O diretor clínico do VetAl – Complexo Veterinário do Alto Alentejo testemunha o que é o dia-a-dia de um médico veterinário do interior do País, que vive com um pé no consultório e outro nas explorações pecuárias. Ricardo Romão dá também voz às dificuldades da interioridade, nomeadamente no recrutamento de recursos humanos e na viabilidade casuística e financeira de um hospital veterinário.
É uma vida diferente. Uma frase curta, mas que contém todo um conjunto de características, tarefas, desafios e responsabilidades que separa o quotidiano de um médico veterinário que vive e trabalha no interior do País, da rotina de um veterinário de uma cidade do litoral.
A conversa da VETERINÁRIA ATUAL com Ricardo Romão espelha essas diferenças, não de uma forma miserabilista, muito pelo contrário. “A atividade veterinária está muito relacionada com a densidade populacional e é necessariamente diferente entre um grande bairro de Lisboa e o interior”, frisa o diretor clínico do VetAl – Complexo Veterinário do Alto Alentejo, situado em Portalegre. Ou seja, simplesmente sublinha o que é: diferente.
A começar pela população seguida pela equipa do complexo veterinário, longe do arquétipo das famílias urbanas, cujos animais de companhia não fazem vida de quintal ou de quinta. Saem à rua para o passeio diário das necessidades básicas, ou nem isso no caso dos felinos, e passam o dia fechados em apartamentos, numa rotina que está nos antípodas da vida ao ar livre de muitos dos animais de companhia de quem vive no campo.
Depois, porque desde que abriu as portas enquanto Centro de Atendimento Médico-Veterinário (CAMV), o VetAl dedicou-se não só aos animais de companhia, mas também se lançou no acompanhamento dos animais de produção. Afinal, Portalegre até já pode ser uma cidade de tamanho médio, mas não deixa de estar inserida no meio rural do Alentejo profundo.
“A equipa é muito dinâmica e temos conseguido mantê-la fixa, com qualidade, o que permite às pessoas terem os seus tempos de folga” – Ricardo Romão, diretor técnico do VetAl
 
Foi com estas duas vertentes que foi pensada a atividade da clínica veterinária, formalmente constituída como empresa em 2003 e que abriu portas dois anos mais tarde como CAMV. Depressa a visão mais abrangente das necessidades do território alargou o portfólio de negócio do centro de atendimento e se tornou no complexo veterinário que hoje está em atividade. Além da clínica com atendimento em consultório dos animais de companhia (VetAl Clínica), e dos animais de produção seguidos nas explorações (VetAl Animais de Produção), o complexo alberga também um hotel e um centro de estética animal (VetAl Hotel/Estética), um centro hípico (VetAl Centro Hípico) e rentabiliza as instalações com a organização de eventos (VetAl Eventos e VetAl Bar), usufruindo dos recursos naturais do Alentejo e potenciando a relação entre humanos e animais com passeios de charrete e de burros pelo Parque Natural da Serra de S. Mamede.
Ricardo Romão reconhece que o alargamento da carteira de atividades decorreu “das necessidades que nos foram chegando da comunidade” e que a equipa percecionou como oportunidades para crescer num meio, na altura, ainda carente de alguns serviços na área da veterinária. Por exemplo, recorda o médico veterinário, há quase 20 anos em Portalegre “as pessoas não tinham acesso a nenhum hotel para animais, pois não havia nenhum na região, e acabavam por condicionar as férias porque não tinham onde deixar os animais”. Para uma necessidade criou-se uma solução e assim abriu o hotel para animais de companhia, que veio contribuir para minorar o stresse dos tutores em períodos de férias.
Um CAMV também ajuda a formar a comunidade
É certo que o protagonismo da visão One Health cresceu muito nos últimos anos, mas para o complexo veterinário VetAl apostar na formação da comunidade sobre as questões de saúde pública e do bem-estar animal não é novidade nestas quase duas décadas de funcionamento.
A equipa sempre teve as portas abertas à colaboração com os organismos e as instituições presentes na região de Portalegre, pois, sendo médicos veterinários, “percebemos que é mais fácil chegar às gerações mais jovens que precisam de formação nessas áreas”, admite o diretor clínico. Aliás, reconhece, “as crianças têm uma grande curiosidade” por estes temas, o que facilita a interação com os profissionais de medicina veterinária e a passagem de mensagens que, por vezes, são assimiladas mais dificilmente por adultos.
Daí que as visitas dos profissionais a escolas, que acolhem palestras e formações e com quem mantêm “uma relação muito boa”, e as visitas que organizam da comunidade escolar e não só ao complexo veterinário para o convívio com os animais, há muito fazem parte do quotidiano da equipa e até têm ajudado a vencer alguns medos dos mais novos em relação aos animais.
Foi mais ou menos o mesmo processo que levou ao nascimento do centro hípico. Com a procura de serviços na área da medicina veterinária de equídeos, muito tradicional no Alentejo, o CAMV tinha um picadeiro que decidiu abrir à comunidade para permitir às crianças da região usufruírem de atividades equestres. “Não existia qualquer serviço em funcionamento em Portalegre na altura e havia um potencial grande na região”, reconhece o diretor clínico. E se, anteriormente, a equitação estava longe de ser a primeira escolha nas atividades de tempos livres a que os mais jovens se dedicam depois da escola, neste momento as lições de volteio, de iniciação à sela ou de ensino de obstáculos já rivalizam com o futebol, ou outros desportos coletivos e individuais, nas escolhas dos mais novos, simplesmente porque passou a existir esta oferta na região.
A existência do picadeiro também proporcionou ao complexo passar a oferecer serviços na área da equitação adaptada para pessoas com dificuldades físicas e/ou cognitivas e portadoras de deficiência, da hipoterapia e sessões de desenvolvimento infantil que promovem as capacidades psicomotoras das crianças mais pequenas, terapias que costumam ser mais acessíveis em grandes centros do litoral.
“É muito difícil manter um hospital veterinário no interior do País”
A dimensão da estrutura e os diferentes serviços que o complexo VetAl proporciona são, certamente, diferentes de um CAMV mais citadino. Mas, dentro da clínica, os cinco médicos veterinários, seis enfermeiros veterinários e três auxiliares têm uma carteira de clientes e um quotidiano de casos clínicos semelhante a qualquer outro CAMV.
Ainda assim, Ricardo Romão lamenta que, apesar de terem instalações com dimensão, o VetAl ainda não esteja classificado como hospital veterinário. “Esse é o caminho [alterar o tipo de licenciamento], mas é muito difícil manter um hospital veterinário no interior do País”, reconhece, apontando as limitações da casuística como um dos maiores entraves à prossecução desse objetivo.
Casuística que também limita as opções de investimento pois “não há massa crítica que justifique investir em determinados serviços”, explica Ricardo Romão. Sobretudo serviços que necessitam de maior investimento, como equipamentos de ressonância magnética ou de tomografia computorizada, o que obriga, em casos mais complicados, à referenciação de animais para estruturas mais diferenciadas no litoral.
“O veterinário tem de estar cada vez mais presente nas explorações, não pode ser chamado apenas quando há um problema, tem de ter uma palavra a dizer na minimização da utilização de antimicrobianos e nas medidas de profilaxia que têm cada vez melhores resultados” – Ricardo Romão, diretor técnico do VetAl
Ainda assim, pelo conjunto de serviços que proporciona, o VetAl funciona como centro de referência para centros veterinários mais pequenos da região. Ricardo Romão explica que “a equipa é muito dinâmica e temos conseguido manter uma equipa fixa, com qualidade, o que permite às pessoas terem os seus tempos de folga”, uma estabilidade que também tem permitido apostar na diferenciação dos recursos humanos. O objetivo “é ter profissionais que se dediquem a determinada área, façam formação e especializações e isto só é possível quando há uma equipa”, explica o responsável. E, segundo adianta, as áreas de formação nas quais a equipa se tem focado alicerçam-se nas necessidades sentidas pelo mercado. “A medicina felina, o comportamento animal e a oncologia são as áreas que têm crescido mais nos últimos anos, fruto das novas realidades da sociedade, e tentamos ir apetrechando a equipa de valências e de formação nas áreas em que as pessoas demonstram precisar mais de acompanhamento”, diz Ricardo Romão.
Além destas áreas, a equipa dedica-se também à cirurgia ortopédica e de tecidos moles, à oftalmologia, à nutrição, à analgesia e controlo da dor, à cardiologia e o CAMV tem também serviços de diagnóstico, recorrendo à imagiologia e ao laboratório de análises clínicas.
Veterinário de campo não pode ser um “apaga fogos”
É fora do consultório que as diferenças entre um médico veterinário mais citadino e um médico veterinário do meio rural mais se notam. Quando saem para visitar as explorações, seguir animais de produção, numa tarefa que, defende Ricardo Romão, tem vindo a crescer de importância e reconhecimento. “O veterinário de campo sempre foi visto como o apaga fogos”, aquele que só era chamado à exploração quando um animal ficava doente ou em caso de partos mais difíceis, lembra Ricardo Romão, que, nos últimos anos, observou uma mudança de paradigma: “Hoje temos o dever moral de zelar pela saúde dos animais numa visão mais preventiva e dando cumprimento ao plano sanitário da exploração”.
As diretrizes europeias são rígidas na utilização de fármacos, nomeadamente da antibioterapia, o conceito One Health [Uma Só Saúde] está a ganhar peso na sociedade, o conceito de bem-estar animal tem crescido de protagonismo, sendo cada vez mais um foco na preocupação dos consumidores, e os médicos veterinários de campo têm estado na linha da frente destes desenvolvimentos. Para Ricardo Romão é mais que natural os médicos veterinários tomarem a dianteira neste novo enquadramento da saúde global, pois, assegura, “a nossa profissão vive deste conceito de Uma Só Saúde, nós tratamos as pessoas através dos animais”, e reforça: “O veterinário tem de estar cada vez mais presente nas explorações, não pode ser chamado apenas quando há um problema, tem de ter uma palavra a dizer na minimização da utilização de antimicrobianos e nas medidas de profilaxia que têm cada vez melhores resultados”.
Contudo, para que isso aconteça são precisas duas condições. A primeira é trabalhar em equipa, porque “estamos numa altura em que já não é possível trabalhar de uma forma básica”, reconhece o médico veterinário. Só assim será possível “atuar de forma mais robusta” e cobrir todas as áreas desde o bem-estar animal, à profilaxia sanitária, aos partos e à medicina da reprodução, cada vez com mais procura entre os produtores. Aliás, a medicina de reprodução tem sido uma aposta do VetAl Animais de Produção, em resposta às necessidades dos clientes interessados em melhorar o sucesso reprodutivo dos efetivos, realizando exames andológicos a reprodutores de espécies pecuárias, programas de reprodução assistida, além da assistência a situações de urgência, nomeadamente os partos distócicos e os problemas do peri-parto, com recurso à cirurgia, como por exemplo as cesarianas ou a resolução cirúrgica de prolapsos uterinos.
“Hoje temos o dever moral de zelar pela saúde dos animais numa visão mais preventiva e dando cumprimento ao plano sanitário da exploração” – Ricardo Romão, diretor técnico do VetAl
O complexo permite ainda prestar um apoio mais diferenciado às explorações no campo da cirurgia e tem instalações dedicadas ao seguimento especializado para equinos, ovinos, caprinos e bovinos sempre que seja necessário para recuperação de atos cirúrgicos ou de doenças mais complexas.
Paralelamente, o médico veterinário defende “uma maior aposta na educação dos produtores no setor da pecuária”. É certo que nos últimos anos o cenário demográfico deste setor sofreu algumas alterações, com algum rejuvenescimento entre os profissionais do setor, “mas continuamos a ter a população da área rural muito envelhecida e pouco interessada na mudança, em perceber as medidas mais técnicas e porque são praticadas”, conta o responsável. Este é um dos grandes desafios dos veterinários de campo, no qual as associações de produtores têm uma palavra a dizer, nomeadamente dando “formação aos produtores, colocando-os como nossos parceiros, pois só assim é possível fazer da produção animal um setor mais sustentável”, refere o diretor clínico do VetAl.
São desafios de quem tem duas áreas a que dar resposta – clínica e campo – e está situado numa região que, por si só, também apresenta dificuldades inerentes ao território. Mas o caminho percorrido nestas quase duas décadas de funcionamento dá a clareza de espírito a Ricardo Romão para reconhecer “não ter a porta fechada a nada” que o futuro reserve. “Não podemos estacionar, temos de nos ir adaptando às necessidades da comunidade e queremos manter as áreas de diferenciação”, refere o médico veterinário, que continuará a apostar na política de ouvir as sugestões dos clientes e parceiros para assegurar as necessidades não atendidas.
Atendimentos unipessoais ao domicílio necessitam de regulamentação
É uma questão transversal ao litoral e ao interior do País e talvez seja mesmo o maior desafio da profissão: o recrutamento de recursos humanos. Contudo, no interior é um problema que se sente com maior profundidade. “Temos muita dificuldade no recrutamento, há 10 anos ainda havia bastante oferta de médicos veterinários nas zonas urbanas, mas nós já sentíamos essa dificuldade, que hoje persiste”, reconhece Ricardo Romão, dando voz às dificuldades da interioridade na captação de recursos para uma estrutura com a diferenciação do complexo veterinário.
À falta de atratividade do interior do País junta-se outro fator que o diretor clínico identifica com alguma preocupação. Segundo relata, a tendência crescente de profissionais que “em vez de se agregarem em equipas, tendem a dispersar-se em atendimentos unipessoais ao domicílio, muitas vezes sem estruturas de apoio, está a limitar a oferta de serviços médico-veterinários à população”. O responsável assegura que muitos desses profissionais “não referenciam [para os CAMV], mesmo não tendo meios complementares de diagnóstico mínimos” e que, apesar da aparente facilidade de acesso que um médico veterinário que vai a casa do cliente, a pulverização deste tipo de serviços domiciliários unipessoais não assegura um melhor seguimento do animal de companhia. Segundo explica, a prática unipessoal, sem integração numa equipa multidisciplinar, é uma visão ultrapassada na medicina veterinária, que tem vindo a crescer cada vez mais alicerçada na partilha de conhecimento e na discussão entre pares que só o trabalho em equipa permite.
E em última instância, reconhece o responsável, este tipo de serviços unipessoais acabam também por dificultar a contratação de profissionais para as estruturas convencionais. “Este é um problema que se vai manter e que vai ter de ser regulamentado”, acredita Ricardo Romão.
*Artigo publicado na edição 163, setembro, da revista VETERINÁRIA ATUAL.