A legislação portuguesa passou a reconhecer, de há oito anos para cá, mais direitos aos cães de assistência. Estava dado o mote para a criação da Associação Portuguesa de Cães de Assistência que tem, desde o seu arranque, vários pedidos de pessoas que necessitam de um medical dog, seja por motivo de epilepsia, saúde mental, autismo, diabetes ou mobilidade reduzida. A associação não consegue dar resposta devido ao elevado investimento que um cão de assistência acarreta. Apela, por isso, à indústria farmacêutica e ao setor da Medicina Veterinária, em geral, para que se associem à causa.
“Até à cura, existe um cão”. Eis o lema da Associação Portuguesa de Cães de Assistência (APCA), que tem como objetivo promover e divulgar os cães de assistência, assim como sensibilizar para a tomada de consciência sobre a necessidade de livre acesso em estabelecimentos públicos e privados, de acordo com o Decreto Lei em vigor (74/2007). “A legislação foi criada em 2007 com o intuito de que todos estes cães passassem a ter os mesmos direitos. Deixámos de ter a lei de 1999, que abrangia apenas os cães guia, e passámos a ter uma legislação para cães de assistência no seu todo”, explica Rui Elvas, presidente da APCA. Vindo da área do marketing e da direção de uma empresa durante vários anos, chegou aos 40 anos e percebeu que não queria ficar naquela área o resto da vida. Foi quando criou o centro de treino de cães – K9 Training Center – como forma de criar um negócio próprio para a sua mulher, que é treinadora de cães.
Alguns anos depois e já com o centro completamente lançado no mercado surgiu uma pessoa que precisava certificar o seu cão para apoiar a filha que era diabética. “Comecei à procura de informação sobre o que existia em Portugal e encontrei uma lei fantástica, que é a lei dos Cães de Assistência em Portugal, uma das melhores do mundo, mas não havia cães de assistência, pelo que a lei não tinha qualquer utilidade prática. Fizemos as diligências necessárias para criar esta associação sem fins lucrativos, e para começar a formação que vinha dos EUA, Alemanha, Espanha, em várias áreas. Começámos a trabalhar a sério em 2014, já com o aval do Instituto Nacional de Reabilitação (INR), a entidade que em Portugal é responsável pela certificação das entidades”.
Em Portugal existem apenas três instituições que certificam cães de assistência: a Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV), a Ânimas (Associação Portuguesa para a Intervenção com Animais de Ajuda Social) e a APCA, dedicada aos medical dogs, ou seja, cães que dão apoio a pessoas com epilepsia, diabetes, autismo e mobilidade reduzida. “Na área de cegos foram formados cerca de 140 cães de assistência; a Ânimas formou quatro ou cinco, nós já formámos quatro e temos mais oito em formação. Neste momento temos cerca de 350 pedidos, dos quais 70% são de pessoas que não têm condições financeiras para adquirir um cão destes”, explica Rui Elvas. E é neste aspeto que surgem os principais problemas. “O grande objetivo é conseguirmos o financiamento anual do Estado e ter cada vez mais pessoas a juntarem-se a esta causa. É importante sentirmo-nos apoiados porque estamos a ajudar pessoas que não têm condições financeiras. Temos algumas parcerias com empresas que se juntam a nós, mas o apoio é bastante residual tendo em conta as necessidades”.
Uma das utentes que beneficia do apoio da APCA, de 28 anos, não teria outra forma de ter um cão de assistência sem a ajuda da associação. “Estava perfeitamente lançada no mundo artístico, tinha uma vida fantástica, viajava pelo mundo. Após um acidente, em que caiu de um trapézio, ficou numa cadeira de rodas e saiu do hospital com 1% de probabilidade de voltar a andar. A Diana recebe apenas 212 euros do Estado. A APCA não só teve de comprar o cão, como treiná-lo, alimentá-lo e levá-lo ao veterinário. É tudo pago por nós e este é apenas um exemplo entre tantos outros. Como a Diana existem outras pessoas que não têm ajudas do Estado e às quais a associação tem de dar resposta. Sem fundos suficientes não é possível chegar a todos”, explica Rui Elvas, adiantando que é muito difícil para a associação lidar com este tipo de situações.
E que diferenças tem a equipa notado no acompanhamento da Diana? “A Diana tinha pouca interação social, estava muito isolada e deprimida. A Nina está com ela há aproximadamente sete meses e as melhorias ao nível do aspeto emocional são enormes. Também já faz quase dois quilómetros em andarilho, o que é notório para quem tinha o seu prognóstico”.
Como funciona o treino na prática
A APCA já visitou mais de 1000 espaços, onde realizou sessões de sensibilização e cada um dos treinadores faz-se acompanhar de um cão da assistência regularmente, para que a sociedade comece a ficar alerta para esta realidade. Um cão de assistência tem como principal objetivo operar permanentemente com um utente com algum tipo de deficiência ou limitação, seja de ordem orgânica, física ou mental. A APCA treina especificamente cães de assistência para pessoas de mobilidade reduzida, diabéticos, autistas e epiléticos, estando neste momento dois treinadores em formação no estrangeiro. A equipa da APCA é formada por oito treinadores, dois veterinários, duas terapeutas e uma psicóloga. “A associação tem como objetivo ajudar todas as pessoas que necessitam de um cão de assistência independentemente das suas condições financeiras”, explica Rui Elvas.
Os cães de assistência devem ser única e exclusivamente utilizados por pessoas que deles necessitem, com deficiências que assim o justifiquem. Mas qualquer cão pode ou não ser um cão de assistência? “Esta é uma das perguntas mais comuns que nos fazem: se os cães dos canis ou os cães das pessoas comuns se podem tornar cães de assistência. Quando temos um cão de um criador para se tornar um cão de assistência, o criador passa-nos a informação de que aquele animal está testado em termos genéticos e podemos identificar melhor o seu historial clínico. Se formos buscar um cão a um canil, ou fazemos uma enorme panóplia de exames para garantir que aquele cão tem as condições ideais para se tornar um cão de assistência ou será um risco investir num animal, em termos de tempo e dinheiro, e ele vir a ter uma displasia da anca, por exemplo, que o impeça de operar. Essa é a nossa maior limitação. A nossa delegação do Algarve faz isso: vai buscar cães a um canil, fazem-se os testes genéticos possíveis e verifica-se se o cão está apto e se tem condições para começar a ser um cão de assistência. Neste caso é-nos reduzido substancialmente o custo da aquisição”, explica Rui Elvas.
A primeira fase de tratamento de cães é ao nível de obediência e espaço público (cinema, shopping, teatro, café, restaurantes e aviões, transportes públicos… todos os locais onde o cão vai operar). A partir dos seis meses começa o treino de espaço público. “Logo que seja atribuída a pessoa para aquele cão começamos a treiná-lo para as características específicas da patologia do futuro utente. O treino pode demorar entre um ano e meio, dois anos, e é específico da doença e das necessidades dos utentes”.
Uma vez que a lei portuguesa contempla o acesso de cães de assistência em qualquer local público ou privado, sem restrição, “os mesmos podem entrar em qualquer lugar onde os utentes também entrem. O cão de assistência está permanentemente com o utente”. Na nova lei, o cão pode ser transportado “pelo utente, pelo treinador ou pela família de acolhimento. Durante o processo de treino, já tem os mesmos direitos e as mesmas regalias que um cão certificado. A lei antiga não permitia que um cão treinasse em espaço real”.
O papel da Medicina Veterinária
Existe uma grande preocupação por parte da equipa da APCA em cuidar dos cães de assistência. “Têm de estar em condições físicas / orgânicas para que atuem em condições ótimas. O médico veterinário é essencial em todos estes processos. Este é um investimento muito grande, são muitas horas de trabalho, pelo que é fundamental detetar qualquer alteração de saúde ou despistar alguma doença de forma precoce. Não podemos correr o risco de o cão ter uma patologia grave ou mesmo de o perdermos”, explica o presidente da APCA. Nas zonas onde a associação trabalha, o veterinário faz a abordagem e tenta perceber se há algum problema que tenha de ser resolvido para evitar situações mais complexas. “Para os utentes que já têm os seus próprios médicos veterinários e que vivam fora das nossas zonas de atuação, fazemos questão de os conhecer, colocando-os em contacto com os nossos profissionais”.
Sílvia Marreiros é uma das médicas veterinárias da associação e sente o peso da responsabilidade: “Fazemos um tratamento ainda mais intenso ao nível da profilaxia. Se o cão tem de se afastar um dia que seja do seu utente, temos uma situação muito complicada de gerir. Como estes são cães que andam nos espaços públicos há que desparasitar e esterilizar as cadelas para que não entrem em cios descontrolados”, explica. A abordagem inicial é essencial para despistar algumas doenças genéticas.
Sílvia Marreiros passou os últimos oito anos a dirigir a sua própria clínica no Algarve. Voltou recentemente às suas origens, em Cascais, onde está a trabalhar em part-time e a fazer substituições de colegas. “Já tenho 20 anos de experiência e decidi abraçar outros projetos, como é o caso da APCA. O Rui Elvas precisava de uma pessoa disponível 24 horas e eu tinha esse perfil. Consigo dar uma melhor resposta devido à minha atual disponibilidade”. Se surgir alguma situação urgente, tenta ir na hora seguinte, para tranquilizar também o dono. “Temos de gerir a questão do cão com a ansiedade que o dono pode sentir. Muitas vezes faço domicílio. O animal e o próprio dono sentem-se mais confortáveis em casa. A consulta acaba por ser mais personalizada e é fundamental criar uma maior empatia com os utentes”.
Rui Elvas gostaria de ver a Medicina Veterinária e a Indústria Farmacêutica do setor envolvidos neste projeto de forma a apoiar os treinos e a certificação. “Seria lógico que algumas verbas fossem canalizadas para a APCA. Se existem verbas para exposições caninas e provas desportivas, o apoio para cães de assistência deveria ser mais alargado e consistente. Esta é a função mais nobre que um cão pode ter”. Por outro lado pondera a criação de protocolos com clínicas veterinárias em zonas onde a APCA ainda não opera para “ajudarem a tratar de qualquer situação de saúde destes cães, sobretudo de utentes que não têm condições para suportar estas consultas”.
– Dedicar-se à prestação de serviços, divulgação e integração de cães de assistência na sociedade portuguesa;
– Defender interesses e direitos dos associados;
– Treino de cães de assistência;
– Terapia Assistida com Animais;
– Certificação de cães de assistência;
– Colocar cães de assistência com famílias/indivíduos que se qualifiquem;
– Defender o direito à diferença das pessoas que se fazem acompanhar por cães de assistência;
– Fornecer informações e orientações de conhecimento nos diferentes níveis de apoio (social, emocional…);
– Divulgação e informação junto dos associados;
– Fomentar a troca de informações e programas de patrocínio com outras organizações;
– Criar laços com organizações internacionais e intercâmbio de experiências.
Para mais informações, aceda a https://www.facebook.com/apcapt e a https://apcapt.wordpress.com/
Artigo publicado na edição de setembro de 2016 da revista VETERINÁRIA ATUAL