A vistosa pick up negra com a sigla VetLide no dorso não engana. Não estamos perante um veterinário de cidade. O veículo, robusto mas com estilo, tem camadas de pó entranhadas na pele e ruge com as solicitações do condutor. Por detrás da aparência de veículo de latifundiário, o musculado meio de transporte do médico veterinário Vasco Brito Paes revela-se uma autêntica caixinha de surpresas. Qual hospital ambulante, mas discretamente, carrega na parte traseira o precioso ganha-pão deste profissional, constituído por três enormes gavetões onde se escondem materiais tão diversos como caixas de algumas dezenas de medicamentos, linhas de sutura, agulhas, cordas (para maniatar os toiros) e… uma carabina utilizada na caça grossa. «É a única forma que temos de conseguirmos imobilizar o toiro com relativa segurança. Disparamos um dardo, que contém um cocktail anestésico, à distância que ele deixar. Passados poucos minutos o animal cai por terra e é nessa altura que o tratamos», explica Brito Paes enquanto ultima os preparativos para a cirurgia de remoção de um abcesso num toiro que está prestes a cumprir quatro anos de idade, da ganadaria de António Coimbra, localizada perto de Coruche. O momento é de alguma tensão. Enquanto o médico faz o preparado que irá sedar o bicho, os ajudantes preparam o tractor que irá fechar caminho ao animal, impedindo que saia do alcance de tiro. «Jamais podemos perder o respeito pelo toiro. A aproximação ao animal tem que ser feita muito cuidadosamente; ele não pode sentir que estamos a pisar-lhe terrenos, porque se se aperceber que o queremos tratar nunca mais o agarramos», avisa, enquanto carrega a carabina, numa “cerimónia” ritualista.
Brito Paes tem qualquer coisa de guerreiro; maneja com desenvoltura o utensílio letal que tem nas mãos, faz pontaria para o infinito. Comunica apenas quando é preciso. Perante as questões da VETERINÁRIA ACTUAL, responde com desenvoltura, mas não desperdiça palavras em vão. Os ajudantes do veterinário seguem-lhe os passos e não abrem a boca durante largos minutos. A equipa monta na carrinha que irá dar caça ao animal doente. A adrenalina começa a subir, é necessário ir abrindo e fechando as cancelas que encerram os terrenos dos touros. O veterinário vai explicando que nem sempre se faz esta delicada operação de veículo motorizado, pois quando os toiros “topam” a equipa médica, só resta esperar em cima de uma árvore até que o animal se aproxime para ser atingido com o dardo que o irá adormecer. Desta feita, não foi necessário subir a uma árvore mas, afinal, a operação não se revelou assim tão simples.
Perseguição cautelosa
Já estamos em pleno campo aberto, entregues aos caprichos da sorte. O médico descansa a arma no colo. Conduz ao mesmo tempo que começa a indagar junto dos seus ajudantes sobre a localização do bicho. «É aquele? Não, é o outro que está atrás. Vamos lá!». Dá início à perseguição, vamos no encalço da “presa” à vertiginosa velocidade de… 5km à hora. A manada de touros, livres e imponentes na sua semi-cegueira, apercebe-se da presença de humanos. Os animais olham com cara de poucos amigos, e começam a jogar ao jogo do gato e do rato. Vão afastando-se uma e outra vez. O toiro negro que tem o “alvo” no dorso afasta-se ainda mais e é seguido por um seu companheiro. Dois pássaros brancos, descarados, seguem os dois hasteados para onde quer que eles se desloquem. O médico já não tem tempo de explicar que tipo de estranhos pássaros são aqueles. Imobiliza a pick up, coloca a carabina no antebraço e dispara. «Foram 80 euros à vida!». Acontece. Brito Paes está inconsolável, irrita-se e solta alguns impropérios. O tiro saiu ao lado. O médico, meio a brincar meio a sério, atira com as culpas para cima dos jornalistas. «Foram vocês que deram azar! É o primeiro tiro que falho este ano».
Recomeço do ritual, só que aqui já não há espaço para nos sentirmos seguros, pois estamos à mercê de duas manadas de toiros. Não há para onde fugir, e a cerca é electrificada. O veterinário salta da carrinha para recarregar a arma e aconselha-nos a ficar quietos. Rapidamente, o “bicho” de metal dá início a nova perseguição. O toiro brinca com os humanos e volteia para a esquerda, para a direita, segue recto, pára, volta a arrancar. Brito Paes insulta-o – baixinho, não vá ele ouvir. De supetão, equipa e bicho estão face a face, a menos de dez metros. A carabina quer vingança. Tiro e queda. O animal acusa o toque e foge a sete pés, mas vai cair a cerca de 100 metros do local onde foi atingido.
A lei do mais forte
«O touro é animal danado que não “gosta” de ninguém», terá dito um dia José Júlio, célebre matador de touros português. Brito Paes não é tão taxativo, mas, ainda que não o saiba, dá razão ao toureiro. A manada que até há pouco tempo fazia companhia ao touro doente é agora o seu principal inimigo. O veterinário explica que há sérios riscos de a manada atacar o animal debilitado. «É uma reacção automática. Quando os toiros percebem que há um deles que está fraco, matam-no!». De facto, o grupo de “assassinos” começa a rodear o alvejado, que ainda esperneia no chão. Aquele que aparenta ser o líder do grupo, o mais forte, fica junto ao caído. Começa a baixar as hastes em sinal de ataque. O veterinário acelera a carrinha e começa a apitar. O presumível matador, a custo, afasta-se do local e vira-se para o estranho de metal. Toiro e carro estão agora frente a frente. Por momentos, teme-se o pior, ou melhor, um ataque frontal daquele amontoado de puro músculo. «Vá lá, vai-te embora…», ordena Brito Paes. O animal, por sua vez, apercebe-se que não há intenção de acosso. Altivo, vira o costado e segue o seu caminho. Não há tempo a perder. O efeito da anestesia só dura cerca de 30 minutos.
Veja a reportagem na íntegra na VETERINÁRIA ACTUAL N.º 12