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João Cannas da Silva: «Não percebo o papel da União Europeia»

O presidente da Associação Portuguesa de Buiatria, professor associado da Escola Universitária de Vasco da Gama (Coimbra) e membro de diversas organizações internacionais, defende que as erradas prioridades das políticas agrícolas nacionais acabarão por hipotecar o futuro de Portugal; sublinhado que urge reunir os melhores técnicos portugueses para negociar a posição do sector primário português em Bruxelas, o qual está a ser afectado por um «desinvestimento brutal».

VETERINÁRIA ACTUALQuais os objectivos da Associação Portuguesa de Buiatria (APB)?
Cannas da Silva – Os nossos objectivos assentaram na necessidade de promover a formação contínua dos médicos veterinários e a elaboração de um congresso anual que congregasse as jornadas dedicadas aos bovinos, trazendo para o centro da discussão os temas de maior actualidade na área.

Estão satisfeitos com os resultados que já foram alcançados?
– Estamos extremamente satisfeitos. Já recebemos o reconhecimento internacional da Associação Mundial de Buiatria – da qual eu faço parte como membro do comité executivo – e, por outro lado, conseguimos um feito, pelo qual já lutávamos há oito anos, para a buitaria portuguesa: conseguimos trazer para Portugal o Congresso Mundial de Buaitria, que era para ter sido realizado em 2008, mas, por pedido expresso dos colegas húngaros, retirámos a nossa candidatura. De resto, as regras internacionais ditam que não se podem realizar dois congressos seguidos no mesmo continente. O próximo congresso será no Chile, e em 2012 teremos, finalmente, o congresso mundial em Portugal. É uma oportunidade única para que o nosso país possa demonstrar as suas capacidades organizativas, sendo os nossos objectivos bastante elevados, porque Lisboa já é considerada como uma das cidades mais importantes na organização deste tipo de eventos; o turismo da capital tem muito para oferecer e nós não queremos defraudar as expectativas. A organização do evento já está a trabalhar para corresponder àquilo que nos é pedido: o comité científico está a trabalhar, estamos a ultimar o nosso site, etc… A APB quer trazer até Portugal cerca de 3500 pessoas. Se o conseguirmos, será o maior congresso de buiatria de todos os tempos.

 

Quais as vantagens deste congresso em relação aos dos outros países?
– Creio que são várias. Vamos organizar vários “congressos” dentro do mesmo evento, nomeadamente o congresso dos países de língua oficial portuguesa, o congresso ibérico de buaitria, o congresso do Colégio de Especialistas de Bovinos… Ou seja, teremos três congressos dentro do mesmo certame, com o objectivo de reunir o maior número de pessoas possível. Apesar de sermos uma associação que não é rica, nem tão-pouco contou com apoio institucional de qualquer espécie (sobrevivemos com o apoio da Indústria Farmacêutica), temos tido uma assistência muito boa no nosso congresso anual, e que tem sido muito participativa.

O congresso mundial será o ponto alto da vida da APB?
– Será uma das etapas. Em 48 anos da existência da Associação Mundial de Buiatria (que conta com 44 países associados), só dois países repetiram a organização do congresso mundial. De facto, trazer para Portugal esse evento é um feito único que resulta do esforço de uma direcção muito activa. Sublinho que a direcção é muito jovem, pois, por decisão geral, decidimos levar a cabo uma filosofia que dê continuidade ao projecto, porque as associações servem para o futuro, servem para puxar para cima a dignificação da profissão a todos os níveis, isto é, dar protagonismo aos jovens, para que continuem o objectivo primordial da APB: ajudar a formar bons veterinários, que possam competir em qualquer parte do mundo.

 

Há uma tentativa de renovação dos quadros da vossa associação?
– Essa reformulação já foi feita, pois os jovens já estão dentro da direcção da APB. O comité executivo é extremamente jovem, há a preocupação de ir buscar jovens com capacidades já demonstradas, porque a realização do congresso mundial requer muito trabalho. Acresce ainda que esta direcção já está a laborar na promoção do próximo congresso mundial (no Chile), relembrando a necessidade de participar neste evento, mas também na elaboração do nosso congresso. Já fizemos o nosso logótipo (onde sobressai o Padrão dos Descobrimentos com calçada portuguesa) para lembrar o papel pioneiro dos portugueses no mundo. Lembramos aos congressistas que Portugal já descobriu alguma coisa e apelamos para que os participantes venham, também, descobrir alguma coisa nova na Buiatria.

Acha que ainda é possível descobrir algo de novo na Buiatria? Crê que os especialistas portugueses estejam na vanguarda desta especialidade?
– Nós, portugueses, temos o defeito de sermos demasiadamente humildes. Só falamos das coisas quando estas nos correm mal… Só para dar um exemplo: conheço um alpinista (João Garcia) que escalou o Evarest e só se falou dele quando não o conseguiu. É uma pessoa extremamente interessante, com quem falei durante várias horas e que me contou que só tinha ficado conhecido quando falhou a conquista da referida montanha. Agora, que já conseguiu o feito de ser um dos poucos alpinistas mundiais a conseguir subir as principais montanhas do mundo, já ninguém fala dele. Os portugueses ficam contentes com os fracassos dos outros…

 

A pecuária, em Portugal, teve um desenvolvimento muito grande, apesar de todas as dificuldades inerentes a sermos um país periférico, onde houve um desinvestimento brutal na agricultura, de estarmos dependentes da compra de cereais ao exterior, de estarmos dependentes de uma nova modalidade chamada biodiesel – sou totalmente contra, porque fez disparar o preço dos alimentos para os animais e ainda para alimentação das pessoas mais pobres, e as chamadas refeições baratas vão acabar. Para além disso, não vai haver redução nas emissões de CO2 que justifique a massificação destes cultivos, mas vão haver, sim, extensões gigantescas de produções de material para biodiesel, quando se podiam cultivar plantações que iriam alimentar quem realmente precisa: o Homem e os animais.

Diria então que, em nome da suposta sustentabilidade do Planeta, se está a cometer um terrível atentado contra a sobrevivência imediata do próprio Homem?
– Esta estratégia não faz qualquer sentido! Há grandes especulações. É evidente que a poluição irá aumentar, porque serão necessários mais pesticidas, irá haver maior escassez de água (o cultivo intensivo de “alimento” para o biodiesel irá consumir grandes recursos de água). Isto é, criar-se-á um ciclo extremamente vicioso que não irá resolver nenhum dos actuais problemas do mundo. Acredito nas energias realmente alternativas. Sou um defensor da poupança do abate de árvores, sou a favor da racionalização do papel, defendo a utilização massiva da energia eólica, creio que os portugueses devem aproveitar a fantástica costa para produzir energia (através das ondas), acho que as iniciativas de promoção da energia produzida através de células fotovoltaicas são fantásticas, embora ainda não existam apoios suficientes neste campo. Em suma, creio que se deve apostar na produção de energias alternativas para produção de mais alimento para os animais com um preço de custo mais baixo, não estando tão dependentes das flutuações dos mercados mundiais. Sou um defensor do chamado mercado global, mas onde os países concorram de igual para igual. Não posso aceitar que se possa concorrer no referido mercado contra países enormes ou onde os ordenados sejam de dois euros diários com outros em que os vencimentos sejam de dois mil euros mensais, dado que é evidente que os países onde se ganha menos podem lançar preços muito mais baratos. Defendo uma globalização onde se concorram com os mesmos padrões de qualidade e onde exista respeito pelas pessoas.

 

Actualmente, quais são os principais problemas da buaitria?
– Em Portugal, há vários problemas: falta de mão-de-obra especializada e falta de formação profissional, e ainda as dificuldades monetárias para cumprir as normas ambientais; é bom que se exija respeitar o meio ambiente, mas as autoridades devem apoiar os produtores, porque grande parte deles não tem dinheiro para levar a cabo planos que são impostos de forma coerciva e que não lhes permitem rentabilizar as suas explorações. Por outro lado, há o problema da falta de competitividade do sector leiteiro, que está a originar um visível fenómeno de monopólio, que tem prejudicado fortemente o próprio sector e que tem provocado a situação de alguns agricultores estarem a vender o seu leite em Espanha.

Esta especialidade da Medicina Veterinária continua a ser atractiva para os jovens médicos, tendo em conta que a produção animal portuguesa tem tendência a sofrer forte redução?
– Não acredito que esta área acabe. No entanto, há uma série de erros estratégicos e políticos que têm prejudicado o sector. Como técnico e responsável que está ligado a várias organizações internacionais, tenho constatado que a produção leiteira primária tem de ser vista como um todo. Existe a indústria dos cereais, os médicos veterinários, os serralheiros, os electricistas, etc…, que trabalham nas explorações. Ou seja, é um erro estratégico crasso ver a agropecuária como uma unidade isolada. Por outro lado, o desinvestimento no sector primário é provavelmente o maior erro que pode acontecer. Um país que não seja capaz de ser auto-suficiente, de produzir para ele próprio, cai num erro político gravíssimo, que vai afectar as gerações futuras. Como é sabido, as alterações climatéricas mundiais trouxeram, por exemplo, graves problemas às culturas de soja na Ásia e Estados Unidos da América, onde alguns campos ficaram completamente destruídos, e cuja consequência imediata ditou a subida drástica do preço da soja e do milho. Se nós (portugueses) não formos capazes de produzir aquilo que consumimos – é triste que, ao fim destes anos todos de pertença à União Europeia, não tenhamos acautelado o nosso futuro -, vamos cair numa espiral bastante negativa, porque importamos mais do que aquilo que produzimos. Será que realmente estamos a aplicar bem os fundos da UE? Será que estamos a aplicar os investimentos onde devíamos? Será que estamos a apoiar os jovens agricultores que querem, de facto, fazer vida da sua actividade?

Pode responder à sua própria retórica?
– Os jovens agricultores devem ser ensinados, nomeadamente na produção e gestão da sua exploração agro-pecuária, que tem de ser vista como uma empresa, como uma unidade de produção que tem de respeitar as regras do bem-estar animal, as regras do mercado, a qualidade do produto que chegará ao consumidor. Se não o fizer, não tem qualquer hipótese de sobreviver.

De qualquer maneira, a impressão dada pelo Sr. ministro da Agricultura aponta para o crescimento da produção, uma vez que as importações de vacas estão paradas, devido à escassez provocada pela doença da língua azul. Neste momento, o preço das vacas em França, por exemplo, subiu dos 1200 euros para os 2400 (o dobro), sendo impossível aumentar o efectivo nacional, que só cobre 25% das necessidades.

Acha que a União Europeia tem sido um bom parceiro dos agricultores portugueses?
– Para ser sincero, às vezes não percebo bem qual é o papel da UE. Neste momento, tenho tentado perceber o papel das diversas comissões especializadas e não vejo muito sentido em muitas das suas decisões. Apesar de nada ter contra os políticos, não creio que sejam estes actores a decidir sobre as medidas que devem ser tomadas pelos técnicos. Um dos grandes problemas da Comunidade Europeia tem a ver com o desleixo dos aspectos técnicos, o que provocou a entrega de bandeja das decisões mais importantes a países terceiros, ou seja, ficámos dependentes de países terceiros. Esta situação é extremamente grave, é uma tragédia!

O gado português pode bater-se com os produtores de países mais desenvolvidos da UE como a Holanda, entre outros?
– Se falarmos em grandes produtores, os holandeses são extremamente profissionais. Contudo, há produções portuguesas de alta qualidade que podem competir com qualquer concorrência estrangeira. Temos explorações muitíssimo boas, mas temos falta de (in)formação em alguns criadores.

Defende que os produtores devem ter mais conhecimentos de gestão de empresas?
– É fundamental. Têm de saber gerir as suas empresas. De resto, os médicos veterinários também têm de perceber, de uma vez por todas, que a profilaxia é o futuro. Ajudar o produtor a ganhar dinheiro é o nosso objectivo primário. Já passou o tempo da ideia em que o veterinário só servia para tratar. A nossa actividade não tem nada a ver com os animais de companhia, onde existe uma ligação sentimental entre animal e o dono, porque o nosso trabalho deve potenciar a optimização dos recursos, no sentido de pôr o produtor a ganhar dinheiro, uma vez que este só poderá pagar ao veterinário se rentabilizar o seu negócio.

Os veterinários devem incentivar um ciclo positivo dentro das explorações?
– Efectivamente. Devemos funcionar, cada vez mais, como um manager do produtor; devemos caminhar lado a lado com produtor, ensinando-o a trabalhar, a identificar e a resolver os problemas. Ou seja, devemos potenciar a redução de custos, através da redução de doenças (com mais profilaxia), e consequente aumento dos ganhos.
Os consumidores portugueses aderiram ao consumo massivo de carnes da América do Sul (Brasil e Argentina) que é vendida como sendo a “melhor” do mundo. O que é que esta carne tem de melhor do que, por exemplo, a carne barrosã? Não tem nada! Isso é uma questão de concorrência. Nós (europeus, e particularmente os portugueses) competimos de forma perfeitamente desleal. Ainda recentemente defendi essa ideia num congresso em França. Não é por acaso que recentemente a carne brasileira esteve proibida na Europa. A UE tem regras muito específicas na utilização de medicamentos, ao contrário dos países da América do Sul ou da Ásia, onde se utilizam fármacos que não são utilizados na Europa.

A carne da Pampa Argentina é superior à barrosã?
– Não. A barrosã é uma carne de excelente qualidade; sou um verdadeiro apreciador.

Mas o preço da carne portuguesa de qualidade é superior?
– É evidente! Os custos de produção portuguesa são mais elevados. Por outro lado, o bem-estar animal e as restrições à utilização de medicamentos na produção animal na Europa são muito mais elevados do que nesses países e vão encarecer todo o processo produtivo.

APB disposta a “ajudar” Governo

Em apreciação às políticas de agricultura levadas a cabo pelo actual Governo, Cannas da Silva remete-se para comentários «mais globais», evitando criticar directamente as decisões do ministro Jaime Silva. O médico opta antes por enaltecer o papel «extremamente positivo» da Direcção-Geral de Veterinária (DGV), que «teve a coragem de pôr nos eixos um sector que não andava nos eixos», assume.

«A DGV está, finalmente, a começar a assumir um papel de liderança e de verticalização do sistema. A actual equipa que está na DGV trabalha muitíssimo bem, mas, neste momento, é muito difícil impor decisões em negociações em Bruxelas, porque entraram para a UE uma série de países da Europa Central que ganharam peso no seio deste organismo. Isto é, o eixo das decisões alterou-se significativamente em favor de países como a Polónia, República Checa, entre outros, que estão “associados” a nações poderosas do Norte, como a Alemanha e a França. Antigamente, os países mediterrânicos ainda tinham algum peso na UE, mas perderam capacidade negocial».
A referida conjugação de factores, segundo Cannas da Silva, estará na génese das dificuldades sentidas pelo sector da agro-pecuária português. «Somos um país pequeno e marcadamente periférico, que está a sentir grandes dificuldades em exportar produtos, como, por exemplo, maçãs, porque estamos longe do Centro da Europa e as nossas exportações saem a um preço muito mais elevado».

Após insistência da VETERINÁRIA ACTUAL, o presidente da APB, acedeu a comentar a actuação do líder da tutela. Cannas da Silva não vê nada de negativo nas acusações que a Oposição tem vindo a fazer ao ministro da tutela. «Os tecnocratas são necessários e fundamentais para defender as posições nacionais na UE, embora seja cada vez mais difícil lutar neste campo», sublinha.

Mais importante ainda, reitera, é o Governo «perceber que devia reunir um conjunto de pessoas com conhecimentos técnicos que pudessem dialogar frontalmente com os seus interlocutores estrangeiros. Nós (APB), por exemplo, ainda não fomos consultados em nenhuma matéria da nossa área, quando é sabido que faríamos esse aconselhamento técnico gratuitamente e de forma voluntária, com vista a estabelecer negociações em Bruxelas. A nossa Ordem está com problemas muito complicados e não há ninguém que consiga ganhar a força de que os veterinários necessitam para se imporem face ao futuro». Mais, é «imprescindível» que os tecnocratas/políticos percebam que devem dialogar com quem realmente sabe da matéria, para poder trazer resultados positivos para o país; em derradeira análise, para não se hipotecar «ainda mais» o futuro do outrora importante sector primário nacional, conclui.

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