Apesar da maior sensibilização dos tutores de animais de companhia, da maior informação dos profissionais que os acompanham e da maior oferta formativa, ainda não é suficiente. Em algumas subáreas existem lacunas ao nível da cobertura nacional. Mas este não é um problema exclusivamente português. Por esse motivo, o ano de 2017 ficou marcado pela publicação das primeiras guidelines mundiais para melhoria da prática da Medicina Dentária Veterinária.
A especialidade de Odontologia Veterinária tem vindo a crescer e a evoluir tecnicamente. É o que defende a médica veterinária e cirurgiã dentista na Odontovet, em São Paulo, no Brasil, Michèle Venturini. “Temos cada vez mais médicos veterinários interessados na área que procuram cursos de especialização e de aperfeiçoamento. Também vemos mais tutores de cães, gatos, roedores e lagomorfos pets a preocupar-se mais com a saúde oral de seus pets”. No Brasil há um grande empenho por parte da Associação Brasileira de Odontologia Veterinária em promover palestras online (webinars) para associados, o que permite divulgar e aprimorar a especialidade.
Carlos Viegas, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Estomatológico-Dentária Veterinária e Experimental (SPMEDVE) acrescenta que, em Portugal, a especialidade iniciou-se com a constituição de um serviço de medicina estomatológico-dentária na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) ainda nos anos 90, a que se seguiu, mais tarde, a oferta de uma unidade curricular optativa e a realização de trabalhos de investigação em áreas emergentes da Medicina Dentária, como a Genómica Clínica e a Medicina Regenerativa, envolvendo médicos dentistas, geneticistas, engenheiros de materiais, entre outros. “Vários outros colegas foram fazendo formação nacional e sobretudo internacional, dispondo hoje o país, na área da medicina de animais de companhia, de mais massa crítica nesta área do conhecimento, não sendo ainda suficiente em todas as subáreas para a cobertura total do país”, destaca o também professor auxiliar com agregação da UTAD.
Nos casos clínicos que Michèle Venturini acompanha diariamente, as radiografias digitais de todos os dentes dos pacientes para descobrir alterações que não são fáceis de diagnosticar, do ponto de vista clínico, são já uma rotina. “Não é que este seja um tratamento inovador, mas é uma mudança de comportamento. O mais interessante é que esta conduta proporciona uma Odontologia de maior qualidade, pelo simples facto de melhorarmos o nosso diagnóstico”, assinala.
Na área da periodontia, a cirurgiã brasileira destaca as técnicas avançadas que têm vindo a ser usadas na tentativa de manter um ou mais dentes na cavidade oral e com a adequada saúde. “Nos casos de agenesia dental, os implantes têm vindo a ser mais usados em cães de grande porte. Nas fraturas dentais com exposição pulpar, a instrumentação rotatória já é rotina e o tratamento de canal tem sido cada vez mais aceite pelos tutores. Os casos de Ortodontia também têm aumentado”, revela Michèle Venturini.
Apesar dos avanços, a médica veterinária revela aquilo a que gostaria de assistir no futuro, tanto ao nível de produtos que permitiriam melhores abordagens para determinadas alterações, como de exames complementares de diagnóstico. “O acesso a diversos produtos para a Odontologia Veterinária, facilmente encontrados no mercado americano, por exemplo, é limitado. O mercado brasileiro é pequeno a esse nível.” Michèle Venturini gostaria que a radiografia de crânio fosse substituída pela tomografia de feixe cónico. “A tomografia computadorizada convencional já é uma realidade na rotina odontológica, principalmente nos casos de neoplasias orais, porém a radiografia de crânio ainda é muito usada. Substituí-la pela tomografia de feixe cónico seria um grande avanço”, explica. A médio prazo gostaria que a Odontologia Veterinária se baseasse mais em profilaxia do que em tratamentos através da extração de dentes.
O destaque de Carlos Viegas vai para o maior conhecimento da especialidade e a maior sensibilização dos tutores. “Considero que os colegas, em geral, estão mais informados e alertados para aconselhar os tutores para a importância da saúde oral. Estes, por sua vez, conseguem compreender melhor a mensagem transmitida e geralmente acedem a realizar os tratamentos, mesmo em regiões economicamente menos favorecidas como é o caso daquela onde trabalho”, explica o presidente da SPMEDVE. É com agrado que tem assistido a uma grande valorização desta área no nosso país.
Ainda que não se possa comparar a realidade brasileira, sobretudo pela dimensão do país quando equiparada a Portugal, a cirurgiã brasileira considera que a situação está longe de ser a ideal. “Temos centros urbanos maiores que tendem a ter uma maior consciencialização da importância dos cuidados orais, mas que ainda está aquém do ideal. Com o acesso facilitado à informação, através da internet, os proprietários chegam ao consultório melhor preparados e conseguem compreender melhor o que vamos explicar, orientar e indicar como é o tratamento. São pessoas que não se espantam quando sugerimos o tratamento de canal para um dente fraturado com exposição pulpar, como acontecia quando começámos a trabalhar nesta área”.
Há espaço para a formação?
Na Odontovet, a preocupação dos profissionais vai no sentido de prestar um atendimento cada vez melhor. No último ano, a clínica aumentou a equipa contratando médicos veterinários com especialidade em Odontologia. “Hoje somos cinco profissionais que atendem exclusivamente nesta área. Além disso temos utilizado a terapia fotodinâmica em vários dos nossos pacientes para ajudar à recuperação do tecido ulcerado, inflamado. Temos indicado a rinoplastia para os nossos pacientes braquicefálicos jovens que apresentam atresia das narinas”, explica Michèle Venturini.
Os médicos veterinários generalistas podem identificar os problemas e geri-los até ao momento em que possam eventualmente necessitar de apoio mais especializado. “Nesse caso devem referenciar para os centros que disponham destas valências”, explica Carlos Viegas. Na UTAD, ao nível da formação obrigatória “nas unidades curriculares tronculares abordam-se as doenças inflamatórias do cão e do gato (doença periodontal, doença paradental, complexo gengivite-estomatite) e as neoplasias da cavidade oral”, sublinha. Na unidade curricular optativa, a formação é estendida a outras espécies, nomeadamente cavalos e exóticos, assim como se alarga o leque de temáticas, ao que os animais de companhia diz respeito, como por exemplo endodontia, ortodontia, exodontia, entre outros. E apesar de considerar que a formação é suficiente na Europa, Carlos Viegas considera que “Portugal ainda não dispõe de formação suficiente em todas as subáreas. Ainda assim, a área tem tendência para um crescimento exponencial, até porque com a saída de cada vez mais graduados dos vários cursos é certo que alguns optarão por realizar formação pós-graduada nesta especialidade”.
Uma equipa multidisciplinar na UTAD
João Requicha, docente convidado da UTAD, a realizar serviço de Medicina Dentária, em particular, no norte do país, diz-nos que, a cada ano que passa, tem observado um crescente interesse dos colegas portugueses em procurar formação pós-graduada, com vista a responder à procura dos clientes por novas respostas terapêuticas. “Em alguns casos são os tutores a questionar o médico veterinário acerca de tratamentos endodônticos ou ortodônticos ou até sobre a avaliação da patologia dentária e periodontal por radiologia intraoral”, explica. Quanto à referenciação para os médicos generalistas com esta área de interesse, o professor considera que os mesmos “têm a consciência de que determinadas doenças dentárias, como as fraturas dentárias ou defeitos de esmalte, podem ser alvo de tratamentos endodônticos ou de reconstrução, preservando a peça dentária e mantendo a função e a estética”.
Existe na UTAD uma equipa multidisciplinar (médico-cirúrgica, histopatologia, imunologia, genómica médica) que pretende contribuir para o conhecimento de doenças como a periodontite canina ou o complexo gengivite-faringite felino (CGEF). A colaboração com o laboratório de investigação 3B’s, da Universidade do Minho (a que Carlos Viegas e João Requicha estão associados) e uma empresa, a Vetherapy [da área dos biomateriais e das células estaminais] “tem promovido a investigação clínica e desenvolvimento de novas abordagens de Medicina Regenerativa com aplicação, por exemplo, na regeneração óssea e periodontal ou na imunomodulação de casos refratários de CEGF (complexo gengivite-estomatite felino).”
No que respeita a formações extra-universitárias, João Requicha salienta as formações da Escola Europeia de Estudos Veterinários Avançados (ESAVS) e o Título Próprio de Especialista em Medicina Dentária e Cirurgia Oral da Universidad Complutense de Madrid, no qual já participou juntamente com outros colegas portugueses. “No Brasil existem pós graduações em Odontologia Veterinária da Universidade de São Paulo e o curso de especialização em Odontologia Veterinária da ANCLIVEPA. Anualmente decorre o Congresso Europeu de Medicina Dentária Veterinária (organizado pela EVDS) e o Veterinary Dental Forum (nos Estados Unidos da América)” que são bons momentos de partilha para os profissionais.
Periodicamente, e em Portugal, a SPMEDVE organiza eventos práticos em diferentes locais do país. A Sociedade realizou no ano passado, no Algarve, um curso de formação nesta área em colaboração com a Associação dos Médicos Veterinários do Algarve. “Temos em carteira um grande projeto de dinamização da sociedade, pelo que contamos com o apoio da indústria farmacêutica e da imprensa especializada”, refere o presidente, Carlos Viegas. Também os laboratórios clínicos têm vindo a apostar em ações formativas e de esclarecimento para profissionais de Medicina Veterinária (ver caixa).
João Requicha lamenta que “em Portugal poderá não ter havido ainda a tomada de consciência de que a aposta e o investimento na formação da equipa e na aquisição de equipamento poderá ser, a médio prazo, economicamente bastante rentável para determinados CAMV”.
Neste ponto, a realidade brasileira não será muito distinta. Michèle Venturini considera que o maior desafio da especialidade é consciencializar os médicos veterinários para a importância dos cuidados orais e dá exemplos concretos: “o exame clínico como rotina, a prevenção da doença periodontal (não esperar ficar pior para indicar o tratamento), indicar tratamento mesmo que o paciente seja idoso e com algum problema sistémico e encaminhar o seu paciente ao especialista, pois fazer um tratamento inadequado por falta de conhecimento mais aprofundado na área é causar uma iatrogenia no paciente”.
Em resumo, todos os entrevistados consideram que a divulgação e o destaque dado à saúde oral contribui para o bem-estar e a longevidade do paciente, bem como para a prevenção de doenças. “A maior conquista dos últimos 20 anos é o facto de um médico veterinário poder afirmar que é especializado em Odontologia Veterinária sem que isso gere espanto”, conclui a Michèle Venturini.