O bem-estar animal como ciência
No decurso do trágico acidente de Santo Tirso, assistimos a dezenas de pessoas a salvarem e levarem consigo os cães assustados e quase queimados vivos. Provavelmente, para suas casas, para começarem a cuidar deles como verdadeiros animais de companhia. Duas perguntas, então, se põem: onde estavam estas pessoas quando estes animais precisavam de um lar e só o encontraram na forma de uma corda atada a um pinheiro? E se o incêndio não tivesse acontecido, estariam nas suas poltronas na cidade ou no parlamento, a “postar” comentários de defesa dos direitos dos animais, tranquilos, na certeza que estariam vivos… apesar de permanentemente presos a um pinheiro?
Muito se tem falado sobre as culpas por detrás das horríficas mortes em Sto. Tirso. Atirou-se para todos os lados, em geral atingiram-se as pessoas erradas, aquelas que se mostravam ser o elo mais fraco. O bode expiatório. Os outros escudaram-se em indignas tomadas de posição. “Quem nós? Sempre fomos contra.” Com a lei de 2016, foi pedido para se construir uma casa pelo telhado e, quando esta ruiu, culparam os profissionais que tentaram servir de alicerces, mesmo quando o empreiteiro falhava com o cimento e as ferramentas. Então são considerados malandros e assassinos porque não evitaram o colapso.
Entretanto muita asneira foi dita e muitos apareceram como paladinos do bem-estar animal.
Mas será que todos estes comentadores sabem verdadeiramente o que é bem-estar animal? Será que a sua visão antropomórfica não ofusca muitas das evidências científicas e realidades? Ser cidadão ou médico-veterinário do século 21 não é necessariamente seguir o coração em vez da inteligência, obedecer aos instintos em vez da razão, ou esquecer a racionalidade e a inteligência em troca da humanidade primária. Somos animais… mas somos racionais, Homo sapiens, com obrigações, mas que se querem fundamentadas. Para isso, criámos e alimentámos a ciência.
Ainda nem tinha nascido em Portugal a ideia de bem-estar animal, e muito menos os partidos que agora se advogam principais defensores deste, e já eu fazia investigação e escrevia sobre a necessidade de proteger e promover o bem-estar animal. O estudo do bem-estar animal tornou-se numa ciência multidisciplinar nas últimas décadas do século 20, de que resultaram enormes benefícios para os animais domésticos. Atingimos a perfeição? Longe disso, e para isso é preciso continuar a lutar. Não numa forma intolerante, de deita-abaixo, de rejeição cega, de eliminação… mas numa forma construtiva, integrada e inclusiva que permitirá garantir o melhor para todas as partes. Criar trincheiras imutáveis conduzirá a um impasse, a uma aversão ao conceito por um dos lados e a um extremar de posições pelo outro, que não servirá ninguém. Muito menos os animais. Devemos recordar que a União Europeia é considerada a zona económica com as regras mais severas e rigorosas em termos de bem-estar animal e que Portugal é obrigado a essa legislação, mas em muitos casos chega a ultrapassar o exigido.
A questão da recolha dos animais vadios/abandonados e a vida nos canis
Há quem acredite que bem-estar é estar abrigado da chuva e frio e de barriga cheia. Outros acrescentam a ausência de stresse, medo, doenças e lesões. Outros ainda elegem como fundamental a possibilidade de exibir o comportamento natural da espécie. Na verdade, mesmo entre os especialistas, a definição de bem-estar animal não é consensual. Uma das mais usadas é a de Donald Broom, que diz que é a capacidade do indivíduo lidar com o seu ambiente (“the state of the individual as regards its attempts to cope with its environment”), ou seja, ser capaz de enfrentar e superar agressões físicas e mentais e ainda de satisfazer as suas necessidades básicas. Só que ainda estamos longe de perceber bem quais são as necessidades básicas dos animais de companhia de forma a conseguir medir convenientemente o seu bem-estar, ao contrário do que acontece, por exemplo, com os animais de produção (Stephen e Ledger, 2005, An audit of behavioral indicators of poor welfare in kenneled dogs in the United Kingdom).
Existem muitas publicações sobre o efeito da permanência, mais ou menos prolongada, em canis ou centros de recolha de animais errantes. Na consulta da plataforma Science Direct são indicados mais de 1 500 artigos versando os efeitos do alojamento em canis sobre o bem-estar de cães. Estes artigos científicos são essencialmente sobre as causas e os impactos do stresse agudo, já que os estudos dos efeitos do stresse crónico são bem mais difíceis e demorados. Apesar de, provavelmente, serem mais relevantes.
De uma forma geral os resultados dos estudos mostram que há importantes e continuadas alterações comportamentais e hormonais, indicadoras de stresse e, portanto, de sofrimento animal. Stresse é um estado que corresponde a uma tentativa do organismo lidar com fatores agressivos, mas é também uma causa – especialmente o stresse crónico – de alterações mentais, comportamentais e imunitárias.
Os fatores de stresse mais habituais nos centros de recolha são: o ruído (incluindo o ladrar incessante), a proximidade de animais estranhos, maiores e mais agressivos, a novidade constante, o confinamento e a limitação de movimento, a monotonia, os cheiros, a frustração, a presença de humanos hostis, mas também a ausência de humanos afetuosos… Por exemplo, a investigação demonstra que os cães preferem companhia e contacto com humanos e entram mais facilmente em stresse quando são obrigados a conviver apenas com outros animais. Um outro estudo (Hoffman et al, 2019, An actigraphy-based comparison of shelter dog and owned dog activity patterns) confirmou que o tempo reservado ao descanso era muito menor nos cães a viver num abrigo/canil… uma fadiga a todo o momento, constante, permanente, por toda a vida.
Numa primeira fase, estes fatores de stresse desencadeiam uma resposta do sistema nervoso autónomo e do eixo hipotálamo-hipófise-adernal, levando à libertação de hormonas, tentando manter a homeostase. Ou o equilíbrio. Mas, a manutenção das agressões físicas e mentais conduz a estados de stresse crónico que são potencial causa de alterações comportamentais, cardiovasculares, endócrinas, gastrointestinais e imunitárias, aumentando a probabilidade de uma vida pobre em bem-estar; a inviabilidade de adoção; os custos de manutenção dos centros de recolha. Finalmente, os próprios sistemas de adaptação, normalmente eficazes em caso de stresse de curta duração, deixam de funcionar, dando origem a síndromes de mal-adaptação crónicos (Beerda et al, Manifestations of chronic and acute stress in dogs, 1997; Hennessy et al., Plasma cortisol levels of dogs at a public animal shelter, 1997; Beerda et al, Behavioural and hormonal indicators of enduring environmental stress in dogs, 2000).
Ou seja, os cães colocados em canis, especialmente se sobrelotados, são animais com dificuldade a adaptar-se, a lidar com o seu ambiente, a repousar… a apreciar a vida. São, também, animais mais predispostos a doenças, devido ao carácter imunodepressor do stresse, e a alterações do comportamento (estereotipias, agressividade, medo crónico, ansiedade…). As consequências podem durar toda a vida e podem desencadear-se mesmo depois de pouco tempo de isolamento, de privação de espaço… de stresse, especialmente se ocorrerem em momentos críticos do desenvolvimento do animal.
Todos estas consequências do stresse, resultante de meses ou mesmo anos de vida em canis, têm ainda um outro efeito negativo – são animais com cada vez menor probabilidade de virem a ser adotados. Compreensivelmente.
Se a tudo isto se acrescentar o facto de um animal em constante e irremissível sofrimento mental estar a ocupar o lugar de um outro com possibilidade de ser albergado, alimentado, cuidado e finalmente adotado, percebemos como a preservação de todo e qualquer indivíduo, a qualquer custo, pode ser um péssimo serviço prestado ao bem-estar animal.
Respeito pela dignidade
Para o cão, o que interessa é o presente, o que sente em cada momento e o mal ou o bem-estar que lhe está vinculado. A dor, o medo, o sofrimento, a frustração… o que lhe importa é aquele que experimenta naquele instante. Não tem uma visão e uma expectativa de melhores dias, a perspetiva de um lar e uma família adotiva. Não endura porque melhores tempos virão. O animal quer e tem direito a um bem-estar a cada instante e de forma continuada.
Mas será o stresse assim tão comum e importante? Os efeitos nefastos serão exceções encontradas apenas nos canis com muito más condições?
Se o problema do stresse nos centros de recolha não fosse tão grave e como um impacto tão significativo na qualidade de vida dos animais, não haveria tanta investigação nem tantos artigos publicados sobre a melhor forma de avaliar o seu bem-estar de animais e sobre as formas de amenizar os inconvenientes. Por exemplo, um artigo demonstrou que ter colaboradores voluntários a dar festas aos cães dos canis durante 15 minutos reduzia os indicadores de stresse desses animais (Ragen et al., 2018, Can you spare 15 min? The measurable positive impact of a 15-min petting session on shelter dog well-being). Mas não serão 15 minutos de prazer para disfarçar horas de sofrimento?
Em suma, o bem-estar de um animal não se mede por ausência de fome, doenças ou lesões e muito menos por “apenas” estar vivo. Estar vivo pode ser uma continuidade de agressões. Uma prisão perpétua. Uma vida de frustração, ansiedade e medo. Uma vida que não vale a pena viver.
Aliás, surpreendente e incoerentemente (ou será apenas incoerentemente?) aqueles que defendem que devemos proporcionar a morte medicamente assistida, ou eutanásia, a humanos que apresentem “sofrimento físico ou psicológico intenso persistente e não atenuado para níveis suportáveis e aceites”, não o querem permitir para animais que estarão presos na sua jaula e no seu sofrimento durante 5, 8, 10 ou mais anos!!!!
Vejam, por exemplo, o que a PETA (People for Ethical Treatment of Animals, uma das mais aguerridas associações pelos direitos dos animais nos Estados Unidos) escreve:
“Cães, gatos e outros animais de companhia precisam muito mais do que apenas comida, água e uma jaula. Eles também precisam de cuidados, companhia regular e sustentável, respeito pela sua individualidade e a oportunidade para correr e brincar. Por muito difícil que seja aceitar, a eutanásia, aplicada por veterinários de uma forma humana e indolor, é muitas vezes a forma mais compassiva e dignificante para um animal não adotável deixar este mundo que não tem lugar para ele” (original PeTA, tradução livre do autor).
E isto vindo do país mais rico do mundo onde se tentou reduzir, durante anos, o problema dos animais errantes e onde continuam a deambular centenas de milhares de animais sem casa. Também aqui com os inevitáveis problemas sanitários, de saúde pública, de ataques a outros animais e humanos, de atropelamentos, entre outros, a que assistimos no nosso país.
Muitos outros países e associações defendem estratégias semelhantes. Não gostam da ideia da eutanásia de animais (quem gosta?), mas conseguem perceber que não vale a pena começar a casa pelo telhado esperando que a situação se vá resolvendo… enquanto os animais sofrem nas prisões. Não trocaram a racionalidade pela humanidade, mas são suficientemente inteligentes para procurar as duas.
Garantamos aos nossos animais uma vida digna e não apenas uma sobrevivência… para aplacar as nossas consciências. Se não as desgraças de Sto. Tirso vão-se repetir, com ou sem chamas.
*Médico veterinário