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Patologias do foro comportamental: A culpa é da sociedade humana

Patologias do foro comportamental: A culpa é da sociedade humana

Na grande maioria dos casos, as patologias comportamentais que apresentam os animais de companhia são ‘culpa’ da sociedade humana. Gonçalo Pereira, da Universidade Lusófona, explica que «no caso dos cães deve-se essencialmente ao facto de a sociedade humana lhes ser transmitida e no dos gatos por ignorância do ser fantástico que o gato é».

As principais patologias comportamentais dos animais de companhia poderão ser evitadas se, logo desde a sua chegada, os donos forem alertados para algumas necessidades específicas do animal (cão ou gato) que agora passará a fazer parte das suas vidas. Assim, «o papel do veterinário, do seu “médico de família”, é fundamental», defende Gonçalo Graça Pereira, médico veterinário, mestre em Etologia Clínica e Bem-estar Animal.

O stress e a pressa da sociedade humana hoje em dia reflectem-se na forma como os animais de companhia vivem e são tratados. E tal como o homem, também eles padecem cada vez mais de patologias do foro comportamental. Pelo que, «os veterinários têm de abrir a sua mente a esta área», defende o docente de Comportamento, Bem-estar e Protecção Animal da licenciatura em Medicina Veterinária da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, salientando que «eutanasiamos mais animais por comportamento do que por parvovirose, por exemplo».

 

«O tédio e o ócio são as razões primordiais para a maioria das patologias que me aparecem», explica Miguel Melo Godinho, engenheiro de produção animal e treinador de cães há 23 anos. «Há uma excessiva “humanização” do cão. É preciso entender a sua mente e fazer-lhe entender as regras de vivência na sociedade humana», destaca.
Os dois especialistas salientam ainda que as patologias comportamentais são também cada vez mais frequentes nos animais de produção intensiva (porcos, bovinos, galinhas, frangos, etc.). Uma situação que a recente lei de bem-estar animal aprovada pela União Europeia tenta resolver ou, pelo menos, atenuar.

Um cão ou gato não “nasce” agressivo ou “mau”, tudo o que acontece à sua volta desde o nascimento é que irá condicionar a sua forma de ser e estar, embora haja animais “geneticamente” mais dinâmicos ou mais tímidos, etc.
Os cães e os gatos são animais que precisam de actividade física e desafios mentais, principalmente o cão, porque o gato tem a vantagem de «saber descansar», frisa Gonçalo Pereira «e o cão não».

 

O cão precisa de sair de casa, pelo menos, duas vezes por dia e correr “à vontade” durante alguns minutos – cinco/sete minutos bastam, de acordo com Miguel Godinho – para gastar energias e fazer as necessidades, estando depois pronto a interagir com o dono. Por outro lado, dentro de casa é fundamental que tenha objectos que lhe permitam ter actividade cognitiva. Os “comuns” brinquedos são “estáticos” e o animal cansa-se deles ao fim de pouco tempo, por isso, há que recorrer a brinquedos interactivos que o desafiem e ocupem a sua mente. Tanto Gonçalo Pereira como Miguel Godinho recomendam os “Kong” como excelentes opções para ajudar a evitar ou resolver a “frustração de ficar sozinho”, que é uma das patologias mais comuns em cães, actualmente.

«Se não tiver ocupação, é óbvio que o cão vai roer tudo o que encontrar», afirma Gonçalo Pereira. «Muitos chegam até a automutilar-se, roendo as patas ou a cauda ou perseguindo-a compulsivamente, porque é a única coisa que mexe em seu redor, quando está sozinho o dia todo», diz Miguel Godinho, salientando que o cão é essencialmente um caçador. «O cão é um lobo, em essência… qualquer cão partilha 99,8% dos seus genes com o lobo, precisando instintivamente de “caçar” algo», alerta o treinador. «O cão é um lobo polido e como muito mais potencial». O gato: «um ser fantástico».

 

De acordo com a experiência de Gonçalo Pereira e de Miguel Godinho, ambas na zona de Lisboa e arredores, as principais patologias comportamentais do cão são a ansiedade por separação, a frustração por ficar sozinho e agressividade (por conflito social).

Nos gatos, Gonçalo Pereira, diz à Veterinária Actual que as patologias mais frequentes são a marcação de território e a agressividade (redirigida entre gatos ou para com o dono).

 

A causa principal destas patologias, de acordo com este mestre em Etologia Clínica e Bem-estar Animal, é a «ignorância do ser fantástico que o gato é». Ao contrário do que se diz, «o gato é um animal social, que vive em grupo e segue uma hierarquia», acrescenta. Por isso, em muitos casos, se for possível adoptar logo dois, que cresçam e se habituem um ao outro desde pequenos, eles serão certamente mais felizes.

Nos cães, isso pode ser também verdade, em alguns casos específicos – como no da frustração por ficar sozinho – minorando a possibilidade de aparecimento dessa patologia, mas há sempre que analisar caso a caso, salienta o docente da Universidade Lusófona.

No caso dos gatos o “tratamento” da maioria das patologias incide sobre o ambiente (casa) e o próprio gato, mas com o cão é imprescindível envolver o dono e, normalmente, «é muito mais difícil “tratar” o dono do que o cão», afirmam tanto Gonçalo Pereira como Miguel Godinho.

«Por isso tenho muito mais sucesso com gatos do que com cães e talvez não seja por acaso que o gato se está a transformar no animal [de companhia] do século XXI», salienta o docente da Universidade Lusófona, que dá consultas de Comportamento na Liga Portuguesa dos Direitos do Animal (www.lpda.pt).

No entanto, Miguel Godinho, que lida apenas com cães, orgulha-se de, até hoje, ter conseguido sempre resolver todos os problemas de comportamento que lhe têm aparecido na Quinta d’Alcateia (www.quintadaalcateia.com). Em conversa com a Veterinária Actual conta que um dos casos mais complicados que teve foi o de um cão que demonstrava agressividade e que veio a descobrir que a origem dessa patologia se deveu ao facto de o animal ter presenciado situações de violência doméstica. «Ficou, por isso, sem saber o que fazer em situações de stress e cada vez que algo fora do normal se passava reagia com agressividade, como reflexo condicionado. Através de treino, com situações simuladas, conseguimos “descondicioná-lo” e resolver o problema», explica Miguel Godinho.
«Nos gatos, tenho conseguido resolver os problemas com um enriquecimento ambiental» e com a definição precisa de regras, explica, por seu lado, Gonçalo Pereira, salientando que «o gato é um predador natural e que, quando passa o dia todo sozinho em casa, quando o dono chega as suas pernas são a única coisa que mexe», por isso, “atira-se” a elas…

Assim, também eles precisam de brinquedos para “caçarem”, de locais para afiarem as unhas (a sua arma natural), de espaços onde possam correr e locais altos para onde possam saltar, bem como um estore ou persiana abertos para poderem ter luz do sol e «contemplar o horizonte», diz Gonçalo Pereira. De resto, dormirão a maior parte do tempo. Todos estes conselhos o veterinário pode dar aos novos donos, assim que vêm à primeira consulta, evitando, desta forma, muitos casos de patologias comportamentais.

O papel fundamental do dono

No cão, tudo se complica porque há que “ensinar” também o dono. Dada a importância da interacção homem/cão, tanto o veterinário Gonçalo Pereira como o treinador Miguel Godinho defendem que todos os cães deviam passar por um treino de obediência básica, para entenderem as regras de viver na sociedade humana e serem mais felizes. Este treino ajudará também os donos a perceberem melhor a psicologia canina e as suas necessidades básicas, bem como a forma de serem os guias e condutores que os seus cães precisam. Também aqui o conselho do veterinário pode ter um papel fundamental.

Mas não podemos esquecer que o papel do dono é absolutamente imprescindível também porque é ele que tem de transmitir as “queixas” do seu animal (cão ou gato). Tem, por isso, de estar sempre muito atento às suas reacções, à mudança de atitude e momento (o que se passou) em que ela ocorre, para poder dar ao veterinário/especialista em comportamento/treinador o maior número de informação possível. Só assim eles poderão determinar o problema e a sua causa e, consequentemente, recomendar a forma de o resolver.

Miguel Godinho defende que «quase todas as patologias do cão – diria oito em cada dez situações –, se conseguem resolver pelo treino, sem recurso a qualquer medicação». Gonçalo Pereira diz que também só recorre a medicação em casos de absoluta necessidade. «O uso de psicofármacos não resolve o problema mas, por vezes, ajuda o animal a responder melhor à terapêutica comportamental».

Na “agressividade” (por conflito social) do cão, o animal «não sabe qual é o seu lugar na hierarquia», diz Gonçalo Pereira, exemplificando: «umas vezes o dono deixa-o subir para o sofá e noutras não. O cão não percebe a ambiguidade, tudo tem de ser muito claro, principalmente as regras básicas de se comportar em sociedade».
Outros tipos de agressividade – por dominância ou por medo – podem, normalmente, resolver-se com treino de obediência básica.

O treinador Miguel Godinho diz que já teve muito bons resultados em casos de ansiedade por separação também através de treino, embora um “treino” um pouco diferente. «Recomendo que o dono, por exemplo ao fim-de-semana de manhã, entre e saia inúmeras vezes de casa, umas levando o casaco e mala como faz habitualmente para ir trabalhar e outras não. Ficando ausente por períodos diferentes e voltando sempre sem dizer nada ao seu cão. Ao fim de alguns fins-de-semana, o animal começa a perder a ansiedade porque percebe que o dono sai mas volta sempre».

Para evitar esta patologia, quando o animal é cachorro, Miguel Godinho sugere um “treino” idêntico mas que não implica logo sair de casa. «Quando está a ver televisão, por exemplo, pode colocar o cachorro e a sua cama dentro de um parque para crianças e colocá-lo numa outra divisão da casa e ir aumentando progressivamente, dia-a-dia, o período dessa “ausência”, para o animal se habituar a estar na casa sem ver o dono. Podendo também fazer o “treino” de sair e entrar algumas vezes até ele perceber que o dono vai sempre voltar».

Assim, para resolver a maioria das patologias do foro comportamental que os animais de companhia apresentam hoje em dia, a mudança de comportamento tem de ser, primordialmente, dos humanos.

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