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Túnel de voo circular: Voando rumo à liberdade

Túnel de voo circular: Voando rumo à liberdade

O Hospital Veterinário da UTAD tem como principal novidade um túnel de voo com um canal circular que ocupa mais de 300m2 e que serve para a recuperação das centenas de aves selvagens que todos os anos são tratadas e devolvidas ao habitat natural por esta instituição de ensino transmontana. Apesar de anualmente a unidade hospitalar recuperar mais de 300 animais selvagens, contribuindo para a manutenção dos ecossistemas nacionais, está a passar por graves dificuldades de tesouraria.

Fred, com os seus olhos negros intensos, mostra-se inquieto, fitando directamente os intrusos. Ronda os humanos que se atreveram a entrar no “seu” território com piruetas ameaçadoras e guinchos. Filipe Silva avisa que não convém dar-lhe as costas porque “é muito territorial e não está a achar piada. Pode muito bem dar-vos umas bicadas na cabeça”. Feito o aviso, passamos a ser nós quem não perde os movimentos do corvo-mascote por um segundo.

Estamos no Hospital Veterinário da UTAD, num bosque em Vila Real, no epicentro da principal novidade desta unidade hospitalar de ponta: um túnel de voo com um canal circular que ocupa mais de 300m2 e que serve para a recuperação das centenas de aves selvagens que todos os anos são tratadas e devolvidas ao habitat natural por esta instituição de ensino transmontana. O facto de o túnel ter sido feito de forma circular prende-se com a necessidade das aves voarem à volta de um edifício “sem se darem conta que o círculo não se fecha, voando até se cansarem”, explica o responsável.

 

Como nos é revelado, existem na Europa estruturas idênticas, mas o túnel de voo de Vila Real é realmente único, segundo os seus responsáveis, porque em vez ter a parte central “oca”, sem qualquer aproveitamento, construiu-se um edifício que alberga o bloco operatório e espaços de recobro. Assim, o edifício octogonal possui um pequeno hospital para tratamento de animais selvagens e é rodeado pelo referido túnel de voo, com cinco metros de largura e oito de altura. Este pertence ao Centro de Recepção e Acolhimento de Animais Selvagens (CRATAS). Filipe Silva, director interino do serviço de animais selvagens e exóticos, explica-nos que o edifício octogonal conjuga um túnel onde as aves selvagens podem voar ininterruptamente, sem encontrar obstáculos, e um conjunto de salas de cuidados continuados, de tratamento e de internamento, com um equipamento de raio-X.

Além do octógono, o centro possui um outro túnel de voo horizontal, com seis metros de altura e 25 de cumprimento e 11 salas de muda, espaço intermédio de tratamento antes dos animais poderem ir para os túneis de voo, fundamentais para observar as suas melhoras. Aliás, as aves só têm alta quando os técnicos verificam que já não têm qualquer problema de locomoção e estão aptas a sobreviver sem qualquer handicap que as prejudique no dia-a-dia. “Quando constatamos que as aves voam sem qualquer problema e que já conseguem caçar, libertamo-las na natureza”.

 

Fred, o espicaçador

Fred foi recolhido pela equipa liderada por Filipe Silva, responsável interino pelo projecto, em “muito más condições”, com uma pata partida, mas recuperou a autonomia e agora é ele que “comanda” a recuperação das outras aves. Sujeitando-se a ser punido pelo mau génio de abutres, águias e outras aves de maior porte, o corvo, que foi adoptado pelo centro como mascote e é já a sua coqueluche, marca o ritmo da recuperação dos outros colegas de infortúnio, dando pequenas bicadas para incentivar os demais a voar no túnel circular. “É um animal extremamente inteligente e engraçado até. Lá está ele a tentar obrigar os outros a voar… Sempre que vê uma ave nova, vai lá chateá-la”, diz o especialista, apontado para a fuga super-sónica de Fred às garras de uma abutre que ainda não se consegue deslocar com desenvoltura. “Esta atitude do Fred é muito positiva porque algumas aves não sabem como reagir face ao espicaçar do corvo e defendem-se pondo-se a voar”.

 

De resto, é provável que o corvo passe o resto dos seus dias nesta estrutura. “Estamos a pensar adoptá-lo porque, além de ter ficado com uma deficiência numa pata, já se habituou ao contacto com o homem e corre o risco de ser morto lá fora porque perdeu o instinto de sobrevivência. O Freddy é a alegria deste centro”, explica.

Depois de observarmos várias tentativas frustradas de voo de um enorme abutre, que não consegue levantar voo porque está “demasiado pesado” e “ainda não ganhou confiança” para voar, somos levados a fazer uma visita guiada pela unidade hospitalar que presta apoio na recuperação dos animais.

 

Francisco Silva pede desculpa “pela desarrumação” da unidade de cuidados intensivos e justifica a desordem com a falta de verbas para contratar pessoal auxiliar. “A nossa equipa médica trabalha horas a fio, não conseguimos dar mais de nós”, desabafa.

Após ultrapassarem os riscos inerentes à passagem pelos cuidados intensivos, os animais são transladados para as câmaras de muda, que mais não são que grandes jaulas – de diversos tamanhos – para darem início ao processo de lenta recuperação necessária para passarem no teste final: voar no supra-citado túnel. “O animal entra aqui quando já não faz medicação diária ou tratamento de pensos. Só depois de ganhar massa muscular e de reaprender a voar é que passa pelos túneis de voo”. Anualmente o centro trata mais de 300 animais, que irão ser soltos na natureza.

O homem com factor de mudança

Uma gigantesca bola de penas mantém-se imóvel, com uns olhos enormes. Filipe Silva cede e abre a porta da jaula. O fotógrafo posiciona-se frente-a-frente ao bufo-real – “que consegue comer gatos” – para captar uma imagem. Por segundos, a imponente ave de rapina pára no tempo e fixa quem está na sua frente. Foi sol de pouca dura. Abre as asas e obriga o repórter a dar um salto de receio para trás. Nas jaulas ao lado, várias espécies de aves – e também alguns mamíferos, como raposas e corsos – acomodam-se a um dia-a-dia de preparação para a liberdade. São longos meses de readaptação aos instintos que ditarão a sobrevivência (ou não) na natureza.

O líder deste inovador projecto revela que o centro de recuperação recolhe todo o tipo de aves, de várias partes da zona Norte e Centro do país, uma vez que as aves feridas que têm mais sorte – “morrem mais 90 por cento das aves feridas” – se “deixam agarrar” pelas almas mais caridosas de humanos preocupados com a sobrevivência da biodiversidade. Contudo é o SEPNA (Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente), uma unidade especial da GNR, que mais animais transporta para as instalações do centro de recuperação. Uma força policial “que funciona muito bem”.

Para Francisco Silva, o seu trabalho só faz sentido se se conseguir que a população, nomeadamente as crianças, estejam sensibilizadas para a necessidade de preservar a natureza e proteger os animais. “Fazemos questão de não libertar os animais às escondidas. Promovemos as nossas acções de libertação junto da comunidade e sempre que haja algum dia especial para que fique na memória das pessoas, nomeadamente das crianças”. E acrescenta: “se conseguirmos que no dia de amanhã estas crianças, que vão ser homens, pensem várias vezes antes de disparar a sua arma contra as aves que encontrarem no seu caminho, que desviem a mira para outro lado, terá sido uma grande vitória.”

 

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Génio de arquitecto

Como já foi referido, o túnel de voo circular da UTAD é único. A estrutura nasceu do génio do arquitecto que teve a “brilhante ideia” de “preencher” o centro com uma unidade hospitalar. “ O arquitecto chegou aqui e disse: ‘é fácil, faz-se assim…’ Nada mais simples, nada de mais genial”. Para Francisco Santos, o nascimento de uma unidade hospitalar no meio do túnel é “como a história do ovo de Colombo: tão simples, mas que ninguém conseguiu criar antes de ter aparecido. Ninguém se lembrou, mas toda a gente achou uma ideia brilhante”.

 

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Falta de verbas põe em causa sobrevivência

Que vivemos um dos momentos mais conturbados da história recente do país já ninguém tem dúvidas, mas será que a crise pode servir de carapaça para desculpar anos e anos de incúria no financiamento de projectos que, realmente, fazem a diferença na defesa do meio ambiente? Filipe Silva encolhe os ombros, em sinal de desalento, mas aproveita para dar uma bicada num sistema que incentiva as energias renováveis, sendo líder mundial nesta área, mas que se esquece de investir em quem luta pela manutenção dos ecossistemas. A crise é tal forma grave que já nem as grandes superfícies colaboram com ofertas de perecíveis, como a carne e peixe no limite do prazo de validade, porque “estão a vender estes produtos porque são mais baratos e as pessoas não se importam de os comprar”. Face às dificuldades, o líder do projecto admite que é preciso fazer uma enorme ginástica financeira que possibilita a sobrevivência, a simples manutenção de uma estrutura que necessita de muito para se manter à tona. O que vale, segundo o responsável, é “a boa vontade” da direcção do Hospital da UTAD, que canaliza parte das receitas feitas com intervenções cirúrgicas para a sobrevivência do túnel de voo.

 

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Novo túnel em Boticas

O sucesso do projecto é tal que os seus responsáveis não querem parar por aqui. Um outro túnel de voo horizontal está a ser criado, com o apoio da câmara municipal, em Boticas, também em Trás-os-Montes. Só que esta nova estrutura irá ter 100 metros de comprimento em declive, de modo que as aves consigam apanhar ventos contrários. Quando este novo túnel estiver a funcionar – ficará radicado num parque temático ligado à biodiversidade – será possível observar in loco a parte final da recuperação das aves, nomeadamente as de grande porte.

 

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