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Medicina física e de reabilitação em animais de companhia: O limbo entre a evidência científica e a evidência do dia-a-dia

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Que evidência científica suporta as técnicas e os tratamentos realizados na medicina física e de reabilitação veterinária?

Esta foi uma das perguntas em destaque no debate que juntou médicos veterinários que se dedicam a esta área e encerrou os trabalhos do II Simpósio Nacional de Medicina Veterinária Baseada na Evidência. Todos reconheceram as carências sentidas na prática clínica ao nível da falta de evidência científica e de protocolos clínicos que guiem os passos médicos no acompanhamento do animal, mas realçaram que essas lacunas não são exclusivas desta disciplina veterinária.

A Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa recebeu o II Simpósio Nacional de Medicina Veterinária Baseada na Evidência no passado dia 17 de maio. O encontro, promovido pelo projeto EVIEDVET, encerrou os trabalhos com uma mesa-redonda dedicada ao tema “Terapias complementares no tratamento da osteoartrite em medicina veterinária – O que funciona e como saber?”.

O momento, moderado pelo Manuel Sant’Ana, investigador do EVIEDVET e médico veterinário especialista europeu em Ciência, Ética e Direito do Bem-Estar Animal, foi muito além da abordagem a esta patologia em particular e acabou por ter como ponto-chave da discussão as palavras que Brennen McKenzie escreveu no livro Placebos for Pets?: The Truth About Alternative Medicine in Animals, citadas pelo moderador para questionar os intervenientes. “No geral, a fisioterapia veterinária é uma disciplina que mistura livremente tratamentos científicos e medicinas alternativas de uma maneira que é potencialmente enganadora para os donos dos animais de estimação”, citou, acrescentando: “O uso de tratamentos científicos estabelecidos em conjunto com métodos não testados, implausíveis e até mesmo refutados, criam uma ideia enganadora de legitimidade científica para todas as modalidades fisioterápicas, incluindo para aquelas que não o merecem”.

Uma espécie de provocação pelas ideias veiculadas no livro da autoria do anterior presidente da Evidence-Based Veterinary Medicine Association, mas que tanto João Alves, major médico veterinário da Clínica Veterinária de Cães da Guarda Nacional Republicana, como Ana Ribeiro, diretora clínica do Centro de Reabilitação Anicura Restelo e Ângela Martins, diretora clínica do Centro de Reabilitação Animal da Arrábida, acabaram por acolher, realçando, porém, que a falta de evidência não é totalmente sinónimo de falta de eficácia.

“Nós somos fisiatras, não somos fisioterapeutas” – Ângela Martins, diretora clínica do Centro de Reabilitação Animal da Arrábida

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“Concordo a 100%”, começou por reconhecer Ângela Martins. As palavras da especialista graduada pelo Colégio Europeu de Medicina Veterinária Desportiva e Reabilitação foram um ponto de partida para a conversa na qual se tentou clarificar algumas ideias, conceitos e preconceitos com que os profissionais se deparam no dia-a-dia.

A especialista europeia lembrou, por exemplo, que, quando começou na área da fisioterapia, o trabalho passava muito por tratar o sinal clínico e não pela procura da causa desse sinal clínico e esse foi um “grande erro” que levou a que o trabalho do médico veterinário fosse confundido com outras funções. “Nós somos fisiatras, não somos fisioterapeutas”, esclareceu Ângela Martins, frisando que é ao médico veterinário que cabe fazer a anamnese, o diagnóstico diferencial e encontrar a explicação fisiológica para o caso clínico que tem em mãos e é só a ele que cabe “única e exclusivamente” estabelecer o protocolo terapêutico mais indicado para aquele animal de companhia. Os fisioterapeutas terão em mãos a concretização desse plano terapêutico, realizando as técnicas selecionadas pelo médico veterinário, num trabalho integrado e realizado por uma equipa multidisciplinar que assegura o melhor acompanhamento a cada caso.

Sobre a pertinência desta área terapêutica, as dúvidas relativamente à eficácia destas técnicas e os preconceitos que ainda as rodeiam, Ângela Martins questionou: “Para um cão que está coxo, não vale a pena fazer nada, mas para um gato [com doença] renal, já caquético, vale a pena andar a fazer soro subcutâneo?”

Essa perspetiva acabou por ser acolhida por Ana Ribeiro ao lembrar que “há técnicas para as quais não há evidência [científica disponível], mas vemos evidência no dia-a-dia” na recuperação da funcionalidade dos animais de companhia depois de passarem por programas de recuperação. Além disso, acrescentou, “também no caso da cirurgia [ortopédica] a evidência [científica disponível] não é a melhor. Isto é, a falta de evidência científica não é um problema só desta área [na medicina veterinária] é de todas”.

Para a diretora clínica do Centro de Reabilitação Anicura Restelo o que é fundamental é regulamentar e proteger a medicina física e de reabilitação animal, assim como os profissionais que a executam, uma vez que existem relatos de enfermeiros veterinários, auxiliares veterinários, “pessoas sem formação absolutamente nenhuma a fazer coisas inacreditáveis e enquanto comunidade precisamos de nos defender”. E frisou ser sensato “não pôr tudo no mesmo saco” em termos de técnicas e terapêuticas usadas na reabilitação de animais de companhia, sob pena de se perder credibilidade junto dos tutores que procuram respostas clínicas para os problemas de saúde do animal de companhia.

João Alves também reconheceu as lacunas com que a área da medicina física e de reabilitação se depara no campo da evidência sobre os resultados obtidos pelas diversas técnicas e tratamentos. A começar pelo facto “de o nosso Colégio [de Medicina Veterinária Desportiva e Reabilitação] ser relativamente jovem, tem menos de 10 anos, e esta é, efetivamente, uma área muito recente em que as coisas estão a percorrer um caminho e a desenvolverem-se bem”, mas ainda têm de ganhar mais consistência através da realização de estudos e da publicação de dados.

E em virtude da carência de dados científicos nesta área de atuação, o médico veterinário que também é graduado pelo Colégio Europeu de Medicina Veterinária Desportiva e Reabilitação considera que “é necessário ter algum cuidado na discussão destes temas”. Em primeiro lugar porque os protocolos criados pelos profissionais “são complexos”, numa parte significativa de casos implicam a utilização de várias técnicas e tratamentos em simultâneo o que dificulta a tarefa de perceber “o que é que está a fazer o quê, mas isso não significa que não resulte”. “Há um trabalho que é preciso fazer para conseguir distinguir, ou não, o contributo de cada uma das modalidades. Da mesma forma que não posso dizer taxativamente que as modalidades funcionam todas, também não posso dizer perentoriamente que não funcionam. E o facto de eu não conseguir provar não quer dizer que não funciona”, argumentou João Alves.

A osteoartrite é uma fatalidade?

A sessão debateu a medicina veterinária baseada na evidência muito para além da patologia que estava pensada abordar, a osteoartrite. Manuel Sant’Ana considera que todos os cães e todos os gatos acabarão por desenvolver problemas osteoarticulares, “é só uma questão de viverem tempo suficiente para lá chegar”. Os médicos veterinários têm é de conseguir equilibrar os pratos da balança entre sobre-diagnosticar e sobre-medicar animais que não precisam e prestar um melhor serviço aos animais que têm maiores probabilidades de desenvolver a doença.

Neste ponto, o moderador alertou para situações em que os médicos veterinários começam a usar “profilaticamente os nutracêuticos em certas raças puras logo em cachorros e nunca mais param”, ou fazem uso de outro tipo de medicações de forma preventiva “já a achar que o animal se vai ressentir ou mais tarde vai começar com sintomas”.

Ana Ribeiro mostrou-se otimista quanto à melhoria da abordagem médico-veterinária a esta condição com a publicação há poucos meses do documento “Canine OsteoArthritis Staging Tool excluding radiography” (COASTeR), em que participou o médico veterinário Pedro Sousa, pelo COAST Development Group. Nestas linhas de orientação para o tratamento da osteoartrite, só aplicadas a cães, “está tudo muito bem esquematizado”, como é feito o diagnóstico, o que é recomendado em termos de tratamento em cada fase “tendo em conta o grau de evidência, desde o que tem um grau elevado ao que tem o consenso mínimo”. “Vai ser uma grande ajuda”, acredita a médica veterinária, para quem, não se tratando de um documento com uma receita final, é um guia que pode ser adaptado às necessidades do animal de companhia e às oportunidades económicas dos tutores.

Sobre a osteoartrite, João Alves realçou ainda a “mudança de paradigma” na forma como ela é olhada hoje pela medicina veterinária. “Hoje, a osteoartrite é encarada como a falência de um órgão e estas recomendações vêm nesse sentido, isto é, temos de encarar esta doença como uma insuficiência renal ou uma insuficiência cardíaca. Não devemos deixar que o órgão fique praticamente destruído para começar a fazer alguma coisa. Temos uma série de modalidades preventivas ao dispor”, afirmou.

Detetar os casos numa fase precoce e monitorizar de forma mais apertada as raças predispostas ao desenvolvimento de problemas osteoarticulares são ações consensualmente aconselhadas pelos intervenientes na mesa-redonda no acompanhamento dos cães. No caso dos gatos, o major veterinário já aconselhou uma vigilância mais apertada nas mudanças de comportamento que possam ser notadas pelos tutores.

Ângela Martins não deixou de lembrar que as situações de displasia da anca ou do cotovelo se “detetadas no momento certo têm indicação cirúrgica”. “Compete-nos a nós não fazer protocolos de maneio da dor ou de regeneração nesta fase, mas diagnosticar e referenciar se tiver critérios cirúrgicos”, explicou, voltando a focar a importância do trabalho multidisciplinar na medicina veterinária e defendendo a importância da boa comunicação entre os integrantes do triângulo de cuidados ao animal de companhia afetado por doenças osteoarticulares: o médico veterinário ortopedista, o médico veterinário fisiatra e o tutor.

Protocolos clínicos: uma necessidade difícil de concretizar

Comprovar, de forma clara, que determinada técnica ou tratamento utilizado na medicina física e de reabilitação têm resultados efetivos na melhoria da condição do animal de companhia não é fácil. E esse é o motivo por que, quando procuram a evidência publicada, os clínicos se debatem com a falta de qualidade da informação reportada pelos investigadores ou, pelo menos, com a dificuldade de homogeneização dos dados publicados.

O laser é um exemplo paradigmático das dificuldades sentidas pelos médicos veterinários na prática clínica. Como explicou João Alves, a dificuldade começa na pesquisa: são vários os termos usados para classificar a técnica de laser, os aparelhos são diferentes entre si, as frequências emitidas também, assim como o tempo em que se realizam as sessões, além de que as abordagens às técnicas são diferentes de país para país. Isto é, a padronização de procedimentos, fundamental para chegar a conclusões científicas, é difícil de alcançar, e nessa medida, o médico veterinário reconhece que não pode dizer que o laser funciona e é eficaz para tratar determinada condição, mas também não pode defender o contrário.

Outra técnica que gerou debate foi a eletroacupuntura: será a aplicação da técnica oriental acupuntura com elétrodos ou eletroestimulação? São usados os pontos meridianos orientais ou as terminações nervosas afetadas pela condição de que o animal padece?

Independentemente das divergências de opiniões, Ana Ribeiro reconheceu que “vê muitas melhorias com a acupuntura e com a eletroacupuntura” nos casos de maneio da dor por exemplo. Uma posição partilhada com Ângela Martins, particularmente na utilização em casos de dor ou de contraturas, nos quais “o animal consegue recuperar mais rapidamente e consigo retirar os fármacos” de forma mais célere com estas técnicas.

A especialista europeia fez questão de sublinhar é que faz sempre aquilo que “medicamente acho mais coerente e tem mais bases clínicas” e considera que há “coisas muito mais graves que se andam a fazer sem base [clínica ou científica], como a terapia das cores”.

A questão da padronização de cuidados, sendo relevante para a produção de ciência, não é unicamente uma carência específica da medicina física e de reabilitação. João Alves reconheceu que “não existe um protocolo estandardizado para a mesma condição e para todos os pacientes”, tal como admitiu Ana Ribeiro. “Sempre que o animal chega é avaliado a cada sessão e não há um protocolo rígido”, sublinhou a médica veterinária que, todavia, admitiu que o mesmo se passa na medicina interna e na oncologia. “Antes de realizar a sessão de quimioterapia, o animal faz análises para ver se está tudo bem e é avaliado [antes de se decidir o que fazer na sessão], porque é que nesta área havia de ser diferente”, questionou.

Porta aberta à produção científica?

Quando existe a carência de alguma coisa, há sempre espaço para que algo se desenvolva no sentido de suprir essa falta e esse princípio pode ser aplicado na evidência científica na medicina veterinária

Manuel Santa’Ana deixou desafios aos participantes na mesa-redonda. Uma vez que possuem “um manancial de casos clínicos”, que embora não sejam controlados, podem ser utilizados para produzir evidência científica sobre a eficácia das práticas clínicas. E questionou o que poderia ser feito para reduzir as variáveis que poderiam criar enviesamentos nas conclusões.

“Há técnicas para as quais não há evidência [científica disponível], mas vemos evidência no dia-a-dia”- Ana Ribeiro, diretora clínica do Centro de Reabilitação Anicura Restelo

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Os três médicos veterinários defenderam os registos clínicos como forma de diminuir esse enviesamento. Ângela Martins e Ana Ribeiro gravam as consultas em vídeo, como o animal chega no início do tratamento, como vai evoluindo ao longo das sessões e como se encontra no fim do protocolo desenhado.

Informações que são uma verdadeira “mina de ouro para as tecnologias de inteligência artificial”, considerou o moderador. E explicou porquê: se essas filmagens forem realizadas “de forma mais ou menos homogénea não é difícil imaginar um algoritmo” que no futuro possa predizer o resultado de determinada terapia numa determinada condição de saúde animal.

João Alves reconheceu que as informações e os registos que recolhem na prática clínica quando acompanham os vários casos que lhes chegam podem ser utilizados para produzir ciência. E embora os estudos prospetivos tenham melhor reputação entre a comunidade científica isso “não quer dizer que um estudo retrospetivo seja mau. Pode ser uma informação cientificamente menos perfeita, mas pode dar-nos alguma informação sobre para onde devemos seguir”, reconheceu o major médico veterinário.

“Há um trabalho que é preciso fazer para conseguir distinguir, ou não, o contributo de cada uma das modalidades. Da mesma forma que não posso dizer taxativamente que as modalidades funcionam todas, também não posso dizer perentoriamente que não funcionam. E o facto de eu não conseguir provar não quer dizer que não funciona”- João Alves, major médico veterinário da Clínica Veterinária de Cães da Guarda Nacional Republicana

Manuel Sant’Ana, Ângela Martins, João Alves e Ana Ribeiro | Direitos reservados

 

*Artigo publicado na edição 183, de junho, da VETERINÁRIA ATUAL.

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