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Médicos Veterinários

Estamos a cobrir toda a abrangência da saúde mental em medicina veterinária?

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Falar-se mais de saúde mental não significa necessariamente que estão a ser postas em prática estratégias orientadas a resultados concretos e sustentados no tempo.

Quando o tema é saúde mental, existem geralmente duas abordagens comuns e que podem dividir, de certa forma, a comunidade veterinária em dois setores aparentemente opostos. Por um lado, existe quem adote imediatamente uma posição de reconhecimento da importância do tema e de empatia com o sofrimento de tantos colegas. Por outro, há também quem pense que todas estas questões se devem ao aumento percentual de profissionais mais jovens, com uma menor capacidade de resiliência, e que existe uma cultura de vitimização que nada acrescenta ao setor.

 

Este artigo não pretende dar razão a nenhuma das duas posições, mas sim deixar um convite de reflexão para que se observem os factos e se definam estratégias para aumentar o grau de satisfação e bem-estar na profissão. Sobretudo porque a resiliência do setor depende totalmente da capacidade dos seus profissionais, e essa capacidade é indissociável do grau de satisfação e bem-estar. Independentemente de quais as causas, de qual a real origem do problema ou de qual a nossa visão particular sobre este tema, é importante conhecer a realidade e traçar o caminho com base em dados objetivos.

Temos hoje diversos estudos sobre saúde mental e bem-estar na veterinária. Um dos estudos de mais larga escala é o Merck Animal Health Veterinary Wellbeing Study, que tem feito uma avaliação do setor (no contexto americano) desde 2017, e que recentemente publicou os resultados preliminares da quarta avaliação. Este estudo, que identificou os principais desafios do setor e tem vindo a apontar algumas estratégias relevantes que deveriam ser adotadas pelas organizações, traz agora dados interessantes sobre a evolução destes temas no universo veterinário. Os dados preliminares apontam para um aumento no número de CAMVs e profissionais que abordam temas como cultura organizacional, bem-estar e saúde mental, um aumento na quantidade de ferramentas e materiais de apoio disponíveis para os profissionais, e um aumento nos níveis de satisfação geral e orgulho na profissão.

 

Aparentemente, debruçarmo-nos sobre estas questões cria inevitavelmente uma maior consciência sobre o tema e sobre as necessidades dos indivíduos, e promove o aparecimento de plataformas para lhes dar resposta. No contexto nacional, a divulgação dos resultados preliminares do estudo da Psicóloga Manuela Peixoto (Mental Health in Veterinary Professionals in Portugal) na primeira edição do Vet Mental Summit, em que reporta que 29 dos 833 inquiridos tentaram, pelo menos uma vez na vida, suicidar-se, juntamente com as infelizes notícias que vamos recebendo periodicamente, impulsionaram também o setor português a olhar seriamente para esta questão. Felizmente, temos hoje no nosso País diversas organizações que disponibilizam ferramentas e apoio aos profissionais, CAMVs que organizam formações das equipas, empresas farmacêuticas que incorporam temas como a comunicação e a gestão emocional nas ofertas formativas para os seus clientes e universidades que integram estas temáticas nos currículos.

Recentemente, também a WSAVA publicou as diretrizes de bem-estar profissional, um documento extenso, cheio de informação científica relevante sobre aspetos pessoais e organizacionais, sobre as principais dificuldades dos profissionais e sobre as várias estratégias e ferramentas disponíveis. Mais, existem hoje em alguns países as figuras de assistentes sociais de veterinária, profissionais que, à semelhança do que acontece em medicina humana, lidam com todas as questões de caráter humano e emocional do entorno clínico. Ou seja, aparentemente o setor identificou um problema e está em processo de encontrar as soluções. Não é, ao dia de hoje, possível dizer que há ausência de apoio, de ferramentas ou de informação sobre a saúde mental na medicina veterinária.

 

Parece-me, no entanto, que existe um elemento que talvez esteja ainda pouco explorado no contexto português e que exige uma mudança de perspetiva individual e organizacional sobre o que significa realmente a resiliência.

Daniel Goleman define os 5 pilares da Inteligência Emocional como sendo a Autoconsciência, Autorregulação, Motivação, Empatia e Competências Sociais. Este modelo realça não só a ligação que existe entre a gestão emocional e as competências de comunicação como explicita que, para uma gestão eficaz das emoções, é essencial começar por ganhar consciência dos nossos próprios processos. Este é talvez o principal desafio. Sobretudo porque implica a aceitação de que se fosse o ambiente externo a ditar completamente o nosso estado interno, a nossa saúde mental, todos reagiríamos da mesma forma às mesmas coisas. Olhando à volta é fácil perceber que não é assim que acontece. No entanto retira-nos do lugar de vítima que requer justiça e defesa, e coloca-nos num lugar de responsabilidade e ação, o que pode ser muito desconfortável.

 

Assim, pode ser interessante começar por refletir a nível individual e enquanto organização qual é o estado atual em que nos encontramos. Só é possível definir um caminho a seguir sabendo de onde se parte, e por isso deixo algumas perguntas para reflexão.

Indivíduo/Profissional:

Como me sinto, de uma forma geral, no meu trabalho?

O que significa, para mim, ter um bom dia no trabalho?

O que caracteriza um dia mau?

Qual é o elemento do meu trabalho com o qual lido pior?

No meu contexto atual, qual a percentagem de dias bons e de dias maus?

Essa percentagem é aceitável ou seria interessante alterar?

Que percentagem seria aceitável?

O que preciso de fazer para que isso seja uma realidade?

Como está a minha relação com os meus colegas?

Sou um elemento que contribui para o bom ambiente e colaboração, ou nem por isso?

Que perceção penso que os meus colegas têm de mim?

Estou confortável com essa perceção, ou gostava que fosse diferente?

Organização/Liderança

Como está, de uma forma geral, o ambiente na organização?

Qual o grau de satisfação dos membros da equipa?

Com que frequência surgem conflitos na equipa?

Quais os temas que desencadeiam os principais conflitos?

Que papel desempenha a organização/liderança na criação e na resolução dos conflitos?

Quais os elementos da equipa que contribuem para o bom ambiente e quais os que o pioram?

Que consciência existe sobre as dificuldades e necessidades de cada indivíduo na organização?

Foram desenvolvidas iniciativas para trabalhar a cultura da organização?

Pensando numa abordagem para melhorar o bem-estar dos membros da equipa, qual seria a primeira iniciativa que seria viável implementar?

Nenhuma destas perguntas tem uma resposta certa ou errada, como é lógico. No entanto, as respostas individuais e organizacionais permitem revelar a fotografia atual e abrir o espaço para eventuais processos que possam ser iniciados. Hoje, tanto indivíduos como organizações têm no nosso setor profissionais e ferramentas que facilitam estas transformações.

*Médico veterinário e trainer de PNL

**Artigo de opinião publicado na edição 182, de maio, da VETERINÁRIA ATUAL.

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