Qual a sua área de especialidade e porque escolheu essa área?
Sou Diplomado pelo Colégio Europeu de Anestesia e Analgesia Veterinária (ECVAA) e Especialista Europeu na mesma área. Escolhi esta área da medicina veterinária porque, em determinado ponto do meu percurso profissional, estava integrado na equipa de cirurgia de animais de companhia de um dos hospitais veterinários universitários em Portugal. Na altura, apesar do suporte prestado pelos docentes da área, não havia nenhum outro clínico que pudesse dar um apoio contínuo nesta área ao longo do dia. Ou seja, inicialmente o meu contacto com a anestesiologia surgiu por necessidade, dado que o meu principal interesse era a cirurgia de tecidos moles. À medida que fui explorando a área fui aumentando a minha sensibilidade para a necessidade de minorar a dor. Neste período apercebi-me que a anestesiologia tem uma grande componente de medicina interna e fisiologia, uma vez que temos de saber como contornar / controlar os efeitos de várias patologias. Como são áreas que sempre me suscitaram curiosidade, acabou por ser uma progressão natural.
Como surgiu a oportunidade de ir trabalhar para o estrangeiro? Onde trabalha neste momento?
Esta é a segunda vez que me aventurei a trabalhar fora de Portugal. A primeira foi quando fiz a residência, em 2008. Tinha chegado ao limite do que poderia aprender sozinho (em tempo útil) e decidi que o melhor seria procurar um programa em que encontrasse apoio e conhecimento de outras pessoas que me pudesse ajudar a progredir. Quis a sorte que logo à primeira consideraram que era um candidato adequado e assim começou a saga. Quando terminei voltei a Portugal durante alguns anos, mas surgiu o convite de um dos meus antigos supervisores para integrar de novo a equipa do hospital onde fiz a residência. Consequentemente, neste momento trabalho no Royal Veterinary College, perto de Londres, principalmente no hospital de referência de animais de companhia, o Queen Mother Hospital for Animals (QMHA).
O que o fez tomar a decisão de ir para fora de Portugal?
Quando a perspectiva é ingressar num dos maiores hospitais veterinários de referência da Europa, de uma instituição de ensino que foi recentemente considerada a melhor da Europa e terceira no Mundo, a questão que tinha de colocar era se haveriam motivos para ficar em Portugal.
Quais as diferenças que encontra entre os métodos de trabalho nos dois países? Ou seja, como é um dia de trabalho normal?
Um dia de trabalho normal inicia-se às 8h00 e pode ser uma altura com uma actividade bastante intensa, uma vez que temos de preparar todo o equipamento para os casos do dia. Além disso, muitas vezes surgem emergências que não estavam presentes na lista e, como tal, não foram discutidas na ronda do dia anterior, pelo que temos que fazer a avaliação do caso, coordenar com os casos de rotina e garantir que podemos fazer tudo da forma mais segura para o animal. Temos uma casuística muito vasta, apoiando em termos de anestesias gerais os serviços de neurologia, oftalmologia, cardiologia, medicina interna, cirurgia de tecidos moles e ortopédica. Ocasionalmente é-nos também requisitada assistência para sedações e maneio de dor crónica pelo serviço de oncologia, por exemplo, pelo que é difícil de classificar um dia normal! É bastante comum termos 7 / 8 procedimentos a acontecer ao mesmo tempo!
Temos o privilégio de integrar uma equipa que faz procedimentos quase exclusivos na medicina veterinária, tal como hipofisectomias e bypass cardíaco, o que pode ser muito desafiante, mas simultaneamente recompensador. Para complicar a definição de dia normal, prestamos um apoio contínuo ao hospital de referência de equinos e, quando necessário, ao serviço de animais exóticos. O dia de trabalho acaba quando todos os casos estão terminados, geralmente por volta das 18h00, mas nunca se sabe. Neste momento é raro que acompanhe um procedimento anestésico do início ao fim, tendo tomado uma posição principalmente de supervisão e suporte aos residentes, internos e alunos, mas a responsabilidade acaba por ser minha, pelo que o peso nos ombros pode ser significativo.
Seria injusto da minha parte estar a comparar directamente o método de trabalho que tenho aqui com o que tinha em Portugal. Do meu conhecimento, ainda não existe em Portugal uma estrutura com a dimensão e recursos do QMHA, a funcionar exclusivamente como centro de referência. Como exemplo, devido a casuística anestésica mais reduzida em Portugal, tinha necessariamente de me envolver noutras áreas como a cirurgia e imagiologia – o que não é necessáriamente mau, porque me tornou mais polivalente – mas que não se adequavam a 100% com os meus planos. Além disso, no Reino Unido o número de animais com seguro de saúde é bastante mais elevado que em Portugal, o que obviamente torna mais fácil a realização de procedimentos mais avançados de uma forma rotineira.
Como é viver fora de Portugal? Conseguiu adaptar-se bem?
Não tenho grandes queixas em relação a viver no Reino Unido. Há algumas diferenças no modo de estar das pessoas em geral, mas não deixa de ser uma sociedade ocidental e, como tal, o choque não é muito significativo. Além disso vivo na área de Londres, que pelo multiculturalismo permite quase todas as formas de estar e viver imaginárias e é fácil encontrar um nicho confortável. Como se diz por cá, “Home is where the heart is” e o meu está definitivamente com eles!
Quais os seus planos para o futuro?
Continuar a evoluir dentro da minha área de trabalho, porque o caminho nunca está terminado; há sempre um fármaco novo a entrar no mercado, uma técnica nova ou a refinar, um tipo de caso que nunca fiz. Espero poder ajudar a aumentar a sensibilidade dos colegas para a importância da anestesia e analgesia de qualidade para o bem-estar animal em geral. Houve uma altura em que pensei que, depois de terminar o processo de especialidade em anestesia, me dedicaria de novo à cirurgia, fazendo uma residência também nesta área. Nunca se deve dizer nunca, mas vejo agora que é um investimento a nível pessoal que me custaria muito… Além disso começo agora a desconfiar que há uma idade ideal para embarcar nestas aventuras e já a ultrapassei!
Equaciona voltar a Portugal? Se sim qual o trabalho/projeto gostaria de desenvolver?
Não digo que seja impossível voltar a trabalhar em Portugal, mas não está nos meus planos, pelo menos a médio prazo. A meu ver ainda não existe um mercado de trabalho nacional que se adeque à presença de um diplomado na minha área. Não tenho dúvidas que venha a acontecer e serão cada vez mais os colegas e clientes a reconhecer essa necessidade. Um dos problemas será com certeza a situação económica atual do país porque, quer queiramos ou não, o tipo de procedimentos que exigem alguém com esta formação serão necessariamente bastante dispendiosos, sendo raras as pessoas que o podem e querem comportar. Claro que elas existem, mas não há uma centralização de casos suficiente para que seja um modelo de negócio sustentável. Acredito que, com o desenvolvimento de estruturas exclusivamente de referência, isso virá a acontecer, mas vai demorar algum tempo.
Que conselhos dá aos recém-licenciados em medicina veterinária que estão a ter dificuldades em ingressar no mercado de trabalho?
Esta questão é algo complicada porque tive a sorte de entrar no mercado de trabalho quando ainda se encontrava emprego de uma forma relativamente fácil. Ou seja, falo de barriga cheia. Uma coisa que acho que posso dizer é que não devem ter medo de aceitar um emprego que não se enquadre perfeitamente nas expectativas. Eu sei que é frustrante ter um ordenado que não é justo para alguém com a responsabilidade de um veterinário, ou estar sozinho num consultório sem hipótese de aprender com alguém com mais experiência, mas a verdade é que para melhor podemos sempre mudar e nada impede que continuem à procura do emprego perfeito. Foi esta perspectiva que me levou a mudar de emprego umas seis vezes nos últimos dez anos e felizmente correu bem. Além disso, a experiência acumulada em princípio ajuda na selecção para o próximo emprego.
Como vê o estado atual da medicina veterinária em Portugal e no mundo?
Em relação à medicina veterinária no mundo é-me difícil expressar uma opinião porque só tenho um conhecimento razoável do que se passa na Europa e EUA, onde creio existirem os meios para tratar os nossos animais de uma forma muito próxima ao que se faz em medicina humana, sem esquecer o importante trabalho que se faz para manter a saúde pública e os esforços para que exista um tratamento digno dos animais de produção. A minha percepção em relação ao resto do mundo é que há regiões em que, por razões culturais e / ou económicas ainda há muito a desejar. Em relação a Portugal acho que infelizmente está a existir uma saturação do mercado de trabalho que, mais cedo ou mais tarde, vai ter consequências graves tanto para os veterinários, como para os animais. Pelo lado positivo noto que está a haver cada vez mais uma cultura de referência de casos; o reconhecimento das limitações individuais quer em termos de conhecimentos específicos, ou equipamento é louvável e só pode levar a que os animais tenham um acompanhamento médico cada vez melhor.
Tenho também acompanhado (admitidamente de longe) o processo de instauração do título de especialista em Portugal o que me parece positivo, dado que há muitos colegas em Portugal merecedores de um reconhecimento dos seus esforços em determinadas áreas e, em último caso, creio ser um factor que vai também ajudar a legitimar as referências. Acho algo infeliz a aplicação do termo “especialista” porque vai criar equívocos em relação ao que é um Especialista Europeu ou da OMV, que a meu ver terão exigências e papéis diferentes. De qualquer modo, sendo um processo justo, transparente e exigente, com certeza só poderá trazer benefícios para a comunidade veterinária Portuguesa.
Qual o seu sonho?
Além do clichê de desejar que todas as pessoas se entendessem e tivessem uma existência digna, a nível mais pessoal gostava de vir a atingir um equilíbrio saudável entre a vida profissional e pessoal, de modo a poder acompanhar a minha família da forma como merece. Também gostava de ter uma carreira paralela como piloto de automóveis, por isso se conhecerem alguém disposto a contratar um veterinário sem experiência na área e provavelmente sem qualquer talento, por favor entrem em contacto comigo.
Nota: Entrevista publicada na Veterinária Atual nº 86/Setembro 2015