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Animais de Companhia

Gerir o stress felino ajuda a respeitar o tempo e o temperamento da espécie

Ilustração: Al Costa

O stress afeta os gatos em vários ambientes, mesmo em casa. Não é algo exclusivo da ida a uma consulta. Existem estratégias que podem ser acauteladas com previsibilidade e que podem tornar as experiências felinas mais felizes e tranquilizadoras. Para bem de todos: gatos, tutores e profissionais do setor.

“Um gato não é um cão”. Esta é uma frase muito repetida quando entrevistamos médicos veterinários. Na prática, isto significa que o temperamento desta espécie e as especificidades não são as mesmas. “Os gatos são animais que prezam o seu território, que lhes é familiar e é onde se sentem seguros. São também animais rotineiros e que necessitam de previsibilidade, familiaridade e controlo”, começa por explicar Rita Vilela, médica veterinária do Departamento de Comportamento Felino no Grupo Hospital do Gato. Além de “excelentes predadores, os gatos são também presas, o que faz com que estejam constantemente alerta dos possíveis perigos que os rodeiam”. Isto significa que qualquer mudança de ambiente pode despoletar ansiedade e medo. “Quando são retirados do seu ambiente de forma repentina para, por exemplo, serem levados até a um CAMV, a perceção de segurança fica comprometida pois deixa de haver previsibilidade e controlo”, acrescenta.

Há uma explicação histórica para as características dos gatos. “São fisiologicamente muito semelhantes aos seus antepassados ancestrais. E ao nível do comportamento isto também se verifica. Ao contrário dos cães, por exemplo, em que vemos um grande afastamento do lobo, o gato mantém-se idêntico ao Felis Sylvestris, e a prova disso é o facto de se manter um carnívoro estrito”, refere a enfermeira Mónica Santos, também do Grupo Hospital do Gato. O gato no seu habitat natural é um caçador exímio, mas também presa de animais maiores. “Isto faz com que seja um animal muito territorial e com hábitos de rotina muito marcados para evitar ser caçado.” A enfermeira faz uma analogia para explicar esta realidade: “Se conseguíssemos transcrever os seus pensamentos provavelmente seriam: “Se passei aqui, cacei ali, descansei naquele galho, trepei aquele muro (…) e nada me aconteceu, amanhã vou repetir o mesmo e vai correr da mesma forma”.


Em consulta, explica a enfermeira, “os tutores referem que os seus gatos parecem saber a hora a que vão receber a ‘latinha’ de comida, a que horas chega determinado familiar e quando alguma coisa não é bem assim, parece que fica chateado!”.  São algumas das frases ouvidas em consulta e que se traduzem apenas no facto de estes animais quererem apenas “ter a garantia de que vão chegar ao final do dia sãos e salvos e, para isso, repetem tudo o que conhecem como seguro”. Por outro lado, quando alguma coisa foge da rotina, “são ativados todos os alertas de que possivelmente vão ser caçados. Qualquer mudança no seu ambiente ou na sua rotina torna os gatos mais ansiosos”.

Nos gatos, os sentidos de audição, olfato e visão “são extremamente apurados”. Logo, avança Rita Vilela, sempre que se vejam numa situação em que estão perante outros animais – outros gatos ou espécies –, “pessoas que não lhes são familiares, bem como cheiros e sons aos quais não estão habituados, aumentam as sensações de desconforto, medo e ansiedade”. A resposta mais usual por parte de um gato quando está perante uma situação que lhe causa ansiedade ou medo “é evitá-la, fugindo ou escondendo-se. Quando não lhes é permitido ter este comportamento natural, aumenta o grau de frustração e espoleta a resposta comportamental negativa”.

“Sinto que o receio que muitas vezes se gera em torno do paciente felino é apenas devido ao desconhecimento sobre as necessidades e características da espécie, o que acaba por criar uma barreira entre o médico veterinário e o paciente”
Rita Vilela, Hospital do Gato

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Cátia Oliveira, diretora clínica do Espaço Gato, no Funchal, também enfatiza esta ideia indicando que os gatos são “simultaneamente predadores e presas, o que significa que devem ter esta dualidade de precisarem de controlo, mas também de segurança. Até porque “eles nunca deixam de ser gatos mesmo vivendo connosco”. Por esse motivo, quando algum tutor contacta este CAMV para antecipar uma visita do seu gato ao CAMV, é sempre importante saber um pouco mais sobre o temperamento do gato para se poder prever como poderá ser a experiência. “Há gatos que ficam mais inquietos e toleram muito pouco sair do seu território e de onde se sentem seguros porque a partir do momento em que são trazidos de casa está a ser criada alguma vulnerabilidade.” Há gatos mais confiantes do que outros que tendem a gerir pior quando saem do seu ambiente. “Os mais tensos podem vir com algum ansiolítico prévio, em função da condição de saúde de que se possa suspeitar ou que já tenha sido diagnosticada e essa é uma forma de reduzir o stress associado à visita.”

Os cães são “mais sociáveis, vivem em grupo e têm uma maior adaptabilidade às mudanças de ambiente”, explica a médica veterinária. Os gatos são “muito territoriais, sozinhos”, mais desafiantes e exigem um pouco mais do tempo dos profissionais de medicina veterinária, além de necessitarem de previsibilidade e de rotina, o que significa que há aspetos que os tutores podem acautelar em casa, desde logo, tornar a transportadora como “um local seguro”, em que os gatos se sintam confortáveis. “Tem de haver uma familiarização desse objeto antes da vinda à consulta. Podem ser usadas feromonas sintéticas em forma de spray para pulverizar a própria transportadora, o que emite uma sensação de segurança e de conforto ao gato”, acrescenta a médica do Espaço Gato. Os tutores podem aproximar os gatos à transportadora desde muito pequenos, “sempre com reforço positivo”. A médica veterinária recomenda treinos curtos, repetidos várias vezes, de forma a torná-los consistentes. “No gato, é muito importante a previsibilidade porque lhes confere a sensação de segurança.”

“Temos situações de polifagia que vão ser iniciadas pelo aumento do cortisol. Por outro lado, vai também aumentar a resistência à insulina”
Gonçalo da Graça Pereira, especialista em Medicina do Comportamento

Gonçalo da Graça Pereira, médico veterinário e especialista europeu em medicina do comportamento, em entrevista ao podcast da Veterinária Atual, explica que existem muitas causas de stress, mas o que enfatiza como uma das mais importantes é o facto de existirem recursos partilhados entre vários gatos, nas casas dos tutores. “O gato não é independente, como muita gente acredita que é, no entanto, cada gato vive como se fosse uma unidade individual independente.”

A escolha da transportadora também deve ser feita com algum cuidado. “Do nosso ponto de vista, a mais adequada seria uma transportadora plástica, rígida, onde se consiga retirar o topo, que seja de fácil higienização porque todos os cheiros são mensagens que dão sinal de stress, medo e ansiedade”, explica Cátia Oliveira. É por isso que cada gato deve ter a sua própria transportadora, que seja marcada pelo seu próprio cheiro, e não de outros. “De igual modo, não devem ser transportados outros gatos porque em ambiente de stress podem magoar-se.”

No transporte, recomenda-se o recurso a uma manta ou uma toalha para não se sentirem assoberbados com os estímulos do exterior. Deve evitar-se ainda que a deslocação seja instável, com a transportadora a baloiçar. Já no CAMV, o cenário ideal, segundo a diretora clínica do Espaço Gato, seria “chegarem à clínica e poderem ser logo atendidos, de modo a terem o mínimo tempo de espera na receção”. Nesta clínica, os animais mais tensos são levados para uma zona em que esteja escuro e tranquilo, onde não esteja ninguém. “Nada é isento de stress, isso é utópico, mas tudo o que podemos fazer para o reduzir, será benéfico.” É preciso deixá-los explorar o ambiente à vontade. Mas, claro que isto tem de ser visto gato a gato. “Um gato mais tímido nunca deve ser forçado a sair da transportadora ou, no caso de ter uma parte de cima que possa ser retirada, o exame físico pode ser feito com o animal dentro da mesma. São pequenos truques que vamos fazendo.”

Quando não é possível iniciar a consulta à hora prevista, na opinião de Mónica Santos, é preferível “esperar no carro ou num consultório que esteja disponível, mesmo que o médico veterinário ainda não consiga entrar para consulta”.

Alguns CAMV mais generalistas e que não sejam apenas dedicados aos gatos também têm apostado no conforto e bem-estar da espécie. É o caso do Hospital Veterinário Vetset – One Vet Group, em Palmela. “Quando mudámos de uma clínica pequena para hospital, em 2011, tivemos a preocupação de criar uma sala de espera separada para cães e gatos”, explica a diretora clínica Cristina Lemos Costa. De igual modo, o consultório é exclusivo de gatos, bem como a zona de internamento. “A nossa estrutura já está adaptada desde esse ano para fazer essa separação.”

“[Os gatos] são fisiologicamente muito semelhantes aos seus antepassados ancestrais. E ao nível do comportamento isto também se verifica”
Mónica Santos, Hospital do Gato

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Na sala de espera, entre a zona de cães e gatos, encontra-se uma Vet Shop, o que impossibilita o contacto visual entre ambas as espécies. “Temos também umas mesas onde os tutores podem colocar as transportadoras e fornecemos umas capas, que podem usar para as tapar.” No consultório, idealmente, seria importante dar uns minutos ao gato para que se pudesse adaptar ao ambiente, o que não é possível se surgir uma urgência. “Quando tenho tempo, tento fazê-lo, e não começar imediatamente a consulta”, explica, confessando que é um desafio devido ao pouco tempo existente atualmente. Também neste hospital se recorre às feromonas e ao spray Feliway para que os gatos se sintam mais confortáveis.

“Tutores informados, gatos felizes”
Este é um dos lemas do Grupo Hospital do Gato. Isto porque “a forma como o paciente chega pode fazer toda a diferença”, explica a enfermeira Mónica Santos. Por melhores práticas que sejam acauteladas, tudo vai ser mais complicado se o gato chegar em pânico absoluto. “A formação dos tutores é essencial para que tudo corra pelo melhor.” O primeiro conselho é “ter sempre a transportadora disponível em casa. Torna-se mais fácil quando acompanhamos os pacientes desde pequeninos, e mostramos aos tutores a importância de a caixa onde são transportados ser a mais adequada, sempre aberta e associada a momentos positivos”.

A equipa disponibiliza aos tutores vários vídeos de “como colocar o seu gato na transportadora”, de diferentes formas, porque o que funciona para um, não significa que funcione para todos. “Aconselhamos sempre a trazer uma manta/toalha a tapar a transportadora. Pelo menos, as laterais devem vir cobertas e a porta pode estar ou não tapada (dependendo do paciente).” Se o gato não consegue ver, “sabe que também não é visto, e se olharmos para esta questão do prisma de um caçador que também é presa, percebemos a importância que tem no controlo do território”. A explicação é simples: “Quando o gato está na transportadora, ao conseguir ver tudo para fora a 360º sente que pode ser atacado por qualquer lado. Enquanto se estiver tudo tapado, ou apenas conseguir observar para fora por um dos lados da caixa, vai sentir-se menos inseguro.”

No caso dos CAMV mistos, a enfermeira considera que pode ser aconselhado pedir ao tutor  para avisar que chegou através de chamada telefónica, para evitar esperar na receção.

Também Cristina Lemos Costa considera que a transportadora é a principal medida. “O que tento incutir nos tutores é que abram a transportadora em casa, abram a porta, coloquem uma mantinha e até alimentação no interior, para que os gatos consigam utilizá-la como um sítio de refúgio.” A médica veterinária aconselha também à colocação da manta por cima da caixa para que o gato fique mais confortável e tenha o campo de visão protegido de estímulos exteriores. “É fundamental que o gato esteja confortável a vir para o veterinário.”

Pode ser necessário recorrer a fármacos para minimizar o stress na viagem e na consulta, como é o caso da Gabapentina. “Mas este deve ser recomendado, não só a pacientes em que saibamos que a resposta comportamental ao medo é uma resposta negativa em contexto hospitalar, mas também para pacientes que demonstrem o comportamento conhecido como frozen fear (evitam mover-se durante toda a consulta, tentam esconder-se debaixo das mantas). Quando tal não acontece e o paciente demonstra sinais de que não vai permitir de forma tranquila realizar o exame físico e exames complementares, optamos por remarcar a consulta para outra ocasião”, conta Rita Vilela.

Tanto na viagem até ao CAMV como no regresso a casa, recomenda-se que os tutores baixem o volume do rádio e mantenham os vidros fechados (com recurso a ar condicionado em dias mais quentes) de modo a diminuir os estímulos auditivos.

“Para a diretora clínica do Espaço Gato, Cátia Oliveira, o facto de mais CAMV apostarem nesta mudança [de adaptar o espaço às necessidades dos gatos] é demonstrativo “do maior respeito por uma espécie que tem as suas particularidades”
Cátia Oliveira, Espaço Gato

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No Grupo Hospital do Gato, desde a chegada até à saída, todas as especificidades são tidas em consideração, tendo em conta o bem-estar físico e emocional dos pacientes. “Na receção optamos por ter plataformas elevadas para colocar as caixas transportadoras de modo que não sejam colocadas no chão; os gatos sentem-se mais seguros se conseguirem observar o ambiente a partir de estas zonas”, explica Rita Vilela.

É dada formação a toda a equipa no sentido de manter o espaço, o mais calmo e tranquilo possível, no que toca a sons ambientes e ao tom de voz. “A sala de espera é mantida a uma temperatura agradável para o paciente enquanto aguarda.  Pedimos que os gatos não sejam retirados da transportadora em momento algum enquanto estiverem na sala de espera. Naquele momento, a caixa de transporte é o local mais seguro na perspetiva do gato.”

Os consultórios são limpos entre consultas para minimizar os cheiros deixados pelos pacientes anteriores. Para tal, recorre-se a bancadas de exames revestidas por um material antiderrapante e que permaneça a uma temperatura amena, ainda que de fácil higienização. “Em ambiente de consulta utilizamos um difusor de feromonas faciais sintéticas felinas sempre ligado de modo a promover uma sensação de conforto e segurança aos nossos pacientes.” Enquanto é realizada a anamnese do paciente com o tutor, a transportadora é deixada em cima da bancada do exame, com a porta aberta para permitir que o paciente saia de livre vontade e explore o ambiente, se assim o desejar.

Nos gatos mais tímidos e ansiosos, tanto no Grupo Hospital do Gato, como no Espaço Gato, é possível iniciar o exame físico com o paciente dentro da transportadora, retirando apenas a tampa da mesma. “Fazemos recurso a biscoitos, comida húmida ou snacks líquidos de modo a induzir emoções positivas e estimular respostas comportamentais desejadas para que a experiência seja o mais positiva possível”, explica Rita Vilela. Como os gatos têm memória a longo prazo, tanto para situações positivas como para as negativas, “quanto mais positiva for a experiência em consulta, reduzindo o medo e ansiedade, melhores resultados podem ser esperados em visitas futuras”.

Sempre que seja necessário realizar uma contenção física para alguns procedimentos, como a colheita de sangue, prima-se pela calma e tranquilidade. “Por norma, e sempre que o paciente o permita desta forma, fazemos recurso apenas a mantas ou toalhas, deixando-o contido, mas confortável. Usamos biscoitos ou snacks líquidos durante os procedimentos e preferimos que o tutor esteja presente para que o gato tenha como referência uma figura conhecida do ambiente familiar”, explica Rita Vilela. Também são usados sprays de feromonas faciais sintéticas felinas ou sprays de valeriana nas mantas e no vestuário dos profissionais durante a consulta e procedimentos que possam causar mais ansiedade ao paciente.

Cristina Lemos Costa, diretora clínica do Vetset – One Vet Group considera que o stress tem sempre efeitos no sistema imunitário dos gatos. “Podem desenvolver hipertensão, o que condiciona o aparecimento de problemas renais a longo prazo.”

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Já no que respeita ao internamento, a médica veterinária do Grupo Hospital do Gato explica que a opção passa por ter boxes com prateleiras para permitir ao paciente estar numa zona mais elevada. “Criamos zonas de refúgio reutilizando materiais, por exemplo, caixas de cartão, para que o paciente se possa resguardar. O material utilizado nas boxes é também ele de um material que não o inox, para ser mais confortável para o paciente.”

O papel dos enfermeiros acaba por ser mandatório. “Somos nós que podemos informar, e mesmo formar, os tutores para que a vinda ao CAMV seja o mais tranquila possível. Muitas vezes, são os enfermeiros que gerem a agenda e marcações da clínica, que recebem os pacientes na sala de espera, etc. Se as práticas para o bem-estar do gato forem bem aplicadas até aqui, a consulta poderá correr melhor, pois já estamos a evitar que o paciente entre em consulta com altos níveis de medo e ansiedade.”

Já dentro do consultório, é claro que tem de haver uma sinergia de toda a equipa, mas uma vez que são os enfermeiros quem maioritariamente fica responsável pela contenção do paciente, “é vital que a manipulação e contenção sejam o mais catfriendly possível para garantir o sucesso da consulta. Isso vai refletir-se num exame clínico completo, em procedimentos menos invasivos sem recurso a sedativos e até mesmo em resultados de análises não influenciados pelo stress do paciente”.

Cátia Oliveira considera fundamental “sensibilizar e preparar as pessoas para os cuidados a ter, de forma que se sintam mais confiantes para estes cuidados com os gatos”.

Maior cuidado por parte dos CAMV
Mónica Santos e Rita Vilela consideram que existe uma maior preocupação dos CAMV em ter algumas estratégias para o melhor acompanhamento dos gatos. “Ter uma prática catfriendly traz inúmeros benefícios. É claro que é possível concluir consultas de gatos sem estas práticas e é claro que é possível conter um gato num estado de ansiedade tal que urina e defeca enquanto lhe é colhido sangue ou cortar unhas com recurso a sete mãos, mesmo que só algumas saiam ilesas… Mas os benefícios de usarmos práticas diferentes, não só se verificam para concluir aquela consulta naquele momento, mas também para fidelizar o cliente”, refere Mónica Santos. Um tutor informado também começa a olhar para estas práticas de maneira diferente. “Quando é aconselhado devidamente e sente que o gato é respeitado e tem respostas, o cliente volta.”

A medicina preventiva é a chave do sucesso da medicina felina, considera a enfermeira. “Ter um tutor que colabora e um paciente habituado à ida ao veterinário faz toda a diferença na esperança média de vida, com qualidade, dos nossos pacientes”, explica. E é a partir do momento em que se pratica uma clínica mais amiga dos pacientes felinos que se começa a compreender melhor os comportamentos dos gatos. “Vamos ser capazes de perceber a sua comunicação através de posturas corporais e de avaliar o estado de medo e ansiedade de cada paciente, respeitando os seus limites evitando uma escalada de comportamentos nocivos.” A enfermeira confessa que, no final de cada turno, “é gratificante perceber que se fez a diferença na vida daquele paciente em determinada consulta e que tudo correu bem”. E, acrescenta: “Pessoalmente, acredito mesmo que isto tem um impacto muito grande na forma como nos sentimos.”

Para Rita Vilela, um dos principais desafios da medicina veterinária é compreender as necessidades e motivações dos gatos, para que seja possível prevenir determinados comportamentos em ambiente de consulta. “Outro ponto importante é saber ler o gato em termos de postura corporal e expressões faciais, tendo em conta que é desta forma que comunicam. Saber ler o gato é um dos passos mais importantes para sabermos como abordar cada paciente naquele momento.” Desta forma, é possível evitar lesões físicas que podem “ser graves e no decorrer de uma reação defensiva por parte do gato que não viu respeitadas as suas necessidades”.

Para tal, é essencial dar formação adequada aos profissionais de medicina veterinária, no que respeita às particularidades da espécie felina. “Sinto que o receio que muitas vezes se gera em torno do paciente felino é apenas devido ao desconhecimento sobre as necessidades e características da espécie, o que acaba por criar uma barreira entre o médico veterinário e o paciente”, defende a médica veterinária.

Mesmo quando nos referimos a clínicas mais pequenas, Mónica Santos considera que é possível dividir os espaços, de forma simples. “Existe um maior cuidado com essa questão. Às vezes, não é preciso muito mais do que separar as cadeiras com uma planta ou um cartaz e identificar um dos lados como ‘sala de espera para gatos’, onde exista uma pequena mesa para colocar a transportadora.” Ou seja, a enfermeira considera que tal preocupação não exige reestruturações muito profundas no espaço.

Para a diretora clínica do Espaço Gato, Cátia Oliveira, o facto de mais CAMV apostarem nesta mudança é demonstrativo “do maior respeito por uma espécie que tem as suas particularidades”. E tudo está muito relacionado com a abordagem que é realizada atualmente.

Gonçalo da Graça Pereira desmistifica o uso de pré medicação antes da viagem para ajudar a diminuir a ansiedade do gato. Atualmente, o facto de os CAMV já trabalharem com marcações prévias acaba por ser benéfico. “Quanto menos tempo um gato estiver na sala de espera, melhor”, explica, concordando com a alternativa de lugares mais altos para colocar a transportadora. “Os tutores nunca devem colocar a transportadora no chão. No mínimo, devem colocá-la ao seu lado.” Cada gato é um indivíduo e tem de ser encarado como tal. “Alguns gostam de estar mais tapados na transportadora, outros nem tanto.”

Já em ambiente de consultório, é fundamental que os médicos não se esqueçam da parte emocional, pois estão muitas vezes focados na parte física. “É preciso deixar o gato ambientar-se à luz e a tudo o que está no consultório e o que costumo dizer aos colegas é que é importante que as mantas ou toalhas que trazem de casa possam ajudar a cobrir o animal na consulta.” E, sublinha, que a maioria dos gatos, quando têm a cabeça tapada, sentem-se muito mais tranquilos. “Não vale a pena lutar com os gatos e todos os profissionais de medicina veterinária deveriam saber interpretar a sua linguagem corporal.”

No regresso a casa, depois de uma consulta, pode ser necessário fazer o que o especialista em Medicina do Comportamento intitula de “protocolo de reintrodução do gato” sobretudo quando existem outros gatos em casa. Uma alternativa eficaz pode ser levar todos os gatos em simultâneo, para uma profilaxia, como a vacinação, por exemplo, e fazer o regresso de todos, no mesmo momento. Em casa, pode ser fomentada uma estratégia diária com o gato, em que se tente criar um momento de familiarização com os tutores. “Também é uma forma de o gato queimar calorias, em vez de passar o dia a dormir.” Ter um gato pode ser um desafio”, avança o médico veterinário, e há que organizar o território de acordo com as necessidades de cada gato que o tutor tenha.

Consequências do stress crónico
Quando um gato é sujeito a stress contínuo e permanente, e está permanentemente no modo “fuga ou luta”, pode ter consequências a longo prazo na sua saúde. No Espaço Gato, é disponibilizado um Serviço Cat Friendly Home, em que a equipa se desloca a casa dos tutores para otimizar o espaço, quer para tutores de primeira viagem, para tutores com muitos gatos há muitos anos ou quando já existe algum distúrbio comportamental detetado. “Normalmente, o tutor só deteta algum distúrbio comportamental quando isso afeta o seu próprio bem-estar, o que é algo interessante de perceber”, explica Cátia Oliveira. É possível enriquecer o dia a dia dos gatos, ao nível de rotinas e de previsibilidade.

Uma das doenças mais conhecidas associadas ao stress é a cistite idiopática felina, afirma Rita Vilela. “Podemos falar também de obesidade e, consequentemente, diabetes mellitus, doenças gastrointestinais e alterações dermatológicas. Quando existem um ou vários fatores de stress ambiental, deixamos de conseguir garantir a saúde emocional, cognitiva e física dos gatos”, sublinha. No que respeita ao ambiente de consulta propriamente dito, o stress pode afetar os resultados analíticos e enviesar o diagnóstico por parte do médico veterinário. “Por exemplo, a ansiedade e o medo fazem aumentar a pressão arterial, a frequência cardíaca e respiratória, podem provocar hipertermia, hiperglicemia, alterações de hemograma e aumento de proteínas e globulinas.”

Cristina Lemos Costa considera que o stress tem sempre efeitos no sistema imunitário dos gatos. “Podem desenvolver hipertensão, o que condiciona o aparecimento de problemas renais a longo prazo.” E Cátia Oliveira acrescenta que “a libertação prolongada de cortisol acaba por ter impacto ao nível da função renal e ser causadora de distúrbios digestivos, lambeduras persistentes, e se houver já alguma predisposição para alguma doença genética ou infeciosa, terá uma maior tendência a surgir”.

Também Gonçalo da Graça Pereira refere a libertação de cortisol como a causa de alterações fisiológicas. “Uma delas, muito importante, é abrir o apetite. Temos situações de polifagia que vão ser iniciadas pelo aumento do cortisol. Por outro lado, vai também aumentar a resistência à insulina.” A diabetes é “apenas uma das doenças que se desenvolve quando estamos perante uma alteração emocional”.

Dentro das áreas psicossomáticas, Gonçalo da Graça Pereira lamenta que não existam tantos estudos e dados científicos como seria desejado. “É preciso fazer mais. Na área geral de medicina do comportamento, há um jornal que se dedica exclusivamente à medicina e à cirurgia felina, que tem publicações essenciais e muito úteis aos profissionais de medicina veterinária.” Defende ainda a formação e informação para que os profissionais de medicina veterinária possam ajudar mais estes animais e famílias.”

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