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Animais de Companhia

Terapias assistidas por animais: “Pode parecer chocante dizê-lo, mas os animais são a componente mais importante neste circuito”

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É na companhia da “afilhada” Ponchita, uma cadela com cerca de oito anos, que Sílvia Vasconcelos tem feito a caminhada nas intervenções assistidas por animais. A médica veterinária explica o conceito destas intervenções à VETERINÁRIA ATUAL, defende a regulamentação para bem de animais, de utentes e de técnicos e dá a conhecer os projetos que já conduziu junto de idosos e da população reclusa feminina no Funchal.

As terapias assistidas por animais são um campo vasto. De que falamos quando abordamos este conceito?

 

As intervenções assistidas por animais (IAA) podem multiplicar-se em atividades assistidas por animais (AAA), que foi o que fiz no meu doutoramento com idosos (ver caixa). Realizei atividades com animais que não tinham objetivos terapêuticos definidos – tratava-se apenas de investigação, embora as AAA acabem por ter, subliminarmente, uma componente terapêutica – para tentar inferir se havia benefícios do convívio com cães naquela população de idosos, nomeadamente no âmbito da saúde mental, da ansiedade, da depressão, das demências e foi um trabalho feito em parceria com um psicólogo e uma psiquiatra. No entanto, naquela altura eu não era terapeuta, era uma médica veterinária que estava a atrever-se nas atividades assistidas por animais.

Depois existem as terapias assistidas por animais (TAA) e, neste caso, as terapias obedecem a um objetivo, a um método e depois a uma avaliação, que pode ser contínua ou só no início e no fim do programa. Por exemplo, uma criança tem um problema de locomoção e está a fazer um trabalho de reabilitação motora, para o qual um fisioterapeuta e um médico definem um objetivo e os animais entram através de um terapeuta certificado que vai delinear, juntamente com os outros profissionais, várias sessões de terapia em que vai acoplar o animal para auxiliar e motivar a criança a fazer os exercícios de fisioterapia. Se for um cão ela pode apoiar-se nele para andar, podemos motivá-la a levar água ou alimentação ao cão, ir passeá-lo ou outra atividade que ajude a criança na atividade locomotora. Depois, no fim, faz-se a avaliação para perceber se os objetivos pretendidos foram atingidos, ao contrário das atividades assistidas que não precisam desta avaliação.

 

Existe ainda outra componente nas IAA que são as leituras assistidas por animais, que entram na vertente educativa e são muito úteis em crianças. Mais uma vez, terão de ser técnicas certificadas e que tenham uma componente pedagógica para melhorar a leitura das crianças e até em adultos. Estas leituras assistidas por animais também têm um objetivo mensurável, é cronometrado o número de palavras por minuto, e no fim faz-se a avaliação.

É no campo das TAA que, por exemplo, entra a hipoterapia, realizada com cavalos?

 

Sim, pode entrar. Nas IAA o que os animais fazem é auxiliar em determinadas atividades, estimulando e motivando os utentes e fazendo a mediação entre os terapeutas e/ou os médicos e os utentes.

As TAA, embora sejam já seculares, tiveram um grande impulso nos anos 60 do século passado através de um psicólogo, o Dr. Levinson, que tinha entre os utentes um menino com autismo. Já tinha feito várias sessões com a criança sem grandes resultados, até que um dia, de forma inesperada, o cão do Dr. Levinson entrou pelo consultório dentro, aproximou-se da criança e esta reagiu, deixou de estar naquele espetro do autismo e reagiu ao animal.

 

A partir daí, o Dr. Levinson passou a usar o animal para chegar à criança. Podia até não fazer grande coisa, mas, na presença do animal, ela sentia-se estimulada, motivada, relaxada.

Está comprovado cientificamente que a nossa interação com os animais, o mero olhar, o mero acariciar, desponta em nós, e também neles, uma avalanche fisiológica.

“Podemos pensar que quem é mais importante são os utentes, a quem nós queremos melhorar algumas questões de saúde. Sim, humanamente falando é isso mesmo, mas no âmbito das técnicas de TAA o animal é central e é o foco principal”

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E enquanto médica veterinária, quando é que esta área das IAA lhe despertou interesse?

Tinha acabado de fazer o mestrado e microbiologia e a minha orientadora na altura incentivou-me a continuar. Pensei em fazer um doutoramento, que é um investimento muito grande, a nível pessoal e financeiro, mas de novo em microbiologia não estava apaixonada [pela ideia]. Já tinha lido umas coisas sobre o “poder” que os animais têm no relaxamento dos seres humanos, na saúde, tinha-me entusiasmado e pensei que se era para avançar para esse grau académico devia fazê-lo em algo que gostasse. Falei com os orientadores que acharam uma boa ideia e foi quando decidi fazer as AAA, no caso com um cão, com mais de 300 idosos.

Aconteceu o que imaginava: apaixonei-me pela área e não parei a partir daí.

Achei que tinha de conhecer mais sobre o comportamento animal, porque é fundamental um terapeuta que faz atividades e terapias assistidas por animais ter um conhecimento muito grande do comportamento animal. Enquanto veterinária, parto em vantagem, no entanto quis especializar-me em comportamento animal para, conhecendo os animais, o seu temperamento, a sua personalidade, poder potenciar esse animal para as atividades e terapias. Então, fui fazer uma pós-graduação em comportamento animal, a paixão continuou, e decidi certificar-me enquanto terapeuta para saber com convicção o que estava a fazer. Hoje sou uma técnica certificada em TAA pelo ISPA [Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida] e fiz o trabalho de pós-graduação numa outra população e com outra variável, a população reclusa feminina no Estabelecimento Prisional do Funchal (EPF), mas com o mesmo cão, a Ponchita (ver caixa).

Não é qualquer pessoa que pode fazer terapias assistidas com animais. É preciso estar certificado e, por isso, fiz a pós-graduação, para estar certificada pelo ISPA e poder, agora enquanto técnica de TAA, exercer. Sempre numa perspetiva de multidisciplinaridade porque, há que lembrar, as terapias, sendo áreas da saúde humana, têm de ser assistidas ou participadas por um agente de saúde (humana), seja um médico, um fisioterapeuta, um psicólogo. Depende do objetivo que temos.

Esta ainda é uma área pouco estudada academicamente em Portugal. Ouve-se falar de algumas atividades com animais junto de algumas populações, nomeadamente jovens com algumas incapacidades ou patologias, mas é um tema pouco trabalhado na academia?

Precisamente. É nessa ótica que estou a investir, na vertente académica, com o doutoramento e com a pós-graduação, e vou continuar com o pós-doutoramento. Em Portugal já se fazem muitas atividades e já se deu alguns passos nas TAA embora, repito, para estas, é preciso estar certificado e é preciso que se forme a equipa multidisciplinar com a componente da saúde humana.

“Uma das minhas propostas é que se regulamentem as TAA em Portugal, não só para garantir que estas são feitas por terapeutas certificados, mas também para que estas não levem a situações abusivas com os próprios animais, nomeadamente quanto ao seu bem-estar e à exploração dos animais”

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Uma das minhas propostas é que se regulamentem as TAA em Portugal, não só para garantir que estas são feitas por terapeutas certificados, mas também para que estas não levem a situações abusivas com os próprios animais, nomeadamente quanto ao seu bem-estar e à exploração dos animais.

Pode parecer chocante dizê-lo, mas os animais são a componente mais importante das TAA. Podemos pensar que quem é mais importante são os utentes, a quem nós queremos melhorar algumas questões de saúde. Sim, humanamente falando é isso mesmo, mas no âmbito das técnicas de TAA o animal é central e é o foco principal. Porquê?

Porque se alguma coisa falhar com o animal vai falhar todo o programa e podemos pôr em risco o próprio utente. E isto é fundamental.

“As TAA diminuem o tempo de internamento hospitalar das pessoas, diminuem a frequência e a circulação dos profissionais de saúde nos internamentos hospitalares, diminuem a prescrição medicamentosa, (…) ou seja, temos aqui ganhos em economia da saúde que são reais e já foram estudados”

TAA com idosa | Direitos Reservados

No fundo, é como se o animal fosse a própria terapêutica e se a terapêutica não for a adequada é como prescrever um medicamento que não é o certo…

É uma boa metáfora. Imaginemos que estamos com crianças ou idosos e o animal começa a acusar sinais de stress – orelhas arrebitadas, o corpo arqueado ou rosna – tenho de parar imediatamente a sessão porque não vou conseguir alcançar o objetivo terapêutico com este animal. É preciso garantir os tempos dos animais, garantir as suas “cinco liberdades” e todos os pressupostos do bem-estar animal e também é preciso educar [os utentes], e isso faz-se no princípio e ao longo das sessões, para o cuidado com os animais.

Na Bélgica as terapias realizadas com animais já são prescritas por médicos, por exemplo…

Sim. No Brasil e aqui na Europa também. Há psiquiatras que prescrevem animais para os idosos com o objetivo de combater a solidão, a ansiedade e a depressão.

Outra coisa diferente, são autores a falar em alternativas terapêuticas quando abordam as TAA, nomeadamente do Japão cheguei a ler um conjunto de autores que defendia isso. Não tenho experiência suficiente para o defender, mas não acho, de acordo com o que tenho lido, que se possa dizer que as TAA são alternativas a outras abordagens terapêuticas.

Acho que são complementares, sem dúvida alguma, e podem, está comprovado cientificamente, contribuir para reduzir as outras abordagens terapêuticas. As TAA diminuem o tempo de internamento hospitalar das pessoas, diminuem a frequência e a circulação dos profissionais de saúde nos internamentos hospitalares, diminuem a prescrição medicamentosa – seja no universo hospitalar ou noutro contexto – ou seja, temos aqui ganhos em economia da saúde que são reais e já foram estudados. É realmente uma área na qual vale a pena apostar.

E nas prisões poderia ser o caminho para diminuir as taxas de reincidência criminal. Se estas diminuírem, diminuem também as despesas do Estado, nomeadamente com psicólogos, com medicamentos ou outro tipo de assistências que se fazem no contexto prisional.

De uma forma indireta é também uma aposta socioeconómica.

O que acontece no corpo humano para que estas terapias tenham os resultados que são conhecidos? De que reações químicas e fisiológicas estamos a falar?

Existem várias teorias e está tudo sustentado do ponto de vista científico. Uma das teorias que fundamenta as TAA é a biofilia, isto é, o facto de nós gostarmos da natureza e dos outros seres vivos.

Outra é a teoria social, que diz respeito à nossa capacidade de socialização com a natureza e com outros seres.

“Não se pode fazer IAA sem que um veterinário atue, esteja presente, dê o seu parecer, é uma matéria que também é nossa. Não é só nossa, é multidisciplinar, e é uma atividade que se integra perfeitamente no conceito One Health.”

Uma outra teoria é a neurofisiológica, segundo a qual, de facto, a convivência com animais desponta mecanismos neurofisiológicos, tanto nas pessoas, como nos próprios animais. Observa-se um aumento da oxitocina – tanto no ser humano, como no animal – a hormona da vinculação e do amor, um aumento das endorfinas, da serotonina, ou seja, está tudo fundamentado para que se integrem estas terapias nas terapias humanas.

E que animais são mais vocacionados para serem usados nas TAA? Têm de passar por um processo de socialização especial?

Qualquer animal pode ser usado nas TAA, desde que obedeça a determinadas características. Os mais usados são os cães, a cinoterapia e a hipoterapia são as mais usadas e com melhores resultados, porque também são aquelas nas quais se tem investido com mais estudos, no entanto, qualquer animal pode ser um animal um mediador de terapia, até os répteis.

Imaginemos que quero fazer uma terapia a uma criança e ela não gosta de cães, obviamente [o animal] é excluído. Ou a uma pessoa com uma necessidade especial, mas que tem medo de cavalos, é logo excluído [aquele animal].

Um dos critérios é os utentes gostarem do animal que vamos usar, não podem ter medo nem alergia a esses animais. Uma outra característica importante é que não tenham historial de maus-tratos aos animais e isto nos reclusos é muito importante.

O animal que vai ser o mediador da terapia tem de ter um temperamento amistoso, ser um animal sociável, tem de ter treino de obediência básica, pode conhecer alguns truques – desde que estes não interfiram no bem-estar animal e sejam ensinados com reforço positivo – que podem ser um fator interessante para usar nas TAA.

Por exemplo, a Ponchita é extremamente sociável e dócil com todos os utentes, com os idosos, com as reclusas, é um animal extremamente amistoso. Não sou a tutora, ela é de uma vizinha, sou uma espécie de madrinha, conheço-a muito bem e isso é outra característica muito importante: que o terapeuta conheça muito bem o animal que está a ser utilizado e o comportamento da espécie.

O ideal é que os animais usados em TAA sejam também certificados. Em Portugal, tanto quanto sei, há uma associação faz certificação, mas não sei até que ponto está regulamentada.

Defendo que, no futuro, o ideal é que tanto as TAA, como os animais e os técnicos sejam todos certificados e esta atividade seja regulamentada, para evitar a exploração dos animais, para evitar técnicas mal usadas e para evitar que se comprometa a saúde dos utentes.

E quem poderia certificar os animais usados nas TAA? O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF)? A Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV)?

Tinha de ser uma entidade certificadora, como acontece com a certificação dos animais de assistência a invisuais. Sim, por exemplo, a DGAV ou o ICNF. Tem de haver uma regulamentação porque podemos pôr em perigo a saúde das pessoas e o bem-estar dos animais.

Considera que os seus colegas médicos veterinários estão despertos para as potencialidades deste tipo de abordagem?

Ainda pouco. Creio que fui a primeira veterinária no País a abordar esta área. No entanto, fiquei muito contente porque na minha pós-graduação vi que não era a única veterinária [no curso].

Nós veterinários não podemos perder este comboio da intervenção, porque trabalha-se com animais e nós somos os profissionais que mais podem avaliar os animais para este tipo de práticas e intervenções. Não se pode fazer IAA sem que um veterinário atue, esteja presente, dê o seu parecer, é uma matéria que também é nossa. Não é só nossa, é multidisciplinar, mas esta é uma atividade que se integra perfeitamente no conceito One Health, ou seja, no conjunto de vários saberes da saúde – a medicina humana, a medicina veterinária, a psicologia, o ambiente – e nós somos agentes indispensáveis.

E numa altura em que se fala em excesso de profissionais no mercado nos próximos anos, esta pode ser uma linha de intervenção para os médicos veterinários?

Sem dúvida alguma que sim. Uma carreira integrada na saúde pública, dentro do conceito One Health. Não nos podemos é cingir aos nossos conhecimentos médicos veterinários, há que fazer formação, especializarem-se em comportamento animal, certificarem-se como terapeutas, sem esquecer uma componente de psicologia humana grande. Não vamos substituir os psicólogos ou os profissionais da saúde humana, mas também não nos podem substituir enquanto agentes da saúde animal que pode dizer se determinado animal tem as características higieno-sanitárias, comportamentais e temperamentais para integrar este tipo de atividades.

De idosos a reclusas: Os projetos desenvolvidos até ao momento

TAA no Estabelecimento Prisional do Funchal | Direitos Reservados

De origem madeirense, Sílvia Vasconcelos fez a sua formação na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e no ISPA e é neste momento, a par de investigadora na área das IAA, quadro da função pública numa divisão de animais de companhia, onde trabalha com o bem-estar animal.

O trabalho de investigação nesta área começou com AAA num grupo de cerca de 300 idosos e do qual resultou o livro “Benefícios dos animais de companhia para a saúde mental dos idosos”.

Nas palavras da médica veterinária, foi uma experiência “muito positiva”, em que os idosos foram divididos em grupos nas atividades com a Ponchita e foi avaliado o impacto desses momentos nos níveis de depressão, ansiedade e na pressão arterial, tendo-se observado uma redução da sintomatologia associada sobretudo às doenças do foro mental. “Os resultados mais significativos foram na população com demência, na qual foi possível observar que melhoraram significativamente os níveis de depressão”, acrescenta a terapeuta.

A propósito da sua certificação enquanto terapeuta de TAA, Sílvia Vasconcelos realizou uma investigação com a população feminina do EPF. O projeto realizou-se entre junho e outubro de 2023 com sessões semanais entre as reclusas e a cadela para avaliar o impacto das terapias nos níveis de agressividade, medidos através de escalas psicométricas utilizadas por uma psicóloga. “O resultado foi a diminuição dos níveis de agressividade de todos os tipos, seja verbal, física, a raiva, a hostilidade, tudo isto diminuiu no fim do programa”, relata.

E o próximo projeto já está em andamento, com os pedidos de autorização a decorrerem e os protocolos a serem desenhados e juntará duas das populações mais fragilizadas da sociedade: animais em centro de recolha oficiais/associações e a população reclusa.

Desta vez a Ponchita – prestes a entrar na “reforma”, já que os animais seniores não são utilizados em TAA – dará lugar a animais em abrigos oficiais ou em associações de proteção animal, ainda está a ser delineado pela investigadora, que irão ao EPF com o objetivo de serem socializados pelos reclusos, para, eventualmente, terem mais oportunidades para serem adotados. Segundo explica, Sílvia Vasconcelos vai “apostar na componente de treino e socialização dos cães para os tornar mais adotáveis e, paralelamente, vamos divulgar na Internet a história dos animais e a socialização deles feita pelos reclusos para tentar aproximar a comunidade de fora dos muros a adotar os animais”.

Na população reclusa – desta vez participarão mulheres e homens – será avaliado o impacto das TAA na ansiedade e nos níveis de agressividade, respetivamente.

*Entrevista publicada na edição 178, de janeiro, da VETERINÁRIA ATUAL.

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