VETERINÁRIA ACTUAL – Fale-nos dos projectos que considere serem mais importantes para o SNMV?
Edmundo Pires – Aproveito a ocasião para falar da CODIVET (Cooperativa de Distribuição de Produtos Veterinários), porque há muitos colegas que não percebem por que razão o sindicato ajudou a fundar uma associação de profissionais do patronato. Tudo surgiu com o desenvolvimento do SIRA (Sistema de Identificação e Recuperação Animal), lançado com a apoio da Merial e, posteriormente, com mais sete distribuidores de microchips – o sindicato não vende microchips, é antes o gestor da base de dados SIRA. Com este dinheiro, que foi angariado pelos médicos veterinários que trabalham em regime liberal, pois são eles que fazem a “microchipagem”, foi constituído um fundo (de alguns milhares de euros) que, em bom rigor, pertencia aos veterinários liberais, mas se o fossemos distribuir por eles, dava para fazer uma viagem ao Brasil e gastava-se o dinheiro. Como é comum falar-se em actividades sustentáveis e auto-sustentáveis, lembrámo-nos de, à semelhança daquilo que se faz em muitos países e depois de visitarmos várias cooperativas em França, Alemanha, etc…, os médicos veterinários formarem cooperativas exclusivamente veterinárias, em que têm uma cadeia de valor, retirando mais-valias da comercialização de medicamentos que não se podem vender nas clínicas veterinárias. Para além disso, os médicos, ao invés de estarem sujeitos à legítima propaganda da Indústria, passam a estar fora destes planos. Fizemos um inquérito a 700 médicos veterinários, sendo que recebemos cerca 380 respostas, as quais apontavam no sentido de avançarmos com este projecto. Há cerca de quatro anos começámos a gizar a constituição da cooperativa (CODIVET), que já está a funcionar há cerca de três, estando a facturar mais de 300 milhões “e picos” de euros, um valor que não anda por aí além…
– Quantos associados fazem parte da cooperativa?
– São 174 cooperantes, um valor que fica aquém daquilo que esperávamos, mas que pode ser justificado pela feminização da profissão, uma vez que as senhoras são muito mais prudentes a comprar. Contudo, nas clínicas de animais de companhia, que é onde a cooperativa mais actua, as mulheres, depois de aderirem à causa, convertem-se nas suas mais acérrimas defensoras.
Na origem da constituição da cooperativa esteve a ideia perfeitamente legítima de dar “o seu a seu dono”, ou seja, dar o dinheiro que pertence às pessoas. Do ponto de vista sindical, havia o interesse de questionar o cariz do sindicato, que foi criado como sendo um sindicato corporativo, temos cerca de 1732 sócios num universo de 4290 (3574 activos, porque há pessoas que estão fora, outros estão com períodos de suspensão, etc…), ou seja, os 1732 são menos de 50% dos médicos veterinários portugueses.
– Quais as razões para este alheamento?
– Isto tem uma razão de ser muito simples: os médicos veterinários liberais têm vindo a crescer e os sindicatos trabalham com aqueles que trabalham por conta de outrem. Mais: a nossa profissão tem uma situação sui generis, porque existe muita gente que acumula ambas as vertentes (vivem naquela dualidade de ser patrão e empregado).
Por outro lado, a tendência da profissão vai no sentido da liberalização pura e dura ir decrescendo. Já temos emitido alguns alertas para que os futuros dirigentes do sindicato e demais responsáveis reflictam neste ponto, olhem um pouco mais além da ponta do seu nariz. De resto, este decréscimo da liberalização também já está a ocorrer em outras profissões, como os médicos ou advogados. Até porque, futuramente, e isso já se está a passar lá fora, não será uma simples disposição administrativa da Ordem ou outra que irá impedir uma qualquer seguradora de contratar os serviços dos médicos veterinários.
Depois há a outra fatia, a dos funcionários públicos. Nesta nova disposição das carreiras, vínculos e remunerações – que tem dado a confusão que se sabe! -, o sentido para que aponta a evolução – e que irá por diante – é para que os próprios funcionários do Estado sejam transformados no que chamam de CTAC (Contratos de Trabalho na Administração Pública), que não é trabalho a recibos verdes mas anda lá perto. Os novos contratados na Administração Pública irão trabalhar com contratos a prazo, que irão requerer uma intervenção mais firme do sindicato, isto é, uma intervenção de um sindicato de classe…
– Mais corporativista?
– Não, porque os problemas específicos que já se colocam ao exercício da profissão médico-veterinária na Administração Pública exigem que a carreira dos médicos veterinários se mantenha. Concordamos que se acabem com as mil e uma carreiras que existem na Administração Pública, mas não aprovamos que não haja uma carreira médica, uma carreira farmacêutica, uma carreira de enfermagem ou uma carreira de Medicina Veterinária. Em suma, não aprovamos que se acabem com carreiras em Saúde, porque, em boa verdade, um inspector sanitária que trabalhe num matadouro está a exercer actos médicos-veterinários; um certificador que trabalhe num posto médico fronteiriço idem aspas, porque é ele quem vai dar a ordem para que um determinado animal circule livremente ou não.
– Há excepções?
– Há. Exceptuar-se-á uma pequena parte dos profissionais que são médicos burocratas. Mas mesmo esses têm que ter conhecimentos de Medicina Veterinária e têm que manter uma ligação com os demais colegas para quem o sindicato reivindica uma carreira. Não se faz epidemiologia sem ter um contacto muito estreito com aquilo que se passa no terreno, por exemplo. Por tudo isto, do nosso ponto vista, justifica-se cada vez mais a existência de um sindicato de classe e de profissão.
– E para os problemas gerais?
– Existem as grandes centrais sindicais, como por exemplo a Frente Comum dos Sindicatos, que aglomera cerca de 30 sindicatos, sendo que cerca de 20 são independentes. Aderimos a esta organização porque foi aquela que nos deu mais e melhores garantias de independência. É lá que estão os médicos e os enfermeiros, entre outros. É costume afirmar-se que esta frente sindical pertence à CGTP e à UGT, mas nós não pertencemos a nenhuma destas centrais sindicais.
– Dado o momento delicado para os trabalhadores portugueses, a tendência é para que estas duas forças aumentem a sua influência junto dos mesmos?
– Sem dúvida alguma, mas a verdade é que, no âmbito da Frente Comum dos Sindicatos, o nosso voto vale exactamente o mesmo que os sindicatos filiados na CGTP. Mais: eles estão em minoria. Todavia, reconheço que na esfera ideológica da Frente, a CGTP seja a força que mais influência exerce, porque tem um corpo de profissionais que as outras formações não conseguem ter. Em termos de informação, do tratamento de dados, quer de informação ao próprio sindicato quer aos sindicatos que integram a Frente Comum da Função Pública, nós sentimo-nos bem integrados e servidos. Em contrapartida, existe o Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado (SQTE), que é poderoso e é indubitavelmente o melhor sindicato para os trabalhadores administrativos do Estado, mas não é seguramente aquele em que os veterinários risquem. De resto, existe uma outra força sindical, ligada à UGT, que exigia a filiação nesta outra grande sindical nacional. Isto para explicar que o nosso sindicato estará integrado na Frente Comum enquanto os seus associados assim o entenderem.
– Ou seja, pretende-se estar dentro de uma estrutura que tenha força negocial, mas, ao mesmo tempo, manter a independência face às tendências políticas que existem dentro destas duas centrais?
– Exactamente. São os próprios sócios que assim o exigem. De resto, ao longo dos anos têm passado por esta casa dirigentes de todos os quadrantes políticos: de direita, monárquicos e da chamada extrema-esquerda, e têm convivido de forma perfeitamente pacífica. Na verdade, os problemas actuais com que são confrontados os veterinários internacionalizaram-se, ou seja, tanto se põem aos portugueses como aos nossos colegas europeus.
A este propósito, a criação da CODIVET serviu um segundo objectivo, este sim estritamente sindical, que é o de encontrar aqui espaço para o aparecimento de um interlocutor, coisa que o nosso sindicato não tem ao nível duma patronal veterinária. Na Catalunha, que inspirou o nosso projecto, as coisas passaram-se exactamente ao contrário. A patronal veterinária que existia tomou a iniciativa de ajudar a fundar um sindicato da classe com o objectivo de ter um interlocutor, de modo que as convenções de trabalho fossem negociadas entre os donos das clínicas e os médicos que lá trabalham. Gostaríamos de ter aqui o embrião de uma patronal, “alguém” com quem, num futuro próximo, possamos fazer uma convenção – porque, ao fim ao cabo, somos todos médicos veterinários –, para evitar aquilo que já está a acontecer: a proletarização da Medicina Veterinária, numa componente verdadeiramente selvática.
– A que nível?
– Há médicos a ganhar menos do que uma mulher-a-dias! Fazendo fé nas estatísticas da Ordem, hoje, 40% da profissão anda nos 30 anos de idade, a tendência é de a profissão ser mais jovem. Toda esta faixa de colegas recém-chegados à profissão, do ponto de vista trabalhista e sindical, vai colocar uma série de importantes questões que não terão resolução se não houver convenção, duas partes em diálogo, como em qualquer sociedade democrática: uma patronal e os representantes dos trabalhadores. Ou seja, há a necessidade de encontrar não só o diálogo, com todas as regalias sociais para os trabalhadores, mas também entre aqueles que legitimamente são criadores de postos de trabalho e querem retorno dos investimentos feitos – os médicos que criam as mais-valias para que as clínicas e hospitais tenham o desejado crescimento. Foi nesse sentido que criámos a CODIVET, com o objectivo de repartir parte das mais-valias da intermediação, que vão passar a reverter para os donos das clínicas.
– Quando é que essas verbas irão estar disponíveis?
– Ainda não se pode prever nem quando nem como, mas estou convicto de que aquilo que se passou na Catalunha é significativo, porque veio confirmar o que é expectável: na anarquia morrem todos! Não conheço nenhum patrão que veja mais um pouco do que a ponta do seu nariz que não se queira sentar à mesa com uma estrutura sindical com a qual possa dialogar, até porque somos todos profissionais de mesmo ofício e aqueles que hoje são empregados, amanhã podem vir a ser patrões… O futuro ditará o sucesso ou insucesso do projecto. As novas gerações terão de decidir aquilo que querem.
– Este projecto está integrado num plano global?
– O outro objectivo maior era fornecer formação continuada. Em tempos, ao abrigo do novo quadro comunitário de apoio, propusemos a uma estrutura de topo da profissão que organizasse, através de um pequeno secretariado, as diversas associações que existem, no sentido de organizar uma estrutura para que pudéssemos aproveitar os fundos comunitários para formação, termos os meios necessários dessas associações para termos os programas mais adequados de formação para o nosso país e também aproveitar o dinheiro que viesse para esse fim. O objectivo passava pela criação do referido pequeno secretariado, que iria organizar a logística do projecto e ainda a vinda dos melhores especialistas para dar formação. Para além disso, esse secretariado iria organizar a remuneração de todos os médicos veterinários que viessem às acções de formação, uma vez que, actualmente, os colegas perdem o dinheiro correspondente aos dias em que estão em formação. Infelizmente, a nossa ideia não teve bom acolhimento junto da instituição a quem apresentámos o projecto, mas vamos continuar a procurar parceiros para a concretizar, nomeadamente as associações ligadas à Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias.
– Pelos números apresentados, o vosso sindicato conseguiu a filiação de menos de metade dos profissionais (1732). Este número é bastante reduzido?
– É pouco! É pouco, mas representa aquilo que é. Não há nenhuma crise no sindicalismo! Existe uma crise político-social no nosso meio (Medicina Veterinária) que tem provocado a não-sindicalização dos nossos colegas. O problema de fundo tem a ver com questões financeiras dos profissionais. Têm de fazer formação anual, com a qual gastam pelo menos 150 euros; têm de pagar as quotas na Ordem, onde gastam mais “X”. Ora, só adere ao sindicato quem quer, ninguém é obrigado a pertencer à nossa estrutura, mas a quota (cerca de 90 euros anuais) custa a pagar, porque, por outro lado, só em deslocações, estadias, refeições, etc… que são necessárias para a imperativa formação, os colegas gastam uma quantia que, em muitos casos, irá pesar no seu orçamento.
– Os veterinários mais jovens têm aderido ao sindicato?
– Os jovens veterinários sabem muito bem aquilo que querem. Há pessoas que dizem que eles são “esquisitos”, que não querem fazer nenhum, que vestem de forma estranha, mas estou convicto que os jovens sabem muito bem aquilo que querem. E não é por vestir de forma “esquisita” ou menos formal que deixam de ser exigentes. Eu próprio também andei de sandálias na faculdade, fui “hippy”. O facto é que os nossos colegas mais jovens estão a passar por algumas dificuldades, uma vez que têm salários muito baixos e têm de fazer face a um conjunto de despesas essenciais, como a casa e o carro – um bem sem o qual não podem trabalhar.
– Os 90 euros de quota são dedutíveis no IRS?
– São, mas nem todos sabem. As faculdades deviam ter uma cadeira anual sobre gestão, porque eles não percebem nada de nada de administração. Sabemos de casos em que jovens abriram clínicas e que depois se viram muito aflitos para gerir um espaço desta natureza. De resto, o sindicato já estabeleceu uma parceria com o ISCTE, no sentido de promovermos um curso de gestão para a criação de micro-emprego, porque eles não têm a mínima noção sobre gestão.
– Diz-se que as pessoas, principalmente aquelas que trabalham na Função Pública, terão “medo” de pertencer aos sindicatos?
– Não vemos a questão por esse prisma. Há é uma crise social e uma falta de tempo para dedicar à causa do sindicalismo. Eles (jovens) não têm tempo “para se coçar”, quanto mais para estar a ter trabalho com os problemas dos outros. Os nossos estatutos exigem – e bem, do ponto de vista dos mais velhos – que o trabalho no sindicato seja não remunerado. O ponto de vista dos jovens já é outro. As pessoas que vêm para aqui gastam dinheiro, ou seja, deixam de o ganhar. Ora, é necessário já ter algum estatuto económico para trabalhar no sindicalismo, que dá inúmeras dores de cabeça.
CODIVET «é independente»
Edmundo Pires faz questão de esclarecer que a CODIVET é uma estrutura «totalmente independente» do SNMV. O líder sindical diz que, apesar da sede da cooperativa estar dentro de portas da sede do sindicato, não há «nada de estranho», uma vez que as instituições são autónomas e que a CODIVET já tem o caminho próprio traçado. «Temos a preocupação de não misturar as questões sindicais com a CODIVET; são duas coisas completamente diferentes. O sindicato deu-lhe o empurrão inicial, mas hoje em dia já não partilham mais nada que não seja o mesmo espaço. É uma actividade privada que dá contas ao Estado, aos seus associados e ao próprio sindicato, mediante aquilo que ficou acordado».