Durante dois dias enfermeiros veterinários estiveram reunidos no 1º Congresso VetNurse Update. O encontro foi dedicado à medicina felina e a VETERINÁRIA ATUAL acompanhou as conferências onde se falou sobre as estratégias para fazer dos centros de atendimento médico veterinário (CAMV) locais com menos stress para os felídeos.
O ISCTE recebeu a 13 e 14 de maio o 1º Congresso VetNurse Update e o tema do primeiro encontro foi “Medicina Felina da Teoria à Prática”. Médicos veterinários e enfermeiros veterinários fizeram parte do painel de oradores que falaram apenas sobre temáticas centradas no bem-estar e na saúde dos gatos.
“O internamento amigo de gatos: Como reduzir o stress no internamento?” foi o tema abordado pela enfermeira veterinária belga a residir no Reino Unido, Natalie Hack, que começou por lembrar que, quando começou a prática clínica, a abordagem era simples “cães para um lado, gatos para o outro, mas agora compreendemos melhor os efeitos do stress nos gatos porque também conhecemos melhor a fisiologia destes animais”. E a evidência científica já demonstrou que o stress nos felídeos “cria toda uma doença, porque se o gato está stressado, isso é visível nos níveis analíticos” e na sintomatologia apresentada pelo animal.
Nessa medida, pensar em transformar as clínicas e os internamentos em locais cat-friendly “tem benefícios para todos, para os animais e para nós que não queremos ser arranhados e mordidos”, sublinhou a enfermeira veterinária certificada em comportamento felino pela International Society of Feline Medicine (ISFM). E mesmo que as instalações sejam pequenas e não exista um grande orçamento para fazer alterações, Natalie Hack considera que podem sempre ser encontradas estratégias que melhorarem o ambiente para o gato. Afinal, reconheceu a enfermeira veterinária, “quando o ambiente é cat-friendly o animal torna-se muito mais fácil de lidar e não é necessário ter cinco pessoas para o gato estar dominado ou usar um número sem fim de toalhas para que ninguém seja arranhado ou mordido”. Além disso, a oradora lembrou aos enfermeiros que, sempre que for necessário, podem sempre falar com os médicos veterinários para ponderarem a utilização de fármacos para acalmar o gato em vez de tentar dominá-lo pela força. Porque, reforçou, “lembrem-se que não é um gato mau ou difícil é apenas um animal que está muito assustado”.
  “Ser cat-friendly começa antes de o gato chegar, não importa se a clínica é grande ou pequena” – Natalie Hack, enfermeira veterinária
E na perspetiva e experiência de mais de 20 de prática clínica da oradora, ter um espaço cat-friendly “vai aumentar a satisfação [do cliente] e a segurança [do animal e da equipa]”, mas também pode ser uma estratégia comercial e de marketing para aumentar o número de clientes. Natalie Hack citou na palestra uma pesquisa cujas conclusões apontaram para que cerca de 70% dos tutores de gatos em Inglaterra não levavam o animal ao veterinário. “Nem sempre está relacionado com o facto de serem maus tutores ou de não poderem pagar, simplesmente pensam que o gato vai ficar stressado, têm de o colocar na transportadora, de conduzir até à clínica, vão apanhar uma série de cães na sala de espera, o gato vai ficar stressado e preferem não o fazer e alguns até preferem pedir uma visita domiciliária, apesar de ser muito mais dispendioso”. Contudo, se o CAMV for cat-friendly “o gato fica feliz, os tutores voltam à clínica e o dinheiro acaba por entrar”, acrescentou.
Criar um internamento amigo dos gatos
O que a ciência já demonstrou sobre o impacto do stress na saúde dos gatos é o principal argumento da enfermeira veterinária para sugerir as mudanças que levem à transformação dos internamentos em instalações mais amigas dos felídeos. Hoje, já se sabe que o stress aumenta a dor nos gatos e se estes vão ao veterinário já com um quadro doloroso, passarem por situações stressantes acaba por agravar a situação clínica. Sabe-se igualmente que os níveis bioquímicos e fisiológicos ficam desregulados, o ritmo cardíaco fica aumentado, a respiração fica acelerada e a equipa acaba por ter dificuldades em perceber se esta sintomatologia é causada pela doença que levou o animal ao CAMV ou é resultado do stress vivido pelo animal.
E se já estão doentes com um quadro de doença respiratória ou de anemia, o stress pode desencadear uma crise major que pode mesmo levar à morte do animal, daí esta ser uma questão que não deve ser minimizada pelas equipas.
Contudo, para quem pense ser necessário fazer um grande investimento para transformar o internamento em instalações amigas dos gatos, Natalie Hack voltou a reforçar ao longo da intervenção que “não é preciso redecorar tudo, basta trabalhar com o que temos” e as mais pequenas alterações podem trazer benefícios para o bem-estar dos felídeos.
A enfermeira deu alguns exemplos. Em primeiro lugar tentar não ter as jaulas dos internamentos frente a frente. Os gatos são animais solitários, um pouco antissociais, por isso o ideal é que não tenham outros animais no campo de visão e também é benéfico que as jaulas em que estão acomodados não fiquem ao nível do chão. Idealmente também não deveriam ser de metal, já que com este material os gatos podem ver o seu reflexo e sentir-se ameaçados por pensarem estar frente a frente com outro animal.
Por vezes, as instalações não permitem ter internamentos separados para cães e gatos e, nesse caso, a oradora reforçou: “Certifiquem-se de que não se podem ver e se tiverem mesmo de estar frente a frente coloquem uma toalha em frente da jaula do gato. Podem usar Feliway nas toalhas, que ajuda a acalmar os gatos, e se tiverem mesmo de estar juntos no mesmo internamento o melhor é colocar os cães nas jaulas mais rentes ao chão e os gatos nas da parte de cima”.
“Mesmo numa clínica pequena podemos fazer algo para a tornar mais amigável para os gatos” – Natalie Hack, enfermeira veterinária
Se ainda assim o gato demonstrar elevados níveis de stress, o conselho da enfermeira veterinária é mantê-lo na caixa transportadora e levá-lo para uma sala calma, longe da agitação do movimento da clínica.
Aliás, o barulho é altamente stressante para os gatos e, nesse sentido, a oradora apelou aos enfermeiros para terem cuidado com falas mais exaltadas ou gritos perto da zona de internamento e aconselhou terem um rádio ligado, mas com o som baixo, sintonizado em música clássica que está comprovado cientificamente ser do agrado dos gatos.
Odores muito fortes também não são bem tolerados pelos felídeos e os perfumes devem, assim, ser reservados para as alturas fora do tempo de serviço, aconselhou a enfermeira veterinária.
Relativamente às jaulas, mais uma vez Natalie Hack sugeriu aos presentes para “pensar fora da caixa”. Nem sempre é possível ter as condições ideais, mas com algumas medidas simples pode-se tornar o ambiente mais aprazível para o animal: dentro da jaula colocar uma caixa para o gato ter altura como gosta, ter um cobertor que pode até vir de casa e ter o seu odor o que o acalma, ter a caixa de areia separada dos recipientes da água e da alimentação e apenas limpar o interior quando é necessário para não perturbar o animal. Uma das sugestões da enfermeira foi perguntar sempre ao tutor do animal que vai ficar internado quais são as preferências do gato relativamente à areia e à comida, pormenores que podem fazer com que se sinta mais calmo se as opções forem adaptadas ao seu gosto.
Eventualmente, pode enriquecer-se o ambiente do internamento colocando umas plantas na sala e é preciso ter atenção às janelas, caso existam. Numa primeira análise podem ser benéficas, por distraírem o gato se estiverem ao nível da jaula, mas se no lado de fora for uma zona de passagem de pessoas há a possibilidade de baterem no vidro para interagirem com o gato, acabando por causar grande ansiedade ao animal.
Tudo começa antes de o gato chegar ao CAMV
“Que medidas reais são cat-friendly no meu dia-a-dia como enfermeira veterinária?” foi o tema da segunda palestra de Natalie Hack que assumiu logo no início que tornar a visita de um gato à clínica menos stressante começa, antes de tudo, na preparação do tutor. “Ser cat-friendly começa antes de o gato chegar, não importa se a clínica é grande ou pequena”, reforçou a oradora, que instruiu os presentes a darem conselhos de como transportar corretamente o animal durante a viagem e no caso de atenderem a chamada telefónica darem instruções claras e precisas da localização da clínica, porque se for uma emergência o tutor pode estar nervoso e precisar de direções muito exatas para não se perder no caminho.
Esta vertente da educação do cliente é uma faceta importante do trabalho do enfermeiro veterinário pois, como contou a oradora, ao longo destes anos de experiência “já vi todos os tipos de variações de transportadoras e penso muitas vezes que também ficaria stressada [por ser transportado naquelas condições]”, que passam, por vezes, por colocar o gato em caixas de cartão, gaiolas ou até slings para bebés. Ainda no tema do transporte, vaporizar o interior da transportadora e colocar uma manta também vaporizada com Feliway antes de colocar lá o gato pode também ser uma ajuda para acalmar o animal durante a viagem. Contudo, frisou, é importante que o gato ainda não esteja na transportadora quando a vaporização for feita pois o barulho da vaporização pode parecer um gato a assanhar-se e assustar ainda mais o animal.
Na clínica é igualmente importante salvaguardar a tranquilidade do gato logo à chegada. “Se não estiver ninguém na sala de espera podem mandar entrar, mas se estiveram cães o melhor até é perguntar ao tutor se ele não se importa de esperar dentro do carro”, referiu a enfermeira veterinária, lembrando que, mesmo que seja possível ter uma sala de espera só para gatos, por vezes, podem existir alguns mais assanhados que acabam por desestabilizar os outros.
Outro pormenor a ter em atenção é o local onde se coloca a transportadora enquanto aguardam a consulta. “Certifiquem-se que a transportadora não fica no chão”, frisou a oradora. Nessa posição o gato não vê o ambiente do alto como aprecia, os cães podem passar pela caixa e cheirar ou ladrar o que deixará o animal ainda mais stressado. O ideal é apostar em mobiliário que permita aos tutores colocar a transportadora numa posição mais elevada, mas, no caso de espaços mais pequenos, esta pode ser colocada até no balcão da receção. Balcão esse que também pode ter um cesto com toalhas vaporizadas com Feliway que podem ser usadas pelos tutores para tapar a transportadora e, desta forma, dar maior tranquilidade ao gato.
As dicas da oradora demonstram que “mesmo numa clínica pequena podemos fazer algo para a tornar mais amigável para os gatos”, e, mais uma vez, mencionou a colocação de plantas para enriquecimento ambiental da sala de espera e desaconselhou a utilização de máquinas de café nessa zona porque o barulho pode assustar os gatos, assim como a presença de imagens de gatos nas paredes. Afinal, os felídeos conseguem ver a duas dimensões e podem assustar-se com imagens dos seus semelhantes.
Aquando do momento da consulta, “a preparação é a chave”, frisou Natalie Hack, que considera fundamental ter tudo preparado no consultório, mesmo que seja apenas para administrar uma vacina. Abrir a porta do consultório para ir buscar algum item esquecido é mais um momento disruptivo para o gato e ainda acrescenta o perigo de este tentar fugir.
Como os gatos têm um apuradíssimo sentido olfativo, é importante que entre consultas a mesa seja higienizada para retirar o odor do paciente anterior, e, mais uma vez, passar Feliway antes de o novo gato entrar pode ser uma ajuda para uma consulta mais tranquila. Eventualmente, se a consulta anterior tiver sido com um gato muito stressado, muito desafiante em termos de maneio, a enfermeira veterinária até aconselhou os colegas a mudarem de bata para que o animal seguinte não sinta o odor das hormonas de stress do animal anterior.
Durante a consulta, o ideal é deixar o gato sair sozinho de dentro da transportadora. “Sejam pacientes, sei que não é fácil quando se tem outros animais na sala de espera”, reconheceu, apontando a importância de, ainda assim, não arrancar o gato de dentro da transportadora. “Nós acabamos arranhados e mordidos e o gato traumatizado”, acrescentou.
Se o gato tiver de ficar internado, Natalie Hack voltou a lembrar que, nessa situação, “o menos é mais” e alguns procedimentos, como medir a temperatura, devem ser reduzidos apenas ao essencial e outros, como garantir o controlo da dor, devem ser incentivados.
“Dar o fluido certo, na dose certa, ao paciente certo, no momento certo não é assim tão fácil”
Um guia para a administração de fluidoterapia em gatos, assim se pode resumir a intervenção da enfermeira veterinária Ana Sêco no congresso. A enfermeira pós-graduada em Técnicas Práticas em Clínica Veterinária pela European School of Postgraduate Veterinary Studies trouxe para o encontro o tema “Fluidoterapia: Como avaliar o estado de hidratação e desenvolver um plano de fluidos? Que cuidados devo ter com as vias de administração?” onde abordou alguns conceitos e dicas para a prática clínica e sublinhou a importância de ter um plano de fluidoterapia “que ajuda muito a evitar erros, ter uma estratégia e monitorizar o animal é fundamental para que a fluitoterapia não faça pior do que o estado em que ele está”.
A ideia é elaborar um plano, em conjunto com o médico veterinário, a partir de perguntas importantes. É fundamental saber se a situação que leva o gato a receber fluidos é aguda ou crónica, pois se for um caso agudo, geralmente a reposição é mais rápida, e se for uma doença crónica o ideal até é que a reposição de fluidos seja mais lenta.
É igualmente importante perceber qual o objetivo da fluidoterapia. “Nesta parte falhamos muito”, admitiu a oradora, pois não basta, por exemplo, saber que se trata de um gato com insuficiência renal, é preciso saber exatamente qual o motivo que leva o animal a ficar internado. “Temos de saber exatamente para que é que o soro vai funcionar porque se tivermos um objetivo claro mais facilmente vamos saber quando o alcançar”, acrescentou.
A última questão a conferir com o médico veterinário é perceber se o gato tem outros problemas de saúde. “Se é um doente renal, mas também tem doença cardíaca, se veio [à clínica] por vómitos, mas tem hipertiroidismo, porque há determinadas doenças que vão condicionar o plano de fluidoterapia”, explicou Ana Sêco.
Na avaliação do gato que necessita de fazer fluidoterapia é também importante averiguar que tipo de alterações nos fluidos existem para estabelecer o objetivo da terapia. “Quando há perdas de fluidos o mais comum no gato que nos visita é ser devido a vómitos e diarreia e, nesses casos, a fluidoterapia serve para repor os fluidos que se perderam”, explicou a oradora. Noutros casos a fluidoterapia irá servir para corrigir as alterações do conteúdo do fluido, alterações essas que podem acontecer devido a uma obstrução urinária, a hiperglicemia ou num animal que está hipercalémico. Também podem acontecer alterações na distribuição do fluido, em que, de forma simples, existe no organismo do animal, mas está no compartimento errado e, nesse caso, o objetivo passa por repor o equilíbrio da localização dos fluidos no corpo do gato.
O objetivo da fluitoterapia também pode ser apenas para ajudar na manutenção da perfusão dos tecidos no animal que se está a preparar para uma intervenção cirúrgica.
Uma mensagem importante sublinhada pela enfermeira veterinária é que “o equilíbrio de fluidos tem de estar a zero, ou seja, tudo o que damos ao gato tem de estar exatamente igual àquilo que ele está a perder” para suprir as carências, mas também para não levar a uma sobrecarga de fluidos “que pode pôr em risco a vida do animal”.
Sobre o plano de fluidoterapia, este passa por estabelecer se, efetivamente, o animal pode receber a suplementação por via alimentar e só no caso de não ser possível administrar por via oral, então é que entra o soro por via intravenosa e subcutânea.
Ana Sêco reconheceu que “dar o fluido certo, na dose certa, ao paciente certo, no momento certo não é assim tão fácil” e é necessário ter uma estratégia que implica escolher o fluido mais indicado para o motivo do internamento, o volume e a taxa a infundir, assim como a duração da terapêutica. Neste último campo, a enfermeira veterinária reconheceu ser uma “grande falha das equipas” e defendeu que “temos de ter um objetivo claro para perceber quando devemos parar”. Afinal, reforçou, é muito importante prevenir a sobrecarga de fluido já que esta leva ao aumento da mortalidade, da necessidade de hospitalização e do tempo de internamento.
*Artigo publicado na edição 172 da VETERINÁRIA ATUAL, de junho de 2023.