Luís Ferreira é o primeiro médico veterinário a sentar-se na cadeira de reitor da Universidade de Lisboa (UL). A VETERINÁRIA ATUAL foi conhecer o seu percurso dedicado à docência e à investigação e a sua visão sobre a formação pré-graduada e a evolução da profissão e da prática em Portugal e no mundo.
Que ensinamentos foi buscar à medicina veterinária para o desempenho do cargo de reitor da UL?
É inevitável irmos “beber” ao nosso passado… O que a medicina veterinária me ensinou, e que se aplica no desempenho do cargo de reitor, foi uma cultura de intenso trabalho e de grande rigor. Um sentido de esforço continuado para se conseguir chegar a determinado objetivo.
A medicina veterinária é um curso muito difícil, que exige uma enorme carga de trabalho. Os professores diziam-nos, com frequência, que na medicina veterinária estamos sujeitos a uma sobrealimentação teórica e, como tal, não havia outra alternativa senão trabalhar, trabalhar e trabalhar. O mesmo acontece na Reitoria.
“Atualmente, um veterinário tem que garantir que sabe de ciências sociais, de economia, de medicina, de zootecnia, de biofísica e de informática”
Assumiu recentemente numa entrevista que, como reitor da UL, umas das suas prioridades passa por rejuvenescer o corpo docente da instituição. Essa é uma necessidade transversal a todos os cursos? E por que é que é uma preocupação?
Preocupa-me muito que os estudantes cheguem à UL e não encontrem, nas suas faculdades, professores que sejam da geração anterior à sua. É muito importante garantirmos que há uma representatividade de todas as gerações na docência. Atualmente, a média de idades dos professores da UL situa-se nos 58 anos, mas felizmente tem vindo a descer.
E como é que isso se faz, na prática?
É lutando muito para que tenhamos um orçamento suficiente e para que não estejamos a cortar sempre nas novas contratações.
Nos últimos 20 anos, as universidades foram perdendo orçamento e também uma grande parte da sua autonomia, autonomia essa que estava consagrada na lei. Ou seja, além de termos pouco dinheiro – um subfinanciamento crónico –, estamos proibidos de fazer contratações, o que resulta, entre outras questões, no envelhecimento do corpo docente.
O que precisamos e pretendemos é que nos deixem gozar da nossa autonomia. Genericamente, as universidades sempre souberam ser muito rigorosas na aplicação dos seus dinheiros e continuaríamos a fazê-lo se tivéssemos maior autonomia.
Qual é a sua preocupação número um?
A minha primeira preocupação são os estudantes, a segunda são os estudantes e a terceira são os estudantes!
É por isso que um dos principais objetivos da reitoria passa por garantir que a UL é uma universidade de investigação, reconhecida mundialmente como tal, com um ambiente e ensino baseados na investigação. O que se pretende é que os nossos alunos participem e vivam num ambiente em que o ensino está permanentemente a ser alimentado por aquilo que são os resultados da própria investigação que se faz na universidade.
Além disso, queremos que os estudantes possam encontrar todo o suporte que lhes permita ter um ambiente cosmopolita, um ambiente de discussão permanente, um ambiente cultural, onde de manhã vão a uma aula prática, à tarde podem ir jogar futebol no Estádio Universitário e à noite vão assistir a um concerto de música clássica oferecido pela UL.
Quais são, a seu ver, os grandes desafios ao nível da formação e da prática da medicina veterinária, atualmente, em Portugal?
O mundo mudou muito e os desafios atualmente são muitos e de grande dimensão. Temos de nos adaptar ao novo mundo e um veterinário tem de garantir que sabe de ciências sociais, de economia, de medicina, de zootecnia, de biofísica e de informática. De ciências sociais porque, desde logo, trabalha com pessoas, sejam elas os tutores de animais de companhia, sejam responsáveis por explorações de animais de produção.
Neste último caso, além de pensar na vertente da produtividade animal, o veterinário tem que dominar alguns conceitos de economia moderna, cada vez mais ligados a uma à transformação digital.
Atualmente, a maior parte das explorações animais são altamente tecnológicas, com sensores para medir os mais variados parâmetros, desde sabermos qual é a qualidade do ar até uma monitorização permanente da luz, ou do peso médio das aves, porque no aviário há balanças espalhadas por toda a parte, com tecnologia que nos dá o índice de conversão alimentar dos animais ao segundo. Dados que representam, naturalmente, informação importante do ponto de vista económico.
O veterinário tem obviamente que dominar todos os aspetos relacionados com a medicina (preventiva e curativa), biofísica e zootecnia, bem como as ferramentas informáticas ou o arsenal terapêutico que tem hoje à sua disposição e que em nada se assemelha àquele de que dispunha há 20 anos.
Ademais, não temos o grau de especialização que encontramos na medicina. Ou seja, temos veterinários mais ligados à produção, outros aos sistemas preventivos, aos animais de companhia, outros aos equídeos… Mas, não temos só cardiologistas ou só oftalmologistas… Algo que conseguimos ao nível da faculdade, mas não da prática clínica.
Ora, é fácil de perceber que, tudo isto obriga a uma permanente atualização por parte do médico veterinário.
Como avalia a evolução da medicina veterinária em Portugal? Diria que estamos ao nível das congéneres europeias, nomeadamente ao nível da formação pré-graduada?
Sim, sem dúvida. E a prova disso é que a nossa faculdade – bem como outras faculdades de medicina veterinária portuguesas – têm sido consistentemente aprovadas no âmbito da regulação europeia. Trata-se de um organismo de regulação, com uma avaliação muito exigente, em que até já houve algumas faculdades italianas e do Reino Unido que falharam a aprovação a este nível.
“A minha primeira preocupação são os estudantes, a segunda são os estudantes e a terceira são os estudantes”
Portugal forma ou não veterinários em excesso?
Tenho grande dificuldade em responder a isso, porque lembro-me de que quando andava a estudar éramos 60 alunos no curso, a nível nacional – ainda só havia uma escola – e já se dizia que eram veterinários a mais, na medida em que esse número configurava uma duplicação do que existia uns anos antes.
Pode haver uma altura em que vamos ter desemprego de médicos veterinários, mas ainda não chegámos a esse momento.
Quando fazemos as avaliações de empregabilidade na Faculdade de Medicina Veterinária da UL, percebemos que há apenas 0,2 a 0,3 por cento de não-empregados, o que acredito que não seja muito diferente das restantes escolas.
Há, efetivamente, um número significativo de médicos veterinários a emigrarem, mas penso que se estão dispostos a fazê-lo é vantajoso para todos, porque eventualmente voltarão a Portugal, trazendo certamente algumas coisas novas e boas para o País.
Que reflexão lhe merece a elevada prevalência de burnout entre os médicos veterinários?
Acho que, atualmente, esse é um problema transversal a todas as profissões; não diria que o burnout é especialmente prevalente na classe veterinária. Isto porque, as exigências a que estamos sujeitos são muito grandes e vivemos num mundo em que estamos permanentemente no fio da navalha e isso cria-nos stresse e, consequentemente, incapacidade de resolver esses assuntos, o que, a dada altura, acaba por ter manifestações orgânicas.
Face a esta conjuntura, temos que estar muito conscientes daquilo que são os nossos limites e desenvolver estratégias para prevenir esse burnout.
Recentemente, levámos a cabo junto dos estudantes da UL um grande inquérito a este respeito, porque havia a consciência genérica, de que o burnout era uma realidade em todos os cursos. Em grande partem, devido à conjuntura atual, marcada pela pandemia, pela recessão económica, por dificuldades várias. Alargámos o âmbito do inquérito aos trabalhadores técnico-administrativos e vamos também realizá-lo aos professores.
Pelos resultados, percebemos que, apesar de tudo, a situação não é tão grave como poderíamos pensar, estando o número de casos ligeiros a moderados um pouco acima do expetável.
Temos uma equipa – dirigida por uma professora de psicologia e pró-reitora da UL – que está a trabalhar em exclusivo neste projeto de âmbito pré-clínico e preventivo e tenho a certeza de que encontraremos soluções e estratégias que possam contribuir para a prevenção deste problema, potenciando o imprescindível autocuidado e a tão necessária resiliência.
“Pode haver uma altura em que vamos ter desemprego de médicos veterinários, mas ainda não chegámos a esse momento”
Que análise faz da atual “celeuma” em torno da lei dos maus tratos aos animais, mais concretamente da sua declarada inconstitucionalidade e a forte contestação da sociedade face a esta decisão?
Espero que, a existir uma inconstitucionalidade, que esta seja rapidamente resolvida. As leis são feitas para adequar o sentimento global da sociedade à realidade e, hoje em dia, as pessoas não estão para tolerar situações de maus tratos a animais. É imprescindível que o legislador tenha isto em linha de conta, para que esta seja uma lei funcional, já que não é admissível que se tratem mal os animais na sociedade em que vivemos.
Para lá da docência
Para Luís Ferreira, a longo da sua carreira, a prática da medicina veterinária resumiu-se a ajudar o seu pai numa exploração agropecuária de família e a um breve, mas “interessante” desafio em início de carreira.
“Trabalhei no Ministério da Agricultura como médico veterinário, numa altura particularmente interessante, a da adesão de Portugal à União Europeia”, recorda. “Enquanto ‘tarefeiro’ na Direção-Geral de Pecuária, participei na tarefa de adaptar um número vasto de leis, no sentido de garantir que o nosso País tinha uma pecuária capaz de fazer face a todos os novos regulamentos, que eram muito mais restritivos”.
*Entrevista publicada na edição 168, fevereiro, da VETERINÁRIA ATUAL.