O Banco de Sangue Animal (BSA) foi pensado e criado pelo médico veterinário Rui Ferreira. Pioneiro em Portugal e no mundo, o projeto tem vindo a crescer permitindo juntar uma vasta equipa. A internacionalização já é uma realidade, mas as novidades sucedem-se. Sempre com o propósito de melhorar a oferta e de diferenciar o serviço.
Foi em 2011 que Rui Ferreira viveu a natural coincidência de ver nascer o filho e uma ideia que viria a tornar-se no seu projeto de vida. O primeiro contacto com a realidade das necessidades de dádivas de sangue surgiu quando trabalhava no Hospital Veterinário do Porto. “Como lidava com várias situações nas urgências do hospital em que era necessário realizar transfusões de sangue, comecei a desenvolver algum interesse. Depois, começaram a pedir-me para organizar melhor o Banco de Sangue do próprio hospital.” O facto de ter desenvolvido um programa de doutoramento relacionado com este tema e, em conjunto com a Universidade do Porto, permitiu que o médico veterinário impulsionasse a ideia de criar o BSA de forma mais sólida.
E, se no começo, trabalhava sozinho em todas as fases do processo, desde as dádivas, ao processamento, ao controlo de qualidade e aos envios, rapidamente sentiu a necessidade de começar a contratar. Com sede no Porto, era preciso polarizar a atividade e ter uma médica veterinária a ajudar na cidade de Lisboa. “Foi a primeira pessoa que contratei para me auxiliar”, conta. O que se seguiu coincidiu com a evolução de um serviço pioneiro. A cada três, quatro meses, Rui Ferreira precisava de ter mais pessoas a trabalhar na equipa e, no mesmo momento, recebia contactos por parte de centros de referência no estrangeiro que demonstravam interesse no projeto, desde universidades a hospitais que valorizavam a prática das transfusões sanguíneas.
Isto acontecia porque “alguns veterinários portugueses levavam o conhecimento adquirido sobre esta realidade em Portugal para outros países onde não havia este avanço”. A participação do diretor geral do BSA em vários congressos veterinários “também deu um bom impulso”. Não se tratava apenas de disponibilizar um serviço, mas também de formar a classe para este trabalho. “A formação permitiu ensinar acerca das transfusões que iam sendo feitas, desmistificar o tema e ajudar os colegas a sentirem-se mais predispostos a utilizar estas unidades de sangue.”
A primeira delegação foi a sede do Porto, mas passado um ano, o BSA abriu um escritório em Lisboa para gestão de toda a logística. Em 2020, a pandemia não impediu a abertura de um novo laboratório na invicta que concentra as análises sanguíneas dos dadores e onde é feito o processamento. As novas instalações, além de maiores e mais bem preparadas, permitiram abrir um novo departamento do BSA e que consiste na integração de toda a componente de análises. “Estamos atualmente a funcionar com um laboratório de análises próprio dedicado às dádivas e com capacidade de dar resultados de PCR em doze horas, algo que é impensável em outros laboratórios… Talvez, em breve, possamos oferecer este serviço também”, refere o diretor geral. Ou seja, a médio prazo, vai ser possível ter a capacidade de proporcionar este serviço a outros colegas que dificilmente conseguem ter resultados noutros laboratórios em menos de 48/72 horas. “Apesar de estarmos consolidados, temos notado um aumento das transfusões que está em linha com o crescimento de todo o mercado e dinamização veterinária, inclusive acima de outras atividades económicas”, refere Rui Ferreira.
O Banco de Sangue Animal em números:
10 mil dadores ativos
4 mil unidades de sangue mensais
42 profissionais a integrar a equipa
Mais de 2200 clientes de 18 países
Quatro Bancos de Sangue Animal
2800 proprietários envolvidos
Em Portugal, a resposta não se cinge, contudo, às duas grandes cidades. “Vemos isto como um espírito de missão porque sempre tivemos como objetivo ter unidades de sangue disponíveis em todo o território nacional facilitando a acessibilidade de clínicas e de hospitais veterinários”, explica o diretor geral. Assim, o BSA tem unidades de sangue armazenadas de forma mais descentralizada para que seja mais fácil o acesso sempre que um animal precise de uma transfusão.” O BSA atua em parceria com vários hospitais como se estes fossem “fiéis depositários de unidades de sangue até que as mesmas sejam utilizadas, o que leva a uma colaboração muito estreita”.
Rui Ferreira não tem qualquer dúvida sobre o pioneirismo do nosso País nesta área e também na sensibilização para a redução de riscos e a promoção da segurança deste procedimento. “Se utilizamos componentes de qualidade e se conseguimos reduzir a hipótese de complicações e de reações transfusionais com testes de compatibilidade sanguínea, os colegas vão ponderar fazer uma próxima transfusão de uma forma mais rápida, aumentando os consumos”, defende.
A internacionalização como uma inevitabilidade
Em comparação com outros países, alguns hospitais de referência não têm a formação adequada e o acesso tão facilitado a estas unidades. “Desenvolvemos um trabalho muito regular e próximo de colegas no terreno, permitindo colocar o nosso País numa posição de destaque a nível mundial, não só no trabalho como banco de sangue, mas também no uso que se faz destes componentes na prática clínica.” Há cerca de seis anos, o BSA chegou a Espanha e abriu uma delegação em Barcelona. “Notámos uma recetividade e um crescimento em linha com o que tínhamos experienciado em Portugal. Mas também foi preciso apostar na informação e na desmistificação deste procedimento”, refere o diretor geral. Atualmente, o BSA está “muito consolidado neste país com uma rede que funciona muito bem com mais de 50 centros colaboradores, também nas Canárias e nas Baleares”.
À data de fecho desta edição, estava a arrancar o projeto BSA-Benelux em conjunto com a Universidade de Liège, na Bélgica. “Este novo banco de sangue funcionará para pedidos na Bélgica, Luxemburgo e Holanda.” As dádivas são realizadas lá, mas a parte laboratorial e a do respetivo processamento acontecem no laboratório principal, no Porto, que conta com uma “equipa muito experiente e um investimento avultado em equipamentos”.
Paralelamente, o BSA está também a desenvolver a sua atividade no Reino Unido com dádivas e um departamento de distribuição neste país. “O processo de licenciamento local foi muito exigente, seguindo requisitos de Boas Práticas de Fabrico da indústria farmacêutica, o que nos obrigou a crescer e a melhorar.”
“Estamos atualmente a funcionar com um laboratório de análises próprio dedicado às dádivas e com capacidade de dar resultados de PCR em doze horas, algo que é impensável em outros laboratórios… Talvez, em breve, possamos oferecer este serviço também”, explica Rui Ferreira
A equipa atual é composta por mais de 40 pessoas divididas entre Portugal, Espanha, Bélgica e Reino Unido. E, mesmo durante a pandemia, foi possível manter a resposta aos pedidos que surgiam devido à “grande mobilização de todos os colaboradores, o que permitiu continuar a ir buscar animais a casa, levá-los a realizar a dádiva e a devolvê-los no regresso”. Além de a equipa ter de estar ainda mais condicionada com medidas de proteção individual, nas fases de confinamento, foi preciso aumentar a logística e contar com a dedicação de todos para que o volume de trabalho não diminuísse.
Fidelizar dadores e aumentar as dádivas
Todos os dadores são voluntários mediante a inscrição por parte dos tutores. O BSA depende sempre “da boa vontade dos proprietários” daí que a aposta no bem-estar animal seja uma das missões do projeto. A sensibilização é ponto assente. “Estamos em todas as frentes”, explica Rui Ferreira. Uma boa experiência pode ser o sinónimo de trazer novos dadores e tutores e, também neste caso, o “passa a palavra” é o melhor cartão de visita. “Estas pessoas, por si só, se aderem à iniciativa é porque estão motivadas e facilmente nos ajudam a trazer outros dadores.”
Esta possibilidade de doação em medicina veterinária é mais conhecida por parte de pessoas que tenham animais que eventualmente já tenham precisado de uma transfusão de sangue e que automaticamente ficam sensibilizadas para a causa. O objetivo passa por fidelizar os dadores e os animais são chamados para uma nova dádiva de três em três meses.
O BSA tem ainda a colaboração de associações de animais e participa em feiras ou em exposições em centros comerciais, num esforço contínuo de dar a conhecer esta realidade. Existem datas em que as dádivas são programadas, totalizando 20 a 25 ao longo de todo o dia, mas também pode acontecer que a equipa se desloque a clínicas, hospitais veterinários, criadores ou proprietários com vários animais, havendo a preocupação constante de garantir que a doação é realizada em locais seguros e limpos, com condições a nível de bem-estar que permitam que os animais estejam calmos e protegidos. “Levamos todo o equipamento de colheita, incluindo o de suporte básico de vida, e temos o nosso hospital de campanha atrás de nós, tal como acontece em medicina humana”, explica o diretor geral.
Cada doação demora 20 a 25 minutos em gatos e 15 a 20 minutos em cães. Na prática, as dádivas de sangue realizadas em determinado dia são processadas na manhã seguinte no novo laboratório do Porto juntamente com as análises sanguíneas realizadas em todas as unidades. “Só podemos libertar as unidades processadas – separar o sangue em plaquetas, plasma e concentrado de eritrócitos – depois de termos os resultados das serologias e PCR, e de fazermos o devido controlo de qualidade, o que nos confere um grau máximo de segurança.” É também por este motivo que não existe um regime de porta aberta para as dádivas porque a organização é a chave do sucesso.
Depois de todas as unidades serem processadas com os requisitos já referidos são devidamente encaminhadas para o Centro de Logística principal e, de lá, para os vários centros colaboradores.
Em todo este processo, um dos maiores desafios passa por ter as unidades nos locais onde são precisas. “Há que gerir um bom diálogo e uma boa coordenação entre as várias equipas de logística, de processamento e de dádivas.” A organização das dádivas tem de ir ao encontro das necessidades quase em tempo real.
É muito raro existir uma rutura de stock, garante Rui Ferreira. “Já passámos por momentos críticos em que não tínhamos determinada unidade de sangue, mas isso só acontece em grupos de sangue muito raros e específicos.” No entanto, como toda a equipa trabalha com o intuito de antecipar as situações, a experiência vai permitindo responder a todas as solicitações e evitar a falta de resposta. As dádivas de sangue realizadas em todo o País vêm sempre para o Porto para serem processadas.
“Não se trata apenas de um pedido que surge no computador. Por detrás de uma solicitação, há um animal crítico que está à espera” – Rui Ferreira, diretor geral do BSA
Novas apostas
O diretor geral partilha com a VETERINÁRIA ATUAL algumas novidades que podem interessar aos colegas. “Estamos a apostar na formação de veterinários para realizar dádivas de sangue como equipa externa ao Banco de Sangue Animal.” Dentro de um dos focos dos últimos anos e que consiste em aprofundar cada vez mais a questão do bem-estar animal, o BSA participa num programa de formação avançado de equipas junto da Sociedade Internacional de Medicina Felina (ISFM) e integra dois veterinários certificados com o programa FEAR-FREE.
“Estamos a preparar também um programa gratuito de formação contínua dos proprietários de animais através de cursos online ou presenciais. Contamos tê-lo pronto entre dois e três meses, não só para proprietários individuais, como para associações e criadores.” Com o intuito de ser um player ativo nesta área, o BSA vai continuar a atuar para defender e promover o bem-estar animal.
Rui Ferreira partilha a mais recente aventura em que a equipa se envolveu. “Estamos a licenciar estes componentes de sangue como medicamentos veterinários, o que implica o cumprimento de toda uma exigência de qualidade da indústria farmacêutica.” O laboratório do Porto já se encontra licenciado “como fábrica de medicamentos”, o que confere uma maior credibilidade. “Este avanço vai permitir universalizar o enquadramento legal destes componentes noutros países. Foi mais um desafio que nos surgiu e que nos tem levado a atuar de forma mais integrada, completa e exigente. A ideia passa por ir colocando a fasquia cada vez mais alta e o facto de sermos altamente escrutinados ajuda-nos a crescer e a melhorar.”
O papel do BSA em salvar vidas é crucial. “Não se trata apenas de um pedido que surge no computador. Por detrás de uma solicitação há um animal crítico que está à espera.” Atrás de um e-mail, há uma vida para segurar. “Somos sempre um complemento do trabalho de clínicas e hospitais e, em nenhum momento, nos sobrepomos aos mesmos”, remata o diretor geral.
*Artigo publicado na edição 164, outubro, da revista VETERINÁRIA ATUAL.