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CAMV

Linha de apoio ao luto: Para que o tutor não sofra sozinho

Image generator/ChatGPT

Nem só de consultas, cirurgias, vacinas e desparasitações vive um centro de atendimento médico-veterinário (CAMV). No Hospital do Gato também se ajudam os tutores a lidar com a perda de um animal de companhia. O Grupo disponibiliza gratuitamente uma Linha de Apoio ao Luto que ajuda emocionalmente quem passa pela eutanásia ou perda súbita de um animal e também acompanha os tutores com gatos a receberem cuidados paliativos.

Depois de perder um animal de companhia, tem quem não se consiga desfazer do bebedouro e do comedouro, quem deixe a caminha na divisão preferida do animal durante dias, semanas ou meses como se esperasse olhar para lá e vê-lo a dormir descansado. Tem quem guarde a mantinha que o cobria nos dias mais frios, quem seja incapaz de se livrar do brinquedo com que se divertia tempos a fio, quem continue a ouvir o som das patinhas a rondar para casa. E, sobretudo, tem quem sinta vergonha de assumir tudo isto, se sinta pouco ou nada compreendido na dor que sente até entre os entes mais chegados.

 

O luto por um animal de companhia tem vindo a ganhar visibilidade na sociedade, o partido Pessoas-Animais e Natureza (PAN) até já propôs no Parlamento o direito a um dia de luto por morte de animal de companhia, mas ainda é um momento muitas vezes vivido a sós ou no núcleo familiar muito restrito que convivia com o animal no lar.

A pensar na dor que os tutores sentem pela perda do animal de companhia, o Grupo Hospital do Gato fez nascer uma Linha de Apoio ao Luto que, entretanto, já alargou horizontes no acompanhamento que faz aos clientes do hospital, clínica e consultório que completam as unidades do Grupo.

 

“Uma eutanásia tem uma hora marcada na agenda, a seguir temos outra consulta e não conseguimos ficar a falar com a pessoa o tempo que queríamos. Mas ela continua a precisar de falar com alguém e, muitas vezes, nem os próprios familiares e amigos compreendem isso” – Maria João Fonseca, diretora clínica do Grupo Hospital do Gato

Fotografia: Rodrigo Cabrita

Maria João Fonseca, diretora clínica e fundadora do Grupo, explica à VETERINÁRIA ATUAL que a ideia de algo que ajudasse os tutores durante este momento difícil ganhou raízes logo aquando da abertura de portas da primeira unidade, em Algés, há mais de 10 anos. “Começámos por ter uma psicóloga em part-time que acompanhava as pessoas quando chegavam mais ansiosas para realizar a eutanásia. E se as pessoas decidissem assistir à cremação do animal, a psicóloga podia acompanhá-las [se manifestassem esse desejo]”, recorda.

 

Contudo, essa técnica de saúde mental nem sempre estava nas instalações, tinha um horário reduzido, e alguns clientes mostravam-se mais relutantes em passar no hospital uns dias após a eutanásia para falar com ela. Tem quem não consiga mesmo passar por uma unidade médico-veterinária nas semanas ou meses seguintes à morte do animal, confidenciou a médica veterinária. Em determinada altura, a psicóloga acabou por mudar de vida e dedicou-se em pleno à experiência da maternidade.

Mas a ideia de um serviço, sem custos para o cliente, que pudesse ajudar quem vivia a perda do animal de companhia, neste caso apenas gatos, não largou Maria João Fonseca. Em primeiro lugar porque era uma necessidade que sentia há imenso tempo e “pela qual luto há anos, mesmo nos sítios em que trabalhei [por conta de outrem] e, sendo este o primeiro hospital 100% meu, não queria desistir da ideia”.

 

Em segundo, porque a médica veterinária sabe por experiência própria a importância do apoio emocional. Maria João Fonseca faz voluntariado na linha Conversa Amiga, um serviço de atendimento telefónico da Fundação Inatel que tem como objetivo prestar apoio e acompanhamento emocional a todos os cidadãos, e sentia que podia reproduzir resposta semelhante no Grupo veterinário que gere. Na mesma linha telefónica também era voluntária outra colaboradora do Hospital do Gato e, assim, pareceu-lhe que estava tudo alinhado. “Fez-se um clique. Pensei ser uma coisa que poderia funcionar e até já tinha a pessoa certa para isso, a Paula Reis, que já fazia connosco o trabalho de avaliação da satisfação do cliente”, lembra a diretora clínica.

Dar tempo e espaço para falar da perda

Depois de um tempo a marinar a ideia, nasceu, então, no fim do período pandémico a Linha de Apoio ao Luto, que funciona todas as sextas-feiras das 16h00 às 19h00. O acesso do cliente é muito simples e pode acontecer por duas vias. Aquando da eutanásia, é entregue um panfleto ao tutor, dando a conhecer o número, o horário de funcionamento e a pessoa que o irá escutar. Todavia, não raras vezes, é o próprio profissional do CAMV que acaba por contactar a Paula Reis e pedir para ser ela a ligar ao cliente que perdeu o animal de companhia.

São situações difíceis, angustiantes e é imperativo “criar empatia nestes momentos de perda”, reconhece a diretora clínica. Contudo, no quotidiano rotinado de um hospital ou de uma clínica, há uma agenda a cumprir e por mais que o médico veterinário queira ficar a confortar o tutor, há um momento em que tem de continuar com as consultas previstas. “Uma eutanásia tem uma hora marcada na agenda, a seguir temos outra consulta e não conseguimos ficar a falar com a pessoa o tempo que queríamos. Mas ela continua a precisar de falar com alguém e, muitas vezes, nem os próprios familiares e amigos compreendem isso. E no próprio dia ou no dia a seguir vai ter de ir trabalhar como se nada tivesse acontecido”, descreve. Só essa obrigatoriedade de continuar a viver o quotidiano como se nada tivesse acontecido pode representar um trauma que aumenta as possibilidades de desenvolver quadros depressivos. Esse é um dos motivos por que no Grupo Hospital do Gato, quando um dos profissionais perde um animal de companhia tem direito a ficar um dia em casa.

Quem está do outro lado da linha é, então, Paula Reis. A colaboradora já estava habituada a lidar com os clientes do Grupo para fazer a avaliação da satisfação dos serviços, recebeu de bom grado a proposta de Maria João Fonseca. Formada em História, com uma história de vida repleta de desafios – aos 29 anos ficou numa cadeira de rodas e já perdeu um filho – Paula Reis dedica parte significativa do seu tempo ao apoio emocional. Na linha Conversa Amiga, onde faz voluntariado e realizou a formação requerida para este tipo de acompanhamento, ganhou a experiência e o “gosto por conversar”. Afinal, é sobretudo isso que as pessoas precisam: conversar sobre o que estão a sentir. Para robustecer as suas capacidades, já adicionou mais três formações ministradas à distância por entidades especializadas no apoio ao luto na América do Norte.

“Uma pessoa afeiçoa-se ao animal, cuida dele, faz companhia e no momento em que o animal parte a pessoa precisa de apoio porque é muito difícil fazer o luto sozinho” – Paula Reis, técnica da Linha de Apoio ao Luto

Direitos reservados

Diz que “é incrível” a forma como as pessoas se abrem durante o telefonema. “É uma conversa muito íntima. Quando são os veterinários que me pedem para ser eu a ligar digo sempre que venho trazer um abraço aconchegante”, conta à VETERINÁRIA ATUAL.  Fala do gato, pergunta como ele chegou à família, como era a sua personalidade “e levo-os a pensar em todos os momentos bons que viveram com o animal que perderam”. Sobretudo, acrescenta, dá “tempo e espaço para, com alguma espontaneidade, a pessoa falar” e, se não quiser conversar, a técnica assegura que essa vontade é respeitada.

Não raras vezes, a conversa continua com mais telefonemas, com a troca de mensagens, Paula Reis permanece em contacto se os tutores assim o desejarem e manifestarem. Os clientes também recebem sempre um cartão personalizado feito à mão pela técnica com uma mensagem de conforto em conjunto com o modelo de gesso onde foi calcada a patinha do animal que partiu. Tudo momentos que pretendem perpetuar “o companheiro de quatro patas” que tanta falta fará na vida de quem o acolheu.

Em todo este processo, Paula Reis faz questão de frisar: “Eu não julgo”. Esse é um ponto muito abordado nas conversas. Os tutores sentem-se “julgados, dizem que a família e amigos não compreendem que eles digam que na primeira noite dormiram agarrados à mantinha do gato ou que ainda não se conseguiram desfazer da fonte de água que permanece na cozinha. Mas cada um lida com a perda à sua maneira e não acho correto que se condene, se julgue ou diga que é um disparate sentir esta tristeza pela perda do companheiro de quatro patas. Acho até muito bonito que as pessoas consigam criar estas ligações tão intensas. É o que de melhor temos enquanto humanos”.

Maria João Fonseca fala mesmo “num luto envergonhado” que ainda hoje vive quem perde um animal de companhia. Daí que, garante, “as pessoas se sintam tão acarinhadas quando recebem o telefonema da Paula”.

Começar a preparar a perda

Entretanto, com cerca de dois anos de atividade, novas necessidades foram aparecendo e a linha passou também a prestar apoio emocional a clientes que têm gatos em fase adiantada de doença e já estão em cuidados paliativos.

“Ainda há dois dias estive ao telefone com uma senhora que tem o gato muito mal. Pensa que já tomou a decisão [de eutanasiar], mas não consegue avançar. É um ato de amor, muito corajoso, mas é muito doloroso. As pessoas até podem saber que fizeram o melhor e que foi a decisão mais acertada, mas sentem-se muito culpadas porque estão convencidas até à última que o animal recupera”, relata Paula Reis.

Nesses momentos, assegura, nas suas palavras está sempre a sensibilidade de aconselhar o tutor a conversar muito com os profissionais do Grupo, a tirar todas as dúvidas que possa ter para tomar a decisão fundamentada em ciência e conhecimento médico.

Não obstante, reconhece, “qualquer perda é dramática e precisa de ter um luto”. “Uma pessoa afeiçoa-se ao animal, cuida dele, faz companhia e no momento em que o animal parte a pessoa precisa de apoio porque é muito difícil fazer o luto sozinho”, frisa Paula Reis, para quem este serviço consegue trazer “alguma serenidade e só de escutar os tutores, ouvir a dor que sentem ou a culpa é como se ajudasse a esvaziar um balão dentro da pessoa. Acabam por sentir um alívio e um aconchego”.

Linha de apoio ao luto: “Para nós também é um descanso”

Maria João Fonseca reconhece igualmente os benefícios desta linha de apoio para a vida dos profissionais do Grupo. “Para nós também é um descanso, tira-nos um peso de cima porque, depois daquele momento difícil, sabemos que as pessoas não vão ficar desamparadas”, argumenta.

Como já tinha reconhecido, a eutanásia é uma marcação na agenda que tem hora marcada após a qual a vida do CAMV tem de continuar e era, efetivamente, um peso para o profissional ficar a pensar como aquele tutor ia ficar sem rede de apoio para lidar com todas as emoções que sentia quando saísse das instalações.

No trabalho que faz com os tutores, Paula Reis também sente que a linha telefónica é benéfica para os profissionais do Grupo. “Sinto que o meu trabalho também os ajuda, que contam comigo. Sei que qualquer médico veterinário quando faz uma eutanásia abraça o tutor, são todos muito humanos no Hospital do Gato. Mas também sei que, depois, têm outras consultas, a vida em clínicas é mesmo assim, e com o meu trabalho eles ficam mais tranquilos porque não há um corte desse apoio ao tutor e dou continuidade ao trabalho iniciado em consultório”, explica.

*Artigo publicado na edição 184, de julho/agosto, da VETERINÁRIA ATUAL.

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