A VETERINÁRIA ATUAL falou com dois médicos veterinários especializados em comportamento animal, Mónica Roriz e Gonçalo da Graça Pereira, para saber como minimizar os impactos da ansiedade de separação nos nossos animais no período pós-confinamento e como os prevenir para aqueles que ainda se encontram em casa.
Uma bomba em contagem decrescente. Foi assim que a associação de proteção animal britânica Dogs Trust, pela voz da sua diretora de investigação e de comportamento canino, Rachel Casey, caracterizou a ansiedade de separação dos cães perante o regresso dos tutores de animais à sua vida normal pós-confinamento. Mas, segundo especialistas em comportamento animal, as alterações nos animais de companhia começaram a fazer-se notar ainda durante o período de isolamento social, durante o qual foi pedido às pessoas que ficassem em casa e evitassem o contacto com os outros para evitar a propagação da pandemia.
“Estamos forçosamente a mudar as rotinas, os horários, as interações com eles e, se os tutores não mantiverem regras, se não apostarem no enriquecimento ambiental, se não criarem zonas e tempo para que os seus animais possam ter momentos de qualidade a sós, se não respeitarem os contactos/interações desejados pelos animais, entre outras coisas, receio que teremos muitos pedidos de ajuda de consultas de medicina de comportamento, porque teremos muitos animais a descompensar”, diz Mónica Roriz, médica veterinária diplomada em medicina do comportamento.
Segundo a especialista, muitos dos seus colegas de clínica geral estão já a referir um “aparente aumento de animais que apresentam lambeduras excessivas, cistites… que poderão já estar relacionadas a um aumento de ansiedade”. Destacam-se ainda “alguns estudos internacionais que estão a decorrer nesse sentido” para perceber melhor “o impacto do confinamento nos animais e na sua relação com os seus tutores”.
Um dos investigadores já envolvido nestes estudos é Gonçalo da Graça Pereira, médico veterinário especialista europeu em medicina do comportamento e fundador do Centro para o Conhecimento Animal (CPCA). Segundo o veterinário, o estudo internacional do qual faz parte assenta num “questionário vasto dirigido a tutores” e vai ter “uma amostra robusta” com participantes de Portugal mas também dos Estados Unidos da América, Turquia, Espanha, Itália, entre outros países, com o objetivo de “fazer a recolha da avaliação comportamental [dos animais] antes e depois da quarentena”.
Gonçalo da Graça Pereira menciona ainda outra pesquisa que está a ser realizada exatamente pela responsável da Dogs Trust, Rachel Casey, sua colega no European College of Animal Welfare and Behavioural Medicine, ao qual o especialista português preside.
Em cães que já tinham gente em casa também pode ocorrer [ansiedade de separação]”, admite Gonçalo da Graça Pereira, “porque podem estabilizar um vínculo diferente com mais de uma pessoa do lar”
“Ela está a investigar o impacto nos cachorros, porque este é o período em que os devemos socializar e, com o isolamento, ficam mais fechados e são menos estimulados”, explica, acrescentando que os cães jovens devem continuar a ser levados à rua, ao colo, com devido estímulo positivo sempre que passam por joggers (pessoas a correr), skates ou bicicletas, e que devem ser na mesma apresentados a outros cachorros. “Senão vamos ter problemas no futuro”, avisa.
Durante o estado de emergência, com as clínicas veterinárias em funcionamento, mas o País a ‘meio gás’, o especialista continuou a prestar assistência a animais com fortes distúrbios de ansiedade e fobia generalizada, bem como a cães que mordem e que são, como frisa, “uma questão de saúde pública”.
Embora na sua área seja mais fácil cumprir as medidas de distanciamento físico, até porque as consultas são sempre marcadas, Gonçalo da Graça Pereira menciona que a Ordem dos Médicos Veterinários autorizou temporariamente os profissionais a usarem a telemedicina, mas assinala ainda que a medicina do comportamento poderia ser uma exceção no pós-confinamento. “Nos gatos, por exemplo, uma consulta via Skype facilita muito a vida, porque podemos ver o seu ambiente sem o invadir”, argumenta. “Seria vantajoso no futuro podermos manter esta utilização.”
Evitar os “excessos de contacto”
Além dos relatos dos seus colegas generalistas, Mónica Roriz afirma que também as escolas e ATL caninos reportam mudanças de comportamento em animais que conhecem bem. “Nas poucas saídas que faço, vejo nitidamente cães mais reativos a passearem. E é expectável que assim o seja, porque não lhes é permitido aproximarem-se dos outros. Os tutores, cumprindo as regras sanitárias (e bem) desviam-se sistematicamente das pessoas e dos outros animais, podendo aumentar a frustração dos cães que não conseguem comunicar convenientemente. Já para não falar que as próprias pessoas passeiam de máscara, o que pode inclusivamente provocar um estado emocional de medo em alguns animais”, salienta.
A PsiAnimal — Associação Portuguesa de Terapia do Comportamento e Bem-Estar Animal, da qual a médica veterinária faz parte, emitiu algumas recomendações para o bem-estar durante o confinamento, mas a especialista em comportamento deixa algumas observações: “O facto de termos de ficar 24 horas em casa pode fazer a felicidade de muitos animais, mas temos sempre de respeitar o espaço deles e ter cuidado com os excessos de contacto da nossa parte. Alguns podem, tal como os humanos, não gostar de ser constantemente ‘incomodados’. Eles precisam, mesmo os mais carentes, de ter rotinas e de momentos de alguma ‘independência’ para prevenir problemas futuros quando ficarmos todos bem. Este caso será talvez mais notório para os gatos, mas alguns cães apresentam os mesmos sinais”, diz.
A forma como se promove esta independência, porém, deve ser cuidadosa, aconselha Gonçalo da Graça Pereira: “Não há nada mais stressante para um cão do que ter pessoas em casa e ficar fechado numa divisão à parte”, garante.
Uma boa forma, explica, é usar brinquedos de estimulação cognitiva e outras brincadeiras que estimulem o olfato e o paladar, sempre com recurso a reforço positivo. O tutor pode primeiro observar como o animal interage com o brinquedo e, caso seja seguro, ausentar-se, para promover a tal independência.
No pós-confinamento, a “bomba em contagem decrescente” da ansiedade de separação pode ser mais explosiva, explica, em cães já diagnosticados com este distúrbio ou que tenham mais inseguranças. O confinamento pode promover, aliás, vínculos alterados que podem ser a origem de problemas relacionados com a separação. “Em cães que já tinham gente em casa também pode ocorrer”, admite Gonçalo da Graça Pereira, “porque podem estabilizar um vínculo diferente com mais de uma pessoa do lar”.
A médica veterinária diz que os cachorros são particularmente suscetíveis porque “não estão a ser socializados adequadamente”
O médico veterinário chama ainda a atenção para a forma como o “stresse pós-confinamento” pode ser expresso distintamente por cães e gatos. “O cão é um animal que vai expressar de forma muito mais aberta, porque depende do seu grupo social. O gato é um animal social, mas com uma sociabilidade diferente da canina. Depende de si mesmo para sobreviver.”
Afirmando que odeia a palavra “independentes” para caracterizar os gatos, o especialista diz que estes são, sim, “muito mais subtis”. Os sinais de stresse podem, assim, passar por urinar fora da caixa de areia, lamberem-se mais e, em alguns casos de problemas relacionados com a separação, até a anorexia, ou sejam, o animal não come com o dono ausente.
“O cão pode urinar e defecar fora do sítio devido, dá-nos sinais mais claros, embora alguns cães sejam mais discretos. Por exemplo, o tutor deve estar atento a sinais como maior salivação quando chega a casa.”
Ressalvando a extrema importância de fazer um diagnóstico diferencial antes de partir para uma consulta de comportamento animal para despistar algum problema físico — Gonçalo da Graça Pereira recomenda mesmo um check-up analítico anterior —, o veterinário diz que os tutores se devem preparar para o período pós-confinamento, especialmente se o seu animal já apresentava problemas anteriores de ansiedade de separação, e agir brevemente em caso de dificuldade.
“Quanto mais cedo recorrerem a uma consulta, melhor. Muito raramente a tendência é melhorar e quanto mais rápida for a intervenção, melhor será a recuperação”, garante, opinião esta partilhada pela sua colega de profissão (ver caixa).
Já Mónica Roriz distingue “três grupos distintos de risco”: todos os animais com quem os tutores “não mantiveram algumas regras importantes preventivas” e que ficarão repentinamente privados da companhia dos seus detentores, o que só piora em animais que “já manifestavam ansiedade na ausência dos tutores”; animais que estão a acumular stresse e ansiedade neste período por sentirem os seus hábitos alterados e que, segundo a especialista, “possivelmente vão descompensar após”, podendo necessitar de intervenção especializada; e, finalmente, todos os cachorros adotados durante o confinamento.
Referindo-se a este último grupo, a médica veterinária diz que os cachorros são particularmente suscetíveis porque “não estão a ser socializados adequadamente” num período crítico de formação do animal, que “acaba” por volta das 12 semanas de idade. “Estas falhas podem vir a provocar medos e/ou reações inadequadas num futuro próximo face aquilo ou a quem não foram apresentados. Quando voltarmos à normalidade recomendo, para quem puder, ATL, escolas de cachorro, educadores caninos, de confiança e que só usem reforço positivo, para ajudar a compensar isto tudo.”
Além disso, acrescenta, estes animais sofrerão mais facilmente de falhas na sua aprendizagem quanto ao ficarem sós. “E com estes dois cenários temos os ingredientes ideais para termos cães adultos com ansiedade de separação.”
Como podemos então prevenir estes problemas?
Mónica Roriz deixa os seguintes conselhos:
- “Além de tudo o que já foi dito no âmbito da prevenção aqui e noutros artigos, sugiro o uso de feromonas sintéticas para os cães e para os gatos. Neste momento em que as rotinas foram totalmente alteradas, o uso destas pode ajudá-los a controlar melhor a ansiedade.
- Não deixarem os brinquedos todos à disposição. Promoverem a rotatividade destes para manter o interesse dos seus animais. Apostarem nos brinquedos interativos com comida e estimulá-los a usá-los e apreciá-los. Não precisamos para isso de gastar fortunas, existem muitas ideias fantásticas na Internet.
- Dar espaço aos animais. E aqui, não nos podemos esquecer também de educar as crianças para que isso aconteça. Eles não são brinquedos nem peluches! As crianças devem ser ensinadas nesse sentido e cabe aos pais terem essa função.
- Se o animal apresentar já comportamentos inadequados, pedir ajuda a um veterinário da área da medicina do comportamento. A rapidez da intervenção de um especialista será determinante para encontrar uma solução mais adequada.
- Para concluir, em consulta costumo salientar a importância do enriquecimento ambiental, e quando falo disso faço sempre a analogia connosco (e isso era antes da pandemia): ‘E se tivéssemos de ficar em casa sem nada para fazer? E se não tivéssemos acesso a livros, televisão, Internet, telefone…como é que ficaríamos?’ Apesar de termos isso tudo disponível, estamos mesmo assim com muita dificuldade em gerir o nosso período de ‘isolamento’. Muitos animais vivem nessa situação dias a fio, uma vida inteira. Quando isto tudo acabar e pudermos voltar às nossas vidas, espero que os tutores não se esqueçam do que sentiram agora e que sejam mais indulgentes, mas também mais criativos para proporcionar melhores condições aos seus animais de estimação.”
Veja ainda abaixo o vídeo com os conselhos de enriquecimento ambiental de Gonçalo da Graça Pereira.
https://www.facebook.com/613507999130298/videos/521355292153305/