A Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa organizou as XXXIII Jornadas Médico-Veterinárias, nas instalações da faculdade, onde Manuela Rodeia Niza, professora, apresentou uma prelecção que despertou o interesse dos muitos alunos – mas também professores e médicos veterinários de todo o país – que participaram no evento científico. Tendo como ponto de partida o tema “ABC da Gastroenterolgia”, a docente aproveitou, depois, para lembrar que os médicos veterinários não devem esquecer que a «tecnologia deve estar aos serviço do Homem e não o contrário».
Dr. House é modelo
Em declarações posteriores à Veterinária Actual, a médica, que não tem «nada contra a tecnologia, antes pelo contrário», explicou que os profissionais de saúde continuam a ser o elo mais forte dos sistemas. «Meios auxiliares de diagnóstico e demais tecnologia são um importante ponto de apoio para a actividade clínica do dia-a-dia, mas não são, nem devem ser, o que mais deve ser valorizado nos tratamentos».
«A profissão de medicina, humana ou veterinária, é feita por pessoas. A primeira coisa que um médico tem de fazer é olhar, ouvir, falar com o proprietário do animal para recolher informações, sentir e só depois de todo este processo acontecer é que se devem requisitar os meios auxiliares de diagnóstico para confirmar a informação. O primeiro trilho é feito por nós. Aliás, até acho que é muitas vezes aqui que se fazem os diagnósticos e que se faz a separação entre o muito bom médico e o médico menos bom».
Nesse âmbito, a entrevistada não tem pejo em admitir que o génio do “clínico” House, o personagem de ficção televisiva que resolve (todos) os casos clínicos mais complicados, se aproxime daquilo que deveria ser o “exemplo” do médico perfeito. «O diagnóstico é o grande desafio da medicina. Depois há os casos complicados que requerem a montagem das estratégias terapêuticas. Hoje em dia, depois de chegar ao diagnóstico, é o mais fácil de fazer, porque os médicos trabalham com protocolos – há protocolos para tudo. O difícil, mesmo, é chegar ao diagnóstico acertado».
My Way
Por isso, a médica e professora recomenda aos recém-licenciados «o desenvolvimento de competências pessoais» como forma de alcançar o sucesso profissional. Os jovens profissionais, segundo Manuela Rodeia Niza, devem pôr em campo as competências científicas que aprenderam, mas devem ainda «arranjar a sua maneira própria de trabalhar. Em medicina é obrigatório trilharmos o nosso caminho, porque se não for assim, dificilmente se será um bom médico». Nesse quadro, há todo um encadeamento de causas e feitos que deve ser levado em conta. «Depois, deve servir-se da tecnologia que tem à sua disposição de forma racional e tendo em atenção que nós, em termos de veterinária, não temos o Serviço Nacional de Saúde». Ou seja, «são os proprietários que suportam os custos. Nós não somos um país rico e ainda temos muitas pessoas que ainda vivem com dificuldades e a tecnologia é fantástica, mas é cara. Portanto, se nós não fizermos um trilho que seja baseado pelo nosso “olho clínico”, vamos tornar os diagnósticos muito onerosos. É fantástico quando os donos têm muito dinheiro e não se importam de pagar, mas na prática isso não acontece. Há cada vez mais pessoas que dizem que querem tratar os seus animais, mas cujo orçamento é muito reduzido: chega, apertadamente, para o diagnóstico, mas já não dá para a terapêutica, isto é, o animal fica na mesma: doente».
Em relação ao tema em concreto da sua comunicação, Manuela Rodeia Niza avançou que o principal desafio aquando da abordagem de um animal com sintomas do foro gastrointestinal «é uma correcta avaliação da gravidade da situação. Não é infrequente a situação de um animal com vómito e diarreia agudos se resolver espontaneamente, com ou sem o benefício de receber terapêutica de suporte». Porque podem ocorrer casos potencialmente fatais «é necessário ter em atenção os erros de avaliação» em relação à gravidade dos episódios, pois essa avaliação errada pode atrasar a terapêutica, «que leva a um prolongamento do tempo de hospitalização ou mesmo à morte do animal». Por outro lado, a abordagem, «baseada numa deficiente resposta à terapêutica sintomática, resulta no não reconhecimento atempado de situações potencialmente mortais (aumentos do tempo de recuperação e da mortalidade), requisição pouco racional de provas complementares de diagnóstico, o que leva maiores consumos de tempo e dinheiro».
Para evitar males maiores, é fundamental a elaboração de uma história pregressa bem detalhada. «Para que tal aconteça é necessário que se estabeleça uma relação de confiança entre cliente/veterinário». É fundamental, sublinha, registar e atender todas as queixas do dono, mesmo que estas não se afigurem relevantes para o médico, pois a desvalorização das suas preocupações constitui frequentemente motivo de insatisfação, o que se traduz numa quebra de confiança durante uma parte importante da história clínica, como é a colheita de informações. Nesse sentido, diz a professora, importa ouvir a versão do dono, evitando colocar qualquer questão. Depois, passa-se para a fase seguinte, que é a colocação de perguntas gerais, caminhando posteriormente para questões mais específicas como: qual a dieta habitual?; quais os pecados alimentares do animal?; vai à rua acompanhado?; com trela ou sem ela?; etc.
Ainda de acordo com Manuela Rodeia Niza, estes dados são fundamentais para resolver os autênticos “enigmas” que entram nas clínicas – muitos animais comem literalmente tudo o que lhes aparece à frente, há relatos de cães que transportam verdadeiros depósitos de lixo no estômago (pregos, ferro, plástico, etc.). Amiúde, segundo a conferencista, as situações de insucesso terapêutico advêm de falhas, «às vezes grosseiras», na colheita da história clínica e/ou no exame físico.
Mais de 60% dos cães e gatos têm doença oral
Lisa Mestrinho, docente na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona, avançou que a estomatologia veterinária é uma área que merece a maior atenção, dado que dá um contributo significativo nos lucros das clínicas veterinárias, «com um retorno rápido do investimento». «Este fenómeno deve-se ao facto de 60 a 85% dos cães e gatos consultados possuírem doença oral, associado a uma maior preocupação do dono com os cuidados primários do seu anima de estimação». Segundo a mesma veterinária, os sinais clínicos são variáveis e muitas vezes de evolução silenciosa. «Na maioria dos casos é o médico na consulta de rotina que alerta o proprietário para o problema em questão. A hipersiália, sialorreia, inaptência, halitose, febre, desconforto ou dor oral, manifestada por levar as patas à boca, esforços de vómito, hemorragia oral, entre outras, são os sintomas mais comuns de patologia oral». Para tratar convenientemente as doenças orais, é necessário elaborar um diagnóstico que envolva sobretudo um exame oral completo, que inclua inspecção de todo o sistema estomatológico, associando exames complementares de diagnósticos (histapatológicos e imagiológicos). O referido exame, sublinha, deve ser standard «para que os outros veterinários o possam interpretar, o registo deverá ser efectuado em odontograma».
Entre as afecções orais mais frequentes, encontram-se, por exemplo, a retenção de dentes decíduos – «ocorre em raças pequenas e miniatura, sendo os dentes mais afectados os incisivos e caninos. Esta persistência poderá conduzir a uma maior predisposição para doença peridontal e problemas oclusais mais ou menos graves. O tratamento pára pela extracção» – também a hipoplasia do esmalte, que resulta da interrupção da formação do esmalte durante a gravidez ou imediatamente após o nascimento, onde o animal afectado surge com maior predisposição para doença periodontal; e o tratamento consiste no restauro dentário ou na colocação de coroas e dentes como os caninos e os carniceiros.
Por outro lado, patologias tão graves como as neoplasias constituem 5% a 7% do total de tumores orais no cão e cerca de 3% nos gatos. Os sintomas, diz a especialista, são vários, mas a deformação facial ou a anorexia sãos as mais frequentemente identificadas pelo dono. Dentro das neoplasias odontogénicas, a epulide é mais frequente, podendo ser fibromatose, ossificante ou escantomatose. «No estadiamento clínico será determinante a avaliação imagiológica completa da neoplasia recorrendo-se à tomografia para um correcto planeamento cirúrgico», conclui.