O médico veterinário Ricardo Lobo, membro da direção da Associação Nacional de Médicos Veterinários dos Municípios (ANVETEM), afirma que o cenário que viu nas notícias foi “dantesco” e que já tinha comunicado o caso informalmente à DGAV. Jorge Cid, bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) afirma que “esta tragédia podia ter sido evitada, e não devia acontecer em Portugal, um país europeu e que se quer evoluído”.
A Ordem dos Médicos Veterinários defende que se devem investigar os acontecimentos dos abrigos em Santo Tirso, no distrito do Porto, que foram atacados pelas chamas durante a noite de sábado.
O incêndio deu-se nos abrigos “Cantinho das Quatro Patas” e “Abrigo de Paredes”, na freguesia de Agrela, em circunstâncias que não foram ainda completamente esclarecidas.
O bastonário da OMV, Jorge Cid, apontou que a morte de dezenas de animais é “demasiado grave” e que é necessário analisar os detalhes da ocorrência, considerando ainda urgente a realização de um levantamento nacional sobre possíveis abrigos ilegais.
“Há situações destas em todo o País. O que é urgente é fazer um levantamento nacional de todas as situações de animais que estão abandonados, quem são, onde estão”, refere Jorge Cid, em declarações à TSF.
O bastonário indica que não há capacidade das autoridades portuguesas para a recolha dos animais abandonados e sugere que as equipas de proteção civil passem a contar com médicos veterinários.
“Há outro problema que persiste, que é a integração de médicos veterinários na Proteção Civil; esta situação já aconteceu, por exemplo, durante os fogos de Pedrógão.”
Os canis, considerados ilegais, têm sido alvo de queixas desde 2017, devido às fracas condições de higiene para os animais. Agora, perante o incêndio, vários habitantes locais acusam os proprietários do espaço e Guarda Nacional Republicana (GNR) de lhes terem recusado a entrada durante a noite para o salvamento dos animais.
O PAN (Pessoas-Animais-Natureza) já apresentou queixa ao Ministério Público. O partido acompanhou a situação no local e acusou as autoridades, em publicação nas redes sociais, de não permitirem a entrada nos abrigos para salvar os animais.
O PAN indica, segundo a deputada Bebiana Cunha, que esteve presente no local e prestou declarações ao jornal Público, que cerca de uma centena de animais terão morrido, enquanto cerca de 60 a 80 terão sobrevivido.
Contudo, os números apresentados pela Câmara Municipal de Santo Tirso diferem. Num primeiro comunicado, divulgado nas redes sociais, a autarquia afirmou que terão morrido 54 animais e que 110 foram resgatados. O município veio entretanto atualizar os dados, anunciando 190 animais sobreviventes nos dois espaços (o Cantinho das Quatro Patas e o Abrigo de Paredes). Destes, 113 foram realojados em canis municipais e associações e 77 foram realojados por particulares.
O resgate foi realizado apenas no domingo, porque as autoridades de proteção civil consideraram que não estariam reunidas condições de segurança para realojar os animais durante a madrugada.
A autarquia reitera ainda que “é falso que os Serviços Municipais de Proteção Animal tenham impedido a entrada de pessoas no abrigo de animais ameaçado pelo fogo”.
Há ainda acusações que indicam que o médico veterinário municipal de Santo Tirso não terá visitado o local durante a noite. A GNR publicou também um esclarecimento na sua página de Facebook, afastando a responsabilidade pela morte dos animais e garantindo que a recusa de entrada de pessoas no abrigo não teve influência na morte dos animais.
“É importante salientar que as consequências trágicas deste fogo não tiveram qualquer correspondência com o facto de a Guarda ter impedido o acesso ao local por parte dos populares. A essa hora, já tinham sido salvos os animais que foi possível salvar”, podia ler-se no esclarecimento.
De momento, está também a decorrer uma petição que pede “Justiça pela falta de prestação de auxílio aos animais do canil cantinho 4 patas em Santo Tirso”, que conta de momento com mais de 150 mil assinaturas e que pede “justiça, para que tanto a GNR como a proprietária venham a ser julgados em tribunal e punidos, pelos crimes de maus-tratos aos animais de companhia, negligência e falta de auxílio”.
Alguns CAMV participaram na prestação de primeiros socorros aos animais e outros voluntariaram-se a ajudar.
São 10 os cães que recebemos dos incêndios da Agrela!10 cães traumatizados, debilitados física e mentalmente…10 cães…
Publiée par Asaast – Assoc. dos Amigos dos Animais de Santo Tirso sur Dimanche 19 juillet 2020
Abrigos ilegais e a responsabilidade de supervisão
“O incêndio, de facto, foi uma fatalidade, mas eu não ando a denunciar esse canil publicamente há anos porque tenho alguma coisa contra ele. Eu denuncio esse canil há anos porque é inconcebível que, em 2020, ou em 2018, quando comecei a começar a denunciar este abrigo, existam animais a viver nessas condições”, refere Ricardo Lobo, membro da direção da Associação Nacional de Médicos Veterinários dos Municípios (ANVETEM). Segundo o médico veterinário, o cenário que viu nas notícias foi “dantesco”.
Ricardo Lobo aponta que o problema começa no número de animais errantes do País. Perante a lei que proíbe o abate e a situação de rutura nos Centros de Recolha Oficial de Animais (CROA) dos municípios, o médico veterinário aponta que a existência deste tipo de locais é muitas vezes permitida “só porque as pessoas no fundo acabam por fazer um favor, são menos os animais que andam na rua”.
“Hoje temos um problema grave de animais errantes. Temos no fundo uma desresponsabilização indireta das autoridades competentes que baixaram os braços com a introdução de limitações e constrangimentos, como por exemplo, a lei 27/2016, que impede o abate nos canis. Quando as autoridades também baixam os braços e dizem que não conseguem fazer mais, que não têm ferramentas, não têm hipótese de fazer mais, abrimos as portas a que qualquer pessoa, inclusivamente com síndromes de acumulação e de Noé, possa arvorar ser defensora dos animais e ter, nomeadamente numa zona florestal, num eucaliptal, mais de 200 animais a seu cargo. E não são as únicas, existem mais.”
Ricardo Lobo refere ainda que “aquele abrigo em Santo Tirso não era licenciável”, sublinhando que não é suficiente “fazer um estabelecimento com umas águas residuais e com sombra”. O veterinário acrescenta ainda que é importante garantir que as pessoas que gerem as associações e abrigos estejam devidamente preparadas, bem como realizar um “levantamento exaustivo” destas situações e proceder ao seu devido encerramento, em conformidade com as necessidades.
“Houve muita gente a fazer as denúncias e houve, inclusivamente, um processo que foi arquivado no Ministério Público, arquivado por ausência de maus-tratos. Não havia, de facto, maus-tratos, mas havia um atropelo enorme às normas dos alojamentos constantes do bem-estar animal do 276/2001 do decreto-lei. E, portanto, nessa altura, o médico municipal devia ter comunicado à Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), já que fez um relatório para o Ministério Público, que conhecia aquele local, e a DGAV tinha de ter ido àquele local com um colega, fazia uma vistoria e mandavam encerrar o local. Depois, se não conseguiam encerrar o local era outra história, mas pelo menos tinham andado até aí”, defende o responsável da ANVETEM.
Segundo o veterinário, “a Câmara sabia, o médico veterinário municipal sabia”, salientando que a DGAV, mesmo que não oficialmente, também teria conhecimento do caso. A VETERINÁRIA ATUAL entrou em contacto com a DGAV para tentar confirmar esta informação e encontra-se à espera de resposta.
“A DGAV podia não saber oficialmente, mas eu disse-o presente com a subdiretora e a diretora de Serviços do Norte num evento, não lhes comuniquei por escrito. Houve um evento, em que estavam, no qual falei desta situação e falei como um exemplo do maior constrangimento que a lei 27/2016 nos coloca. Todos nós trabalhamos para um mundo em que não seja necessário abater nenhum animal porque não possa ser adotado. Agora, existem situações concretas no nosso dia a dia em que nós sabemos que isso não é possível, e isso não pode ser uma desculpa que nos impeça de resolver uma questão tão sensível como a do abrigo de Santo Tirso e outras que existem.”
Para Ricardo Lobo, casos como os de Santo Tirso deveriam ser tratados em conjunto com a DGAV e os vários centros de recolha oficial, que teriam de se ajustar consoante a sua lotação: “E o reajustamento tem de passar por alguns abates de animais que não são adotados. Só dessa forma é que, com critério, com decisões técnicas ponderadas e com autonomia é que as autoridades podem resolver isto. Não podemos andar a deixar estes locais existirem só porque as pessoas no fundo acabam por fazer um favor, são menos os animais que andam na rua. Porque neste momento, as autoridades, como não têm forma de resolver o assunto, já baixaram os braços. E eu acredito num Estado de Direito e acredito que as pessoas devem ser feitas com transparência, com as autoridades oficiais a atuar, a coordenar, a liderar e a operacionalizar, que é o que depois falta”, afirma.
Para o responsável da ANVETEM, tal como para o bastonário da OMV, a gestão deve passar pela fiscalização de todos os abrigos e associações.
“Tragédia que podia ter sido evitada”
Em comunicado enviado durante a tarde à VETERINÁRIA ATUAL, Jorge Cid afirma que “esta tragédia podia ter sido evitada, e não devia acontecer em Portugal, um país europeu e que se quer evoluído”.
“Trata-se de um problema nacional que, para ser resolvido, exige um estudo aprofundado do abandono em Portugal. O número de animais abandonados está completamente descontrolado, com canis municipais sobrelotados, um elevado número de animais que permanecem nas ruas e abrigos ilegais sem condições e sem controlo das autoridades competentes”, alerta o bastonário da OMV.
A Ordem dos Médicos Veterinários tem vindo a alertar para a problemática do abandono dos animais de companhia que está na raiz do problema de situações como a que ocorreu em Santo Tirso. O assunto está a ser analisado por um Grupo de Trabalho para o Bem-Estar Animal, em que a OMV está representada, e que tem como missão a definição de uma estratégia nacional para os animais errantes.
Para evitar o abandono e a morte de mais animais em Portugal, a OMV defende várias medidas que passam pela educação da população, a promoção do controlo reprodutivo destes animais, um maior investimento na fiscalização e a integração de médicos veterinários na Proteção Civil, com a definição de planos de ação em situações de catástrofe para uma atuação célere e eficaz em contexto de crise.
O responsável da ANVETEM concorda, sobretudo na necessária pedagogia, defendendo que “a questão da educação é absolutamente fundamental para atingir o ponto em que deixamos de ter animais nas ruas”. Para Ricardo Lobo, “tudo o resto depois vem por arrasto”, sendo necessário realizar uma gestão dos CROA associada a campanhas de sensibilização e esterilização, por forma a tentar atingir, daqui a dez anos, um equilíbrio entre os animais para adoção e as famílias interessadas em adotar.
“Nós não o atacamos [o problema dos animais errantes] com o fim do abate nos canis nem com as esterilizações, nem com os 500 mil euros da DGAV para esterilizar, porque quando esterilizamos um animal não estamos a gerar um espaço a mais num canil, estamos a evitar futuras ninhadas. O ponto fundamental é o da educação das pessoas”, defende.
*Notícia atualizada durante a tarde, com as declarações de Ricardo Lobo e de Jorge Cid.