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Qual a importância do médico veterinário como agente de saúde pública na prevenção e controlo das zoonoses parasitárias?

As zoonoses parasitárias caninas e felinas são inúmeras e representam uma ameaça à Saúde Pública. Um dos exemplos mais relevantes é a Toxocarose, uma doença parasitária negligenciada provocada por nemátodes intestinais. Toxocara canis e Toxocara cati são as espécies mais importantes no que respeita a Medicina Veterinária e à Saúde Pública.1

De que forma ocorre a transmissão da Toxocarose ao Homem?

A infeção do Homem ocorre predominantemente pela ingestão acidental de ovos embrionados no meio ambiente (areia ou solo). Este hábito é mais frequente em crianças, em particular se frequentarem ambientes potencialmente contaminados e coabitarem com cães ou gatos não desparasitados regularmente. Outras vias de infeção possíveis são a ingestão de água, fruta ou vegetais mal lavados, previamente contaminados com ovos de Toxocara spp., ou pelo consumo de carne de hospedeiros paraténicos infetados. De ressalvar que os ovos de Toxocara spp. têm uma casca externa que lhes confere grande resistência a ambientes extremos bem como a agentes químicos e físicos, possibilitando a sua sobrevivência no meio exterior até quatro anos.1,2

Qual o quadro clínico da Toxocarose nos animais e no Homem?

Nos animais, esta doença manifesta-se por um quadro gastrointestinal ligeiro (diarreia, distensão abdominal e vómito, por vezes com expulsão de parasitas), atrasos no crescimento e má condição da pelagem. Mais raramente podem ocorrer sinais respiratórios, consequência da migração larvar e de eventuais complicações como pneumonia. Nos humanos, a gravidade da doença está dependente

da carga parasitária, da duração da migração larvar e do estado imunitário do hospedeiro. Contudo, pode ser uma doença grave, responsável por quatro grandes síndromes:1,2

  • Larva Migrante Visceral: Resulta da migração larvar pelos órgãos internos como o fígado e pulmões, causando hepatite e pneumonia. O quadro clínico inclui fadiga, febre, eosinofilia, linfadenopatia, tosse, sibilância, vómito, dor abdominal e hepatomegalia;
  • Larva Migrante Ocular: Resulta da migração larvar para o globo ocular, provocando a formação de um granuloma, lesão retiniana e perda de visão;
  • Larva Migrante Neurológica: Ocorre quando o parasita se aloja ao nível do Sistema Nervoso Central, representando a forma mais grave da doença ao causar quadros de febre, cefaleia e convulsão, consequência de potenciais meningoencefalites;
  • Toxocarose Dissimulada: Síndrome semelhante ao da Larva Migrante Visceral, mas com manifestações mais leves.

Direitos Reservados | Figura 1: Fêmea adulta de Toxocara canis no lúmen intestinal de um cão, excretando até 200000 ovos por dia

Qual a prevalência da Toxocarose animal em Portugal?

A Toxocarose é uma das infeções parasitárias zoonóticas mais difundida em todo o mundo, sendo considerada uma das cinco doenças negligenciadas mais importantes.2 Concretamente em Portugal, sabemos que é uma parasitose muito prevalente e amplamente distribuída, tanto em cães como em gatos.3,4 Como a maioria dos estudos são baseados exclusivamente em exames fecais, estima-se que a verdadeira prevalência de Toxocara spp. possa estar subestimada. Isto acontece pela excreção intermitente, pelo período pré-patente (em que o animal apesar de infetado não excreta o agente parasitário), ou pela baixa sensibilidade de algumas técnicas coprológicas. Também os carnívoros silvestres têm revelado elevadas prevalências desta infeção, como é o caso do lobo ibérico e das raposas em Portugal. Com a crescente presença de carnívoros silvestres nas cidades, quadros de infeção cruzada entre carnívoros domésticos e silvestres são cada vez mais frequentes, podendo agravar a gestão deste problema de Saúde Pública.3

Qual a prevalência da Toxocarose humana em Portugal?

Um estudo recente conduzido pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical que avaliou a seroprevalência de Toxocara spp. na população portuguesa com sintomatologia suspeita, revelou valores de 19%, com mais de metade dos positivos sendo de idade pediátrica.4 Acredita-se, contudo, que o número de casos de Toxocarose em humanos em Portugal esteja subestimado pelo facto da maioria das infeções ser assintomática, pelo diagnóstico laboratorial ser relativamente insensível (principalmente nas manifestações oculares) e por raramente se considerar Toxocara spp. como hipótese diagnóstica.

Qual a prevalência da Toxocarose nos espaços públicos em Portugal?

Um estudo recente avaliou a contaminação ambiental por Toxocara spp. em 19 jardins e parques públicos da região da Grande Lisboa. Constatou-se que 85,7% das caixas de areia dos parques infantis e 50% dos parques públicos estavam contaminados com ovos de Toxocara spp. Destacam-se alguns dos jardins mais frequentemente utilizados pelos Lisboetas, como o Jardim das Amoreiras, Jardim da Estrela, Jardim da Gulbenkian, Jardim de Monsanto e o Jardim da Torre de Belém.3 Adicionalmente, salienta-se que mais de metade dos ovos recuperados estavam viáveis e encontravam-se infeciosos. Sendo a contaminação ambiental por Toxocara spp. considerada a principal fonte de infeção humana, este estudo faz soar o alarme relativamente à necessidade de adoção de medidas eficazes no controlo desta zoonose.

“Face à crescente popularidade dos animais de companhia em Portugal e à tendência crescente de humanização, torna-se imperativo reforçar as estratégias de vigilância, prevenção e educação da população relativamente à problemática das zoonoses.”

Quais as práticas de desparasitação dos tutores de cães e gatos em Portugal?

Tendo em conta as diretrizes atuais da European Scientific Counsel for Companion Animal Parasites (ESCCAP),5 foi realizado um questionário com vista a caracterizar os hábitos de desparasitação dos tutores de cães e gatos da Grande Lisboa. Observou-se que apesar de 90% dos tutores desparasitar internamente o seu cão, apenas 12% o faziam de acordo com a periodicidade mínima recomendada (pelo menos 4x/ano). Nos gatos, 64% dos tutores desparasitavam internamente o seu gato, contudo apenas 6% o faziam com a periodicidade recomendada.6 Estes resultados mostram-nos que práticas básicas como a desparasitação (frequentemente consideradas pelos Médicos Veterinários como estratégias preventivas amplamente difundidas), estão ainda longe do standard. Observa-se assim que apesar dos tutores de animais de estimação administrarem antiparasitários, a maioria não segue as recomendações, realizando a desparasitação em intervalos irregulares e, consequentemente, ineficazes.6

Qual a frequência da recolha de dejetos pelos tutores em Portugal?

Um questionário realizado a tutores de cães na cidade de Lisboa concluiu que 37% destes não recolhe os dejetos em todos os espaços públicos. Como justificações, foram referidos os seguintes: 43% argumentou que as fezes são biodegradáveis e atuam como fertilizante; 20% que se tratava de zonas descampadas; 17% que eram zonas inalcançáveis; 9% por preguiça; 6% por repulsa e 4% por ausência de contentores e por masculinidade.6 Esta situação é lamentável uma vez que tais comportamentos aumentam o risco de contaminação ambiental por parasitas como Toxocara spp., cuja prevalência é por si só, bastante elevada em cães e gatos em Portugal.

Qual o conhecimento de zoonoses dos tutores de cães e gatos em Portugal?

Num questionário efetuado a tutores de cães e gatos, observou-se que 85% dos entrevistados nunca tinha ouvido falar de “zoonose”. Adicionalmente 1/3 dos entrevistados não foi capaz de referir exemplos de fontes de infeção parasitária para o seu cão ou gato.6 Estes resultados espelham uma lacuna na literacia em saúde da população, com repercussões claras na prevenção, controlo e deteção precoce destas doenças. Tutores mais informados têm não só maior probabilidade de adotar práticas que minimizam o risco de transmissão de doenças entre animais e família, como reconhecem mais facilmente sinais patológicos, permitindo uma deteção precoce, um tratamento atempado, e um menor risco de propagação da doença.

Qual a proximidade do contacto diário entre os tutores e os seus animais em Portugal?

Questionários realizado a tutores em Portugal mostram que 43% permite que o seu cão durma consigo na sua cama e 75,5% que lhe lamba o rosto.7 Considerando que em várias zoonoses, o parasita habita o intestino do seu hospedeiro e liberta ovos para o ambiente através das fezes, e dado que os cães lambem o próprio ânus ao realizarem sua higiene pessoal, comportamentos como lamber o rosto dos tutores aumentam o risco de transmissão de ovos presentes no cão para o ser humano. De salientar o papel fundamental dos Médicos Veterinários na sensibilização e educação dos tutores, enfatizando que estas práticas potenciam um maior risco de transmissão de zoonoses.

Direitos Reservados | Figura 2: Mapa referente à contaminação ambiental por ovos de Toxocara canis e Toxocara cati são as espécies mais importantes no que respeita à Medicina Veterinária e à Saúde Pública. Triângulo vermelho – amostras
positivas; Círculo verde – amostras negativas. Fonte: Otero et al., 2017.

Conclusão

Face à crescente popularidade dos animais de companhia em Portugal e à tendência crescente de humanização, torna-se imperativo reforçar as estratégias de vigilância, prevenção e educação da população relativamente à problemática das zoonoses. Apesar de Toxocara spp. ser dos parasitas mais frequentes nos animais de companhia, apenas 12% dos cães e 6% dos gatos estão desparasitados internamente com a devida regularidade; adicionalmente, 37% dos tutores não recolhem os dejetos do seu cão em todos os espaços públicos. No contexto ambiental, os estudos mostram que 85,7% das caixas de areia dos parques infantis e 50% dos jardins da cidade de Lisboa estão contaminados com ovos de Toxocara spp. No que respeita a situação nos humanos, regista-se uma seroprevalência de 19% para este parasita em Portugal, maioritariamente em crianças, um grupo vulnerável a complicações graves. No quotidiano das habitações portuguesas, 75,5% dos tutores permite que o seu cão lhe lamba o rosto e 85% demonstra uma falta de conhecimento sobre zoonoses. Este conjunto de dados aponta para a necessidade premente de uma intervenção educacional, que vise aumentar a consciencialização da população sobre boas práticas de desparasitação e medidas de prevenção com vista a reduzir a transmissão de zoonoses. Ressalva-se a importância vital do Médico Veterinário como agente de Saúde Pública, com vista à obtenção de animais mais saudáveis, ambientes mais seguros e famílias mais protegidas.

Referências:

  1. Overgaauw PA, van Knapen F. Veterinary and public health aspects of Toxocara spp. Vet Parasitol. 2013 Apr 15;193(4):398-403. doi: 10.1016/j.vetpar.2012.12.035.
  2. Centers for Disease Control and Prevention. Parasites—Toxocariasis (Also Known as Roundworm Infection). Available online: https://www.cdc.gov/parasites/ toxocariasis/index.html
  3. Otero D, Alho AM, Nijsse R, Roelfsema J, Overgaauw P, Madeira de Carvalho L. Environmental contamination with Toxocara spp. eggs in public parks and playground sandpits of Greater Lisbon, Portugal. J Infect Public Health. 2018 Jan-Feb;11(1):94-98. doi: 10.1016/j. jiph.2017.05.002. Epub 2017 May 22. PMID: 28545900.
  4. Alho AM, Ferreira PM, Clemente I, Grácio MAA, Belo S. Human Toxoc ariasis in Portugal-An Overview of a Neglected Zoonosis over the Last Decade (2010-2020). Infect Dis Rep. 2021 Nov 4;13(4):938-948. doi: 10.3390/ idr13040086.
  5. ESCCAP. Worm control in dogs and cats. Guideline 01 Sixth Edition – May 2021. European Scientific Counsel Companion Animal Parasites. Disponível em: https:// www.esccap.org/uploads/docs/oc1bt50t_0778_ ESCCAP_GL1_v15_1p.pdf
  6. Matos M, Alho AM, Owen SP, Nunes T, Madeira de Carvalho L. Parasite control practices and public perception of parasitic diseases: A survey of dog and cat owners. Prev Vet Med. 2015 Nov 1;122(1-2):174-80. doi: 10.1016/j.prevetmed.2015.09.006.
  1. Ferreira A, Alho AM, Otero D, Gomes L, Nijsse R, Overgaauw PAM, Madeira de Carvalho L. Urban Dog Parks as Sources of Canine Parasites: Contamination Rates and Pet Owner Behaviours in Lisbon, Portugal. J Environ Public Health. 2017; 2017:5984086. doi: 10.1155/2017/5984086.

Ouça o podcast sobre o tema.

*(MD, DVM, PhD) – Médica Veterinária e Médica Interna de Saúde Pública na ULS Santa Maria

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