O Centro para o Conhecimento Animal apresentou um novo serviço de apoio no luto. Como surgiu a ideia de apostar neste serviço?
Gonçalo Graça Pereira: Aquilo que a Sara Fragoso e eu sentimos, durante estes anos a trabalhar no comportamento, foi que alguns tutores chegavam até nós com um segundo animal com problemas de comportamento e não só traziam expectativas em relação ao animal que tinham perdido, como continuavam a sofrer uma dor muito grande pela perda do animal anterior. E muitas vezes isso provocava problemas no animal presente em relação ao animal do passado, que a família tinha perdido. O CPCA está preocupado não só com o bem-estar do animal não humano, mas também com o animal humano e sentimos que havia necessidade de fornecer este apoio. A sociedade não dá esse apoio e as pessoas não têm a quem recorrer.
Por vezes, as pessoas também ridicularizam quem está a passar pelo luto de um animal. Ainda há esse estigma?
Sara Fragoso: Sim, as pessoas partilham e já é vulgar dizermos que o animal é um membro da família, mas quando se perde um animal e a pessoa fica de luto já não é aceite. As pessoas têm de continuar a trabalhar, têm de fazer a sua vida normal porque é isso que é exigido pela sociedade. E nós sabemos que há pessoas que não conseguem lidar com o dia-a-dia devido a esse sofrimento.
GGP – Estamos a criar serviços inovadores no mundo. Em nenhuma outra parte do mundo é oferecido este serviço de cerimónia de despedida ou de preparação para o luto. Em nenhuma parte do mundo é feita esta ajuda. Existe um apoio por parte das empresas de funerária, mas o apoio em que temos o serviço fúnebre juntamente com um apoio psicológico não existe. Qualquer pessoa pode recorrer a um psicólogo, mas este conjunto de serviços que estamos a unir no CPCA, com as psicólogas Ana Moniz e a Tânia Diniz da Arena do Tempo e a Holly Pet é único.
Ana Moniz: Somos psicólogas, psicoterapeutas e a Arena do Tempo é uma empresa que se dedica a organizar cerimónias simbólicas, de despedida no luto. No início, o serviço era apenas dirigido a pessoas, com cerimónias de despedidas que marcam um cerimonial que não é religioso. Falamos sobre a pessoa, fazemos a preparação dos familiares, escolhemos música e textos como forma de homenagear a pessoa e poder dar início a uma despedida e um processo de luto saudável. Pensamos não só neste apoio ao luto nas pessoas, mas também nos animais, porque o luto de um animal é um luto. Não há juízos de valor do que é um luto grande ou pequeno, isso não existe. As pessoas estão em luto e sabemos que uma intervenção precoce pode ajudar a que seja mais descomplicado. Porque um luto destes pode ser bastante complicado.
Alguma vez tinham pensado neste tipo de apoio antes de entrarem em contacto com o CPCA?
AM: Pessoalmente não, mas pensava no que está a acontecer. Ou seja, cada vez mais os animais estão a ter um papel importante, a entrar dentro das famílias, e pensava no impacto que vai ter. Porque vai ter impacto muito grande.
Como se processam as cerimónias de despedida?
Tânia Diniz: Existem vários momentos no processo. Há uma preparação da despedida, que pode acontecer numa fase ainda antes do falecimento do animal. Existem vários serviços que podemos oferecer em termos de apoio: por um lado quando a família se apercebe do que vai ter de enfrentar, como lidar com as emoções, como tomar decisões, porque são decisões muito difíceis. Como se explica a uma criança o que se está a passar? Como se toma a decisão de incluir a criança e o resto da família no processo de luto? Explicamos o que se está a passar ou tratamos de tudo com o veterinário e depois chegamos a casa e dizemos que o animal já não existe? É um susto para as crianças, há um desaparecimento, não existe um processo em que é explicado o que se passa, há um vazio. O vazio da perda existe sempre, mas é diferente de um vazio que é compreendido, que se pode falar, em que há duvidas quer dos adultos, quer dos mais pequenos, que podem ser respondidas. E muitas vezes as pessoas precisam de apoio emocional para esta decisão, que muitas vezes vai para além da decisão clinica, se é possível ou não manter o animal mais tempo.
É um tema que as pessoas estão dispostas a falar? Porque podem fechar-se sobre elas próprias, fazer o seu luto. Depende de pessoa para pessoa?
TD: As pessoas normalmente têm necessidade de falar, estamos é num contexto social em que a morte, mesmo nas pessoas, está relegada para uma coisa estéril, que acontece fora de casa, e que não se fala. Se pensarmos bem, somos todos impelidos a andar para a frente e com os animais da família, além de não haver a possibilidade de parar, há toda a pressão social de que isto não é importante, não é uma perda tão relevante. As pessoas têm consciência que não vão ser compreendidas e portanto não falam. Isso dificulta vários aspetos do luto, por um lado a aceitação de que é natural, a própria ligação às pessoas à volta, quando as pessoas mais precisam de apoio é que sentem que não têm com quem contar. Tentamos de alguma forma colmatar dentro do possível este problema e ajudar a lidar com a dor. Porque a dor não se evita.
E como podemos lidar com a dor? O que transmitem às pessoas?
AM: Primeiro que a dor é inevitável e natural. Não têm de ter vergonha do que sentem, podem proteger-se e escolher com quem podem partilhar, mas não têm de ter vergonha dentro de si, deste sentimento de perda e da forma que sentem este membro da família. Podemos dar uma ajuda mais prática no sentido de organização, porque por vezes as pessoas estão deprimidas que não conseguem organizar o seu quotidiano. Muitas vezes é um impacto que não é compreendido, ninguém aceita a explicação de que estou há um mês em casa deprimido porque faleceu o meu animal de companhia.
A nível das relações laborais, também pode afetar o desempenho profissional?
AM: Como estamos em processo de luto, a capacidade de concentração não é a mesma. Geralmente na fase inicial, mesmo no processo de luto em que a pessoa está a fazer os passos inevitáveis, não deixa de haver um impacto. Muitas vezes, as chefias ou colegas até entendem nos primeiros dias, o problema é que passa uma semana e ao fim de duas semanas todos esperam que a pessoa já tenha ultrapassado. É impensável não ir trabalhar ou chegar atrasado, ou estar distraído no trabalho, ou estar em sofrimento porque é “só” um gato. Portanto junta-se o sofrimento da perda com o isolamento e incompreensão, e tentamos ajudar a pessoa a lidar com a realidade, quer do ponto de vista da compreensão dos outros, quer da sua realidade interna, de como vai lidar com isto. Eventualmente no futuro como ela pode estabelecer relações de afeto com outros animais, que não sejam a substituição do animal que se perdeu.
Este serviço pode ser indicado para animais com doenças mais prolongadas?
GGP – Sobretudo nas doenças mais prolongadas, em que antecipamos a morte. O veterinário pode encaminhar a família para nós quando já se prepara, por exemplo, com uma possível eutanásia, porque começa-se a discutir a eutanásia nos humanos, mas a eutanásia nos animais é algo que é frequentemente feito. Sabendo que irá haver esse processo, o veterinário pode recomendar à família para fazer a cerimónia de despedida, a preparação do serviço fúnebre desde a preparação da despedida ao processo da cremação.
SF – Não é só a perda do animal, mas a tomada de decisão que tem de ser feita e isso acarreta muito mais sofrimento e está relacionado com a dor, porque por vezes são os donos que têm de tomar a decisão de terminar com o sofrimento do animal.
No estudo nacional sobre a prevalência de stresse e burnout nos médicos veterinários em Portugal foi referido que uma das situações mais causadoras de stresse nos veterinários está relacionada com o facto de terem de lidar com a morte dos animais. Já pensaram em consultas para os próprios veterinários?
GGP – No seguimento das conclusões desse estudo foi observado que os profissionais que têm um maior desgaste profissional e maior insatisfação com a vida são os oncologistas e os comportamentalistas porque são os que lidam com maior frustração e que estão mais próximos da morte. No caso dos oncologistas porque é uma morte eminente e nos comportamentalistas porque muitas vezes são feitas eutanásias de animais saudáveis, porque separamos o cérebro do resto do corpo. Vamos lançar um curso com as nossas psicólogas em técnicas de gestão de stress e burnout e técnicas de comunicação, em que explicamos como falar com uma criança sobre determinadas temáticas – situações de crise – como comunicar más notícias, como conseguir ser empático.
TD: Perante o choque da dor, as pessoas podem ficar zangadas, podem achar que a culpa é do médico veterinário. É daquelas emoções mais fortes que aparecem quando acontece algo de muito difícil.
GGP: E que nós veterinários não nos sabemos proteger porque ou entramos numa compassion fatigue porque vamos eutanasiar um cão ou criamos uma carapaça em que não há problema nenhum, é mais um. E não é mais um! Nunca é mais um!
Mas isso não é uma defesa que os veterinários criam para lidar com estas situações?
GGP: Mas não é a defesa que um psicólogo recomendaria.
TD: Isso é típico das profissões de ajuda: no início as pessoas começam por ter um desgaste de compaixão, e depois ou conseguem encontrar regulação, que é o que queremos ajudar os veterinários a saber regular esta parte emocional de modo a conseguirem proteger-se e chegar à outra pessoa, ou fazem uma carapaça que aparentemente os protege, mas dificulta tudo, porque nem sequer conseguem estabelecer uma relação. O que é preciso é conseguir encontrar esse equilíbrio dinâmico, em que consigo aproximar-me e depois afastar-me, de modo a poder repor energias e não estar sempre em compaixão. Isso é trabalhado e desenvolvido nas pessoas.
E a cerimonia de despedida, como se processa?
TD: Primeiro a família decide que quer a cerimonia e nós reunimos com um elemento da família para reunir a história do animal naquela família, recordar os melhores momentos, no fundo tentar organizar as memórias que vão ficar deste companheiro. Há esse trabalho, temos uma estrutura de cerimónia com algumas citações, poesia que pode ser lida, pequenos apontamentos de reflexão sobre a despedida e depois, no momento da cerimónia, dar oportunidade para haver esta reflexão, esta despedida com homenagem, um momento de agradecimento pelo tempo partilhado e o mote para que se possa falar. Porque é importante que se fale e as pessoas normalmente não se sentem autorizadas a fazê-lo.
Essa cerimónia é importante para compreender e encarar o luto?
AM: Na psicologia sabemos que os rituais nos momentos de transição ajudam a pensar sobre as coisas e a organizá-las dentro de nós, para passarmos à fase seguinte de forma mais saudável. E ajudam a partilhar com o outro, porque nem sempre conseguimos partilhar a nossa experiencia da melhor forma e a cerimónia cria essa oportunidade de partilha, de compressão e iniciar este processo de continuidade. Como este animal encaixou durante tanto tempo na nossa família e vai continuar a fazer parte daqui para a frente, mas de outra forma.