É a base de todas as especialidades e assume um relevante contributo em todo o tipo de doenças. Não apenas na prevenção e no diagnóstico, mas também em casos clínicos “de fim de linha”. Portugal já tem em curso, desde 2020, a primeira residência certificada pelo Colégio Europeu de Medicina Interna, o que pode vir a aumentar o interesse por parte da classe.
O dia de trabalho de Rodolfo Oliveira Leal no Hospital Escolar da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (FMV-UL) começa às 8h30 com a ronda dos animais hospitalizados. É feita a ponte com o serviço de Medicina para discutir os diagnósticos diferenciais e delinear os exames complementares de diagnóstico dos pacientes internados. Das 9h00 às 13h00, o médico veterinário Internista e responsável pelo serviço de Medicina Interna do Hospital Escolar da FMV-UL dedica-se às consultas onde analisa os casos clínicos referenciados, as segundas opiniões ou seguimentos e, maioritariamente, com alunos. “O facto de trabalhar com estudantes dá-me um estímulo extra diário. É extremamente gratificante tentar incutir-lhes o espírito crítico necessário para os casos médicos e de estimulá-los a fazer uma abordagem rigorosa com diagnósticos diferenciais. Não me canso de o repetir”, explica.
Em certos dias da semana, a equipa realiza endoscopias (gastroduodenoscopias, traqueobroncoscopias, etc.) dos casos internos ou referenciados. Rodolfo Leal diz que “há colegas que referenciam só para este tipo de exames pelo que existem alguns dias fixos para esses casos”. Depois do almoço – a maior parte dos dias fora de horas – começa a jornada da tarde, à qual o médico veterinário se dedica aos resultados de análises, à elaboração de relatórios e à comunicação com os colegas referentes. “Além dos alunos tenho também uma residente e um interno de especialidade que supervisiono e estudantes de mestrado que estão sob minha orientação. Cabe-me discutir também com eles os casos do dia nesse horário”, conta.
Uma vez por semana, o hospital realiza o “book club”, momento em que, durante uma hora, discutem-se capítulos dos principais livros de Medicina e o Journal Club, durante o mesmo período de tempo que permite à equipa discutir os principais artigos de várias áreas publicados recentemente. “Só assim conseguimos tentar acompanhar a rápida evolução da medicina interna”.
Doroteia Bota é médica veterinária especialista em medicina interna de pequenos animais (Dip. ECVIM-CA) a exercer atualmente no Hospital Veterinário do Restelo (HVR) e os seus dias são passados a realizar consultas de especialidade e endoscopias respiratórias, digestivas e urinárias. “Por outro lado, discuto os meus casos com os colegas da imagem a quem muitas vezes tenho de recorrer para chegar a um diagnóstico preciso. Também gosto muito de falar com as colegas da patologia clínica, seja a colega que temos in-house, sejam outras que estão em laboratório.” Na sua opinião, “uma equipa multidisciplinar trabalha melhor e tem mais chances de chegar a bom porto.”
  “Uma equipa multidisciplinar trabalha melhor e tem mais chances de chegar a bom porto” – Dotoreia Bota, Hospital Veterinário do Restelo
Os médicos veterinários internistas veem o animal como um todo e recebem casos crónicos de gastroenterologia, uro-nefrologia, hematologia, doenças infeciosas, endocrinologia, etc. “Creio que, se queremos oferecer um serviço de qualidade aos nossos clientes, temos de ter uma parte da equipa dedicada à medicina interna”, sublinha Doroteia Bota.
Todas as especialidades são essenciais num hospital veterinário, sobretudo, se for de referência, avança Rodolfo Leal. “A medicina interna é como que o ‘esqueleto’ de um hospital veterinário. Na realidade, os médicos veterinários internistas são uma espécie de central telefónica para os casos da medicina geral que fogem um pouco à rotina e são a ajuda, tantas vezes necessária, aos casos de internamento quando algo não está a correr como o previsto”, explica. Não raras vezes, são chamados a intervir “no fim da linha” de casos em que o tratamento empírico já foi tentado e não está a resultar. “É um papel um pouco ‘ingrato’ já que acabamos por ser a ponte entre vários serviços complementares, tentando construir o ‘todo’ necessário para que o caso clínico avance”, defende. Porém, acrescenta, esse esforço “nem sempre é visível, mas é essencial para que tudo evolua no bom sentido”.
“Os médicos veterinários internistas são uma espécie de central telefónica para os casos da medicina geral que fogem um pouco à rotina e são a ajuda, tantas vezes necessária, aos casos de internamento quando algo não está a correr como o previsto” – Rodolfo Oliveira Leal, Hospital Escolar da FMV-UL
Como tem evoluído a medicina interna?
Para o médico veterinário da FMV-UL, a especialidade “tem evoluído bastante no nosso País”. Ao ser uma área particularmente extensa que engloba várias “subáreas” (gastroenterologia, endocrinologia, medicina respiratória, uro-nefrologia etc.), “a sensibilidade dos tutores para a especialidade per si é talvez um pouco menor”. Por outras palavras, Rodolfo Oliveira Leal considera que “é mais simples perceber o que é um oftalmologista veterinário ou um neurologista veterinário face a um veterinário internista”. No entanto, considera que “o caminho em Portugal tem vindo a mudar e que cada vez mais o papel da referência e da consciencialização de que os problemas médicos também podem ser reencaminhados para especialistas tem felizmente vindo a crescer”. No que respeita a colegas dedicados à área, tem conhecimento de três especialistas diplomados em medicina veterinária a trabalhar em Portugal e destaca “a primeira residência certificada pelo Colégio Europeu de Medicina Interna, em curso desde 2020, na FMV-UL”.
Desde junho de 2021, a faculdade abriu também um posto de internato especializado em medicina e que é um passo intermédio para quem quer aprofundar a carreira no mundo da medicina interna, antes da residência. “É muito gratificante ver que Portugal começa a ter uma maior oferta de especialistas, de carreira médica em medicina interna e que já se pode tirar a especialidade no nosso País, algo que era impensável há quatro anos”, assinala o também professor da FMV-UL que considera que a medicina interna está a crescer no caminho certo em Portugal.
Apesar de concordar com o colega, Doroteia Bota considera que muito há ainda a percorrer comparativamente com outras áreas da medicina veterinária de pequenos animais. “A começar pelos donos dos animais que, muitas vezes, não reconhecem que a medicina interna é uma especialidade, tal como a oftalmologia ou a neurologia. Depois, também creio que os próprios médicos veterinários, mais facilmente referenciam um caso de outra especialidade que um caso de medicina interna, precisamente por haver alguma desvalorização desta área.” Por último, a médica veterinária acredita que o futuro passará por todos, em conjunto, compreenderem que “a equipa multidisciplinar trabalha muito melhor”.
Maria Joana Dias, médica veterinária, atualmente a fazer a residência em medicina interna pelo Colégio Europeu de Medicina Interna na FMV-UL explica à VETERINÁRIA ATUAL que o seu objetivo sempre foi e será continuar a desempenhar o melhor possível esta profissão. “Nesse sentido, o maior triunfo que temos é devolver a saúde e bem-estar aos que não a têm. E a chave para isso é estabelecer um diagnóstico correto. Para mim, a medicina interna representa aprender a estabelecer diagnósticos corretos, saber navegar entre os diferenciais, relacionar diferentes sistemas e órgãos e compreender o animal como um todo.” A residência surgiu como uma oportunidade que considera “extraordinária e exigente” para conseguir evoluir e ganhar as ferramentas necessárias para o seu dia-a-dia como médica veterinária.
“A medicina interna é uma das especialidades mais completas. Vai desde a fisiologia ao diagnóstico, ao tratamento e à prevenção. Avalia o animal como um todo e relaciona os diferentes sistemas”, defende. Na sua opinião, “o facto de existir uma equipa de medicina veterinária interna num hospital é uma mais-valia para o maneio de casos mais complicados ou que carecem de uma maior investigação no diagnóstico e acompanhamento no tratamento”.
“A medicina interna é uma das especialidades mais completas. Vai desde a fisiologia ao diagnóstico, ao tratamento e à prevenção. Avalia o animal como um todo e relaciona os diferentes sistemas” – Maria Joana Dias, médica veterinária, residente em medicina interna pelo Colégio Europeu de Medicina Interna
No futuro, Joana Dias imagina-se a continuar a fazer clínica, que é o que realmente gosta, e, quem sabe, conciliar com a docência no futuro. “A educação é a base e gostaria de passar aos outros o que também me foi transmitido. Nesse sentido, penso que um hospital universitário seria uma boa opção para trabalhar”, revela aquela que é a primeira médica veterinária em Portugal a ter a oportunidade de fazer a residência no próprio país, passo que encara como “um grande privilégio”. “Acaba por ser um marco importante, e, espero eu, de viragem, para a especialização em medicina veterinária em Portugal. Acredito que ao especializarmo-nos estamos a melhorar o atendimento que podemos prestar aos nossos animais de companhia.” Resume a residência como “uma viagem entre livros, trabalhos, investigação, atenção aos detalhes de cada animal, endoscopia e todo um mundo de diferenciais”. E, se tudo correr bem, faltam cerca de dois anos e meio para terminar.
Luís Montenegro, médico veterinário e diretor clínico do Hospital Referência Veterinária Montenegro considera que todos os hospitais veterinários têm de ter um bom serviço de medicina interna porque esta é a base de tudo o que é medicina hospitalar. “Independentemente de estarmos a tratar uma doença dermatológica, oftalmológica, de cirurgia, a medicina interna é que vai garantir a base e o equilíbrio entre todas as especialidades. Por vezes, é pouco valorizada, mas é muito abrangente e ajuda a explicar as doenças em geral”, explica.
“Independentemente de estarmos a tratar uma doença dermatológica, oftalmológica, de cirurgia, a medicina interna é que vai garantir a base e o equilíbrio entre todas as especialidades” – Luís Montenegro, Hospital Referência Veterinária Montenegro
Acompanhar a inovação
É uma especialidade em constante mudança, o que torna desafiante acompanhar tanta inovação. “A investigação clínica e o futuro estarão muito focados em algoritmos, inteligência artificial e ‘prediction tools’. Acho que o futuro da medicina interna vai sem dúvida passar por aí. Vai ser fácil com base em programas de informática e nesses algoritmos termos alertas e mini relatórios que são gerados automaticamente e nos dizem ´o animal X com os sinais Y e Z tem uma alta probabilidade de ter esta doença’”. Desta forma, os erros acabarão minimizados e as árvores de decisão e os diferenciais serão sustentados de uma forma mais objetiva”, refere Rodolfo Oliveira Leal.
O médico veterinário tem a perceção de que os médicos internistas não deixarão de existir, mas que a inteligência artificial virá ajudar muito.
Doroteia Bota destaca sobretudo “a possibilidade de ter máquinas de excelente qualidade para a realização de exames de sangue in loco e, ainda, os exames complementares de diagnóstico, como todo o tipo de endoscopias que são realizadas, mas também a medicina interventiva, como a colocação de stents traqueais, entre outros”.
O diagnóstico é essencial como em qualquer especialidade. Por esta ser uma especialidade tao abrangente que necessita de integrar os vários órgãos e sistemas, “cada caso pode vir a ser uma verdadeira ‘caixa de surpresas’ onde tudo deve tentar ser explicado como que se de um puzzle se tratasse. Este ‘jogo’ de, a partir do exame clínico formular a lista de problemas, estabelecer diagnósticos diferenciais e ir realizando exames complementares que nos permitam afirmar ou refutar esta ou aquela hipótese fazem do plano de diagnóstico em medicina interna um verdadeiro desafio”, considera o docente da FMV-UL. Sem diagnosticar, não há garantias. E para Doroteia Bota, a maior diferença na atuação dos médicos internistas passa pela “necessidade de ter um conhecimento muito alargado de várias áreas da medicina interna, tão diferentes entre elas: hematologia, respiratória, uro-nefrologia, gastroenterologia, etc.”.
O papel dos enfermeiros veterinários
São essenciais em qualquer especialidade, mas sobretudo na medicina interna, os enfermeiros desempenham um papel complementar à ação do médico veterinário internista e, na opinião de Rodolfo Oliveira Leal, “para aquele acompanhamento, muitas vezes, tão necessário a médio longo prazo (exemplo: pacientes diabéticos, pacientes com doença de Addison, pacientes com hipertensão arterial, proteinúria, etc.). Se os controlos intermédios forem otimizados com enfermeiros, tudo corre melhor”. O médico veterinário é um defensor assumido da subespecialização em enfermagem veterinária. “À semelhança de outros países do mundo (como o Reino Unido ou os EUA), ao ter subespecialidades, conseguimos otimizar recursos e prestar conjuntamente um melhor serviço. Acho que o futuro da enfermagem também caminha nesse sentido e espero que rapidamente isso ocorra em Portugal.”
Muito do que Doroteia Bota sabe executar ao nível técnico, como tirar sangue, colocar vias endovenosas, toracocenteses, drenagem de pericárdico, entubar animais, entre outros, “foi aprendido com enfermeiros”.
*Artigo publicado originalmente na edição n.º 153 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de outubro de 2021.