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Leishmaniose: a doença de cura difícil

Leishmaniose: a doença de cura difícil

Apesar de possuir grande prevalência nos cães portugueses, a leishmaniose pode afectar outros animais, inclusive o Homem. Contudo, o maior problema é a falta de diagnóstico de alguns casos, agravado pelo facto de muitos donos optarem por não tratar o seu animal devido a dificuldades económicas. E o número de animais infectados pela doença não pára de crescer. De tal modo, que não é possível aferir o saldo final.

Doença causada pelo protozoário Leishmania infantum, a leishmaniose pode afectar outros animais além dos cães, entre eles a raposa, o lobo, o gato, o cavalo e os roedores. Esta doença tem carácter zoonótico, «o que significa que o cão é o reservatório do protozoário para o Homem». Para além desta via, o Homem pode sofrer de «leishmaniose visceral transmitida através do ciclo antroponótico, isto é, através da picada do vector que se infectou noutro ser humano parasitado ou de modo artificial através da partilha de agulhas hipodérmicas», elucidam as investigadoras Gabriela Santos-Gomes e Isabel Pereira da Fonseca.

E, embora a principal causa da doença seja a transmissão do parasita através do vector, «mais raramente, a transmissão venérea e por transfusão sanguínea também podem ocorrer», acrescentam.

 

Ameaça silenciosa

A transmissão é feita através de uma picada do flebótomo, um insecto de tamanho bastante reduzido que, ao contrário dos mosquitos, não emite um zumbido e cuja cor varia desde amarelo claro a castanho-escuro. Este, ao picar um cão infectado com leishmania, ingere os parasitas juntamente com o sangue, que posteriormente chegam ao estômago do insecto, onde se reproduzem.

 

É no momento em que o insecto pica outro cão que os parasitas são transmitidos para o novo hospedeiro, «por inoculação da saliva contendo leishmanias» disseminando assim a doença, esclarece o médico veterinário, Pedro Salvador Marques.

Cientificamente falando, as autoras do livro “Leishmaniose Canina” referem que o parasita em causa pertence a espécies do género Phlebotomus nos países do sul da Europa, do Norte de África e na China e, do género Lutzomyia na América do Sul.

 

Sintomas progressivos

De evolução lenta, os sintomas da leishmaniose são progressivos, sendo os sinais mais comuns a «perda de peso, aparecimento de descamação e seborreia, crescimento exagerado das unhas, queda de pêlo e ulceração nos pavilhões auriculares, peri-oculares e nas zonas de protuberâncias ósseas», conta Hélder Rodrigues, que explica ainda que, «com o tempo, se desenvolve atrofia dos músculos da cabeça. Existe ainda inflamação dos vasos sanguíneos, o que leva ao aparecimento de sangramento pelo nariz».

 

As investigadoras Gabriela Santos-Gomes e Isabel Pereira da Fonseca incluem ainda na lista de sintomas «diversos sinais clínicos cutâneo-viscerais, nomeadamente ulcerações de difícil cicatrização, linfadenomegália, alopecia, emagrecimento, atrofia muscular, hiperqueratose, descamação, onicogrifose, alterações oculares, renais e articulares, anemia, nódulos cutâneos e intracutâneos (por vezes com neoplasias), hipertermia, alterações digestivas e comportamentais». Contudo, salientam que «é importante realçar que um cão infectado pode não manifestar sintomas durante bastante tempo ou mesmo durante toda a vida».

O diagnóstico da leishmaniose é habitualmente clínico e confirmado por exames laboratoriais. Com um período de incubação de um mês a dois anos, a doença pode-se apresentar sob as formas aguda ou crónica, mas «a patogenia da leishmaniose está relacionada com a virulência da estirpe, o tamanho do inóculo, o estado de nutrição do animal, a presença de co-infecções e a capacidade genética do animal para apresentar a resposta imunológica adequada ao controlo do infecção».

Importância do tratamento

Não existe até à data um tratamento que garanta a cura de cães com leishmaniose, mas Hélder Rodrigues explica que, com os medicamentos existentes, se consegue «a remissão dos sinais clínicos». Contudo, há que contar com o facto de o animal poder ficar portador do parasita, «podendo vir a ter recaídas passados meses ou anos», elucida o médico veterinário. Assim, o sucesso do tratamento depende muito do diagnóstico precoce da doença, bem como do recurso à terapêutica adequada.

Uma vez tratado e, apesar de o animal ser reservatório da doença, este consegue ter uma boa qualidade de vida, «desde que se cumpra com o plano de tratamentos e reavaliações clínicas recomendadas pelo médico veterinário assistente», avalia Hélder Rodrigues.

Porém, de acordo com as autoras do livro “Leishmaniose Canina”, o tratamento nem sempre é conseguido, porque a maioria dos animais continua a habitar os mesmos locais e as reinfecções podem ocorrer. As especialistas consideram também que os fármacos habitualmente utilizados têm uma «eficácia relativa». Apesar disso, declaram que existem actualmente no mercado vários princípios activos que podem ser administrados aos cães, «controlando a infecção e mantendo os animais o mais próximo possível do estado hígido».

Número indeterminado de infectados

Em Portugal, considera-se que a leishmaniose canina é esporádica em todo o território continental. Existem, no entanto algumas regiões onde o risco de infecção é maior, nomeadamente a região metropolitana de Lisboa e Setúbal, Trás-os-Montes e Alto Douro, a Beira Interior, grande parte do Alto e Baixo Alentejo e o Algarve, explicou Hélder Rodrigues.

Doença muito presente nos motivos de visita aos consultórios contactados – no Hospital Veterinário Tutti Natura, em Viseu, Hélder Rodrigues relata que, «num registo de cerca de 12 mil animais vivos, foram diagnosticados 560 animais com doença sintomática» – não é contudo possível determinar «com rigor absoluto» o número de animais afectados anualmente. Isto porque, como salientam as investigadoras, na área da leishmaniose há um número não estimado de cães errantes afectados e cães domésticos cujos donos não os levam ao veterinário.

Além disso, o número varia muito de região para região, «dependendo das condições higiénicas e sociais e do ambiente que rodeia os animais». Assim, zonas com matéria orgânica em decomposição e com certo grau de humidade como refúgios de animais, caixotes com lixo, muros degradados, jardins e matas favorecem a existência dos flebótomos e facilitam a transmissão do parasita, exemplificam.

Outro problema que poderá contribuir para a prevalência da doença é a dificuldade técnica do diagnóstico exacto de alguns casos, apontada por Ricardo Esquetim Vintém, aliada ao facto de o tratamento ser dispendioso e não garantir a cura completa, além de que o controlo «mais ou menos rigoroso» depende do perfil do proprietário.
Da sua prática diária, Ricardo Esquetim Vintém pensa mesmo que o aspecto económico é o factor que cria maior dificuldade na gestão da leishmaniose, uma vez que os cães em maior risco são normalmente os que recebem menos cuidados médicos, cujos proprietários normalmente não estão dispostos a grandes gastos com cuidados veterinários.

Daí que ressalve a existência em certas zonas, principalmente rurais, de inúmeros animais afectados (por falta de prevenção), que, por não serem tratados, são reservatórios para a transmissão regional do parasita, criando um ciclo vicioso local/regional.

Investir na prevenção
  
Dado este cenário em que há muitos animais infectados sem controlo ou tratamento, é então fulcral investir na prevenção da doença.

No mercado estão disponíveis várias soluções antiparasitárias, sob a forma de coleiras ou pipetas. Estes produtos funcionam como repelentes para os insectos, evitando que piquem o animal e transmitam o parasita e, com uma utilização adequada, «conseguem-se taxas de protecção de cerca de 95% para alguns produtos», frisa o médico veterinário da Tutti Natura.

Já Pedro Salvador Marques recomenda também «evitar passeios no crepúsculo, ou no amanhecer – horas preferenciais de alimentação dos flebótomos fêmeas ; o uso de redes mosquiteiras; a boa alimentação, a vacinação e a desparasitação» que vê como «boas medidas gerais» de prevenção no cão.

Gabriela Santos-Gomes e Isabel Pereira da Fonseca aconselham ainda que, «embora em Portugal exista um período de transmissão mais acentuada associada ao aumento da temperatura (entre Março e Outubro) e das populações de flebótomos», os animais sejam protegidos da picada dos insectos durante todo o ano, «tendo em conta as alterações climáticas».

Além disso, as especialistas consideram que, em canis com múltiplos animais, deve ser realizado o controlo dos flebótomos através de electrocutores ou de redes impregnadas com insecticidas, sendo «igualmente recomendável a destruição dos locais de postura e de criação do insecto vector».

Mas o que gostariam de ver em Portugal era a utilização de uma vacina eficaz contra a leishmaniose canina, pois consideram que esta seria a melhor forma de prevenção. Como revelam, muitos têm sido os grupos de investigadores que se têm dedicado à procura de uma vacina contra as leishmanioses, mas até ao momento não há vacinas disponíveis. Excepção para o Brasil onde estão licenciadas duas vacinas contra a leishmaniose canina».

ONLeish – Observatório Português das Leishmanioses

O ONLeish – Observatório Português das Leishmanioses nasceu da iniciativa de um conjunto de pessoas de várias áreas que considerou  importante criar uma entidade para promover o esclarecimento e o desenvolvimento de acções assertivas sobre esta doença.
Associação sem fins lucrativos, o ONLeish tem como objectivos principais a criação  e manutenção de uma rede de vigilância epidemiológica das leishmanioses; a divulgação dos resultados da rede de vigilância epidemiológica às entidades competentes ou com interesse na matéria; apoio e organização de acções de esclarecimento e sensibilização; apoio a estudos de investigação; edição de publicações sobre  as infecções provocadas pelos parasitas do género leishmania; promoção, realização e divulgação de trabalhos científicos, congressos, seminários, colóquios ou acções de formação relacionados com o tema.

Situação na Europa

De acordo com o inquérito realizado por Isabel Pereira da Fonseca, em colaboração com Ana Oliveira e Patrick Bourdeau, Portugal apresenta casos de leishmaniose em todo o território continental. Se na Madeira são referidos casos de animais que já chegaram infectados àquela ilha, nos Açores «não há qualquer registo até ao momento», contam.
Contudo, Portugal partilha uma situação endémica com a Espanha, a Grécia, Itália e outros países do Sul da Europa onde as condições climáticas são muito semelhantes. Já no caso dos países do Norte da Europa, devido à ausência do vector, a leishmaniose canina é importada, «resultando da exposição dos animais ao parasita quando se deslocam com os donos durante as férias para zonas onde a doença é endémica».

Medidas de prevenção padronizadas

O Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e outras Zoonoses, (Dec. Lei 314/2003) determina que os cães presentes à campanha de vacinação anti-rábica que exibam sintomas suspeitos de leishmaniose devam ser sujeitos a testes de diagnóstico.
Em caso positivo, os detentores dos animais são notificados pelo médico veterinário municipal no sentido de procederem ao tratamento médico no prazo de 30 dias, apresentando o respectivo comprovativo. Se o tratamento não for efectuado, os animais deverão ser eutanasiados.
Embora os níveis de leishmaniose canina em Portugal não se comparem aos existentes no Brasil, por exemplo, Gabriela Santos-Gomes e Isabel Fonseca consideram que «seria benéfico considerar um plano de divulgação e informação activo sobre a leishmaniose a nível nacional, com informação apropriada aos diferentes públicos alvo, dando especial atenção à importante ligação afectiva que se estabelece entre os donos e os seus cães».

Papel dos médicos veterinários

O médico veterinário assume grande importância não apenas no tratamento dos animais com leishmaniose, mas também ao nível da pedagogia e no ensino da prevenção «dos sinais e dos sintomas da doença desde as primeiras consultas do cão, além de lembrar aos donos que esta doença é também transmissível aos ser humano».
Cabe igualmente ao médico veterinário tomar as decisões que achar adequadas, «de acordo com o estado geral do animal infectado, a possibilidade de tratamento e as condições económicas do dono para o suportar», nas palavras das autoras do livro “Leishmaniose Canina”, Gabriela Santos-Gomes e Isabel Pereira da Fonseca. É também a estes profissionais que compete elucidar o dono em todas as situações, em especial naquelas que possam conduzir à eutanásia do animal por diversos motivos, entre eles, a ineficácia do tratamento, o sofrimento, o risco de abandono dos animais doentes, os custos do tratamento e o carácter crónico da doença.

Inquérito nacional

Num inquérito «pioneiro» sobre a distribuição geográfica, apresentação clínica, tratamento e prevenção da leishmaniose canina em Portugal que Isabel Pereira da Fonseca efectuou, enquanto docente da Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa, em colaboração com Ana Oliveira, da Universidade do Estado da Carolina do Norte, e Patrick Bourdeaux, da Escola Veterinária de Nantes, as investigadoras chegaram a algumas conclusões sobre a prevalência da doença no nosso país.
Assim, em 2006, após a distribuição de questionários por correio no mês de Outubro aos centros de atendimento médico veterinário portugueses do Continente e das Ilhas, concluiu-se que 71% dos veterinários inquiridos referiram que o número de casos de leishmaniose canina tinha aumentado no último ano, embora 23% mencionassem que se mantinha igual aos anos anteriores e 6% que diminuiu.
As investigadoras consideram mesmo que, nas últimas décadas, «com a melhoria da situação económico-social do país, a maior sensibilização dos médicos veterinários para esta doença, associado à disponibilidade de técnicas de diagnóstico mais eficientes, é possível identificar casos que anteriormente passavam despercebidos».

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