás com um pezinho no burnout’”.
Não precisou de parar de trabalhar, não fez medicação, nem nunca pensou em deixar de ser médica veterinária. A psicoterapia e as ferramentas de autocuidado conseguiram fazer Joana ultrapassar os momentos de maior vulnerabilidade. Mas, admite, já depois de estar a ser acompanhada, houve um dia mau, em que a palavra suicídio lhe passou pela cabeça. “Foi só uma vez, e não foi há muito tempo. Às vezes pensamos que já ultrapassámos as coisas, que já temos as ferramentas necessárias e estamos a conseguir [seguir em frente] e depois vemos que não. Não me lembro do que aconteceu naquele dia, mas lembro-me que foi um dia complicado em termos de decisões [clínicas]. Quando saí do hospital pensei ‘quero morrer’. Foi um pensamento que me assustou muito. Cheguei a casa, fui passear a minha cadela e pensei que era um disparate. O que precisava era de descanso, tinha sido só um pensamento, não fiz nada para isso”, recordou.
Emigrar foi a solução
Rute enfrentou um diagnóstico de burnout que a levou a afastar-se da enfermagem veterinária e de Portugal.
A jovem cumpria o sonho de ser enfermeira de internamento, mas o local não tinha as condições para que ela desempenhasse as funções com o rigor que pretendia. “Era a única enfermeira veterinária, tinha de lidar com 30 animais [no internamento] e sentia que não conseguia dar o meu melhor, porque não conseguia chegar a todos os animais”, contou a jovem.
Sentia-se responsável por aqueles animais e os casos que deixava no hospital seguiam-na para casa dentro dos seus pensamentos. Lembra que “chorava todos os dias, não conseguia desligar do trabalho” e sublinha o quão desgastante foi pensar que a culpa era dela. “Será que sou eu que não estou a dar o meu melhor, será que sou inútil, será que estou na profissão certa”, eram perguntas que Rute se fazia frequentemente.
Já era seguida por uma psicóloga pelo seu historial de ansiedade e foi dela que recebeu o diagnóstico que a fez parar para repensar a vida pessoal e profissional.
“Era a única enfermeira veterinária, tinha de lidar com 30 animais [no internamento] e sentia que não conseguia dar o meu melhor, porque não conseguia chegar a todos os animais” – Rute, enfermeira Veterinária
Decidiu mudar-se para o Reino Unido e esteve seis meses afastada da enfermagem em clínica. Durante esse período fez pet sitting, ajudou alguns animais em serviços de enfermagem domiciliária, até que começou a sentir saudades da vida de clínica e, então, decidiu voltar a trabalhar num hospital.
Do Reino Unido relata as diferenças significativas nas condições laborais e nos cuidados com a saúde mental dos profissionais. Além de os salários serem melhores, os trabalhadores têm ainda direito “a 10 dias pagos de sick leave e a tirarem o que chamam de mental health day quando sentem que estão mais ansiosos ou stressados”, relatou.
Na equipa de que Rute hoje faz parte, alguns elementos fizeram formação em primeiros socorros psiquiátricos e são regulares as formações e encontros para que os vários elementos partilhem as dificuldades que sentem.
É difícil escapar ao cliché de que o caminho se faz caminhando, mas Rute sente que está mais acompanhada nas dificuldades e recuperou a vontade de se voltar a dedicar totalmente à sua paixão: enfermagem de internamento.
*Apoio emocional e prevenção do suicídio
Aconselhamento Psicológico do SNS 24
808 24 24 24 – selecionar depois opção 4 (24h/dia)
SOS Voz Amiga
www.sosvozamiga.org
(entre as 16 e as 24h00)
Tel.: 21 354 45 45
Tel.: 91 280 26 69
Tel.: 96 352 46 60
Conversa Amiga
(das 15h e às 22)
Tel.: 808 237 327
Tel.: 210 027 159
SOS Estudante
www.sosestudante.pt
(das 20h à 01h)
Tel.: 239 48 40 20
Linha LUA
(das 21h à 01h)
Tel.: 800 208 448
Telefone da Esperança
(das 20h às 23h)
Tel.: 22 208 07 07
Telefone da Amizade
(das 20h às 23h)
Tel.: 22 208 07 07
Voz de Apoio
(das 21h às 24h)
Tel.: 22 550 60 70