Atualmente, os animais, tal como as pessoas, vivem mais. O preço da longevidade é o desenvolvimento de doenças crónicas, degenerativas e, também, frequentemente oncológicas.
O aumento significativo da esperança de vida faz com que seja importante refletir, desenvolver e implementar uma disciplina que acompanhe os doentes veterinários na sua fase final de vida. Assim, os cuidados paliativos ou continuados são, também, cada vez mais uma realidade na medicina veterinária, a par do que se faz em medicina humana.
Com este avanço, outrora impensável para os animais, a esperança vem acompanhada de uma série de questões éticas, emocionais, financeiras e legais. Veterinários e responsáveis dos animais de companhia, vêem-se confrontados com um grande número de opções como representantes de pacientes não verbais que são incapazes de tomar decisões por si próprios.
As questões mais comuns são: “o que é razoável ou justo para um animal doente?”; “quando e como se deve interromper o tratamento?”; “o que é do melhor interesse do paciente, caso os melhores interesses do animal e do seu tutor estejam alinhados?”; “como avaliar objetivamente a qualidade de vida?” e “quando se deve pôr termo à vida do animal doente através da eutanásia?”.
Desta forma, a nossa capacidade de prolongar a vida dos animais, tal como acontece na medicina humana, criou a necessidade de um discurso ponderado sobre o fim da vida, para o qual, na maioria dos casos, o veterinário não está preparado, nem recebeu formação para tal.
O tema é demasiado vasto e com nuances de bioética consideráveis para poder ser abordado neste artigo de opinião. Contudo, de forma geral é importante discutirmos os princípios básicos dos cuidados paliativos médico-veterinários e como deve ser, na minha perspetiva, a abordagem ao animal em fim de vida.
No fragmento do juramento de Hipócrates do século III a.C. lê-se que : “o médico deve ter dois objetivos: fazer o bem e evitar fazer o mal”… mais tarde traduzido em latim para “primum non nocere”.1 Este principio de “ primeiro não fazer mal ou não prejudicar” deve ser a base da decisão médica, sobretudo nos cuidados paliativos ou continuados e, eventualmente, na decisão da eutanásia.
As indicações para um animal receber cuidados paliativos segundo as guidelines da American Animal Hospital Association são o diagnóstico de uma doença terminal, decisão do tutor de não prosseguir com metodologia de diagnóstico e terapêutica, ausência de alternativa terapêutica, doença(s) crónica(s) que interferem com a rotina diária ou qualidade de vida do animal e desenvolvimento de complicações devido a doença progressiva.2
O primeiro ato clínico que deve ser dado quando um animal de estimação entra em cuidados paliativos é o esclarecimento e definição dos objetivos dos mesmos cuidados, com a elaboração de um protocolo ou fluxograma. Estes objetivos variam de família para família, mas é consensual na maioria destes pontos: maior longevidade, alívio dos sintomas, nomeadamente dor, melhoria da mobilidade, melhoria da nutrição e hidratação e boa higiene do doente, com vista à prevenção de qualquer sofrimento desnecessário.
- Controlo da dor: A compreensão geral da fisiologia da dor permite que o médico faça escolhas racionais sobre a melhor forma de abordar o controlo da mesma. É, ainda, importante formar o tutor sobre como identificar dor no seu animal.
Podem ser sinais de dor alterações de comportamento, expressão facial, agitação, agressão, alterações de interação social, alterações de apetite, alterações no padrão do sono ou de higiene, vocalização, sensibilidade à manipulação, etc.
Um exemplo prático, simples e disponível numa aplicação ou online para avaliar dor nos gatos é a Feline Grimace Scale.3
O controlo eficaz da dor é uma pedra angular dos cuidados paliativos para animais.4 À semelhança do que acontece na medicina humana, já existe consulta da dor em alguns centros de referência veterinária em Portugal, que podem proporcionar ajuda aos colegas e tutores que o desejem.
- Suporte nutricional: Os animais de companhia com doenças crónicas ou terminais podem apresentar alterações do apetite, perda de peso ou deficiências nutricionais. O apoio nutricional, incluindo modificações na dieta, administração de estimulantes do apetite e suplementos nutricionais, pode ajudar a manter a força e os níveis de energia do animal.
É importante realizar avaliações frequentes da condição e massa corporal do animal, assim como ajustes ao tipo e nível calórico do alimento e/ou suplementos. Se necessário, recorrer à colocação de sondas de alimentação para assistir na nutrição e hidratação.
É natural que um animal em fim de vida tenha menos necessidades energéticas e como tal, coma voluntariamente menos.
- Suporte à mobilidade: Os animais de companhia com problemas de mobilidade podem beneficiar de alterações no seu meio ambiente, tais como: incluir roupa de cama ortopédica para evitar escaras, colocar rampas ou piso antiderrapante, uso de arneses de mobilidade, exercícios de fisioterapia para manter a força muscular e a flexibilidade e ter acesso facilitado às gamelas de água e comida ou à caixa de areia, no caso dos gatos.
A acupunctura e a fisioterapia podem ser excelentes meios complementares para ajudar na melhoria da mobilidade e a diminuir a dor/desconforto.
- Suporte ambiental: A criação de um ambiente geral confortável, tranquilo e seguro é importante para os animais de companhia que recebem cuidados paliativos. As modificações ambientais, como a ventilação ou temperatura controladas, possibilidade de estar no local favorito da casa ou mesmo o uso de enriquecedores ambientais (feromonas, brinquedos), podem ser bastante benéficas. A higienização do animal e do ambiente com produtos suaves e tolerados pelo animal deve ser regular.
- Apoio emocional: Os cuidados paliativos vão para além do conforto físico e abordam as necessidades emocionais e psicológicas tanto do animal como dos seus cuidadores. Fornecer apoio emocional, aconselhamento e orientação aos tutores dos animais pode ajudá-los a enfrentar os desafios de cuidar de um animal de estimação em estado terminal e a tomar decisões informadas sobre os cuidados de fim de vida.
Com a evolução da doença ou progressão da idade, chegará o momento em que não será mais possivel paliar a degradação do animal. Nessa altura, a eutanásia coloca-se como a única alternativa. É fundamental este tema seja abordado logo desde o início pelo médico veterinário, sensibilizando o tutor e preparando-o para a decisão. Este momento deve ser sempre uma conversa empática, compassiva e com respeito pela ligação que existe entre o tutor e o animal.
A eutanásia dos doentes tem, também, um impacto emocional e psicológico significativo nos profissionais veterinários, incluindo médicos, técnicos veterinários e outros membros da equipa.
Testemunhar a dor e o sofrimento dos animais, bem como a dor dos seus cuidadores, pode levar à fadiga por compaixão entre os profissionais veterinários. Com o passar do tempo, o custo emocional da eutanásia de animais e da prestação de cuidados em fim de vida pode resultar em sentimentos de exaustão emocional, distanciamento e esgotamento. O profissional médico veterinário, deve procurar ajuda, caso verifique sinais de fadiga por compaixão, junto dos colegas ou com profissionais especializados.
Apesar dos desafios, a eutanásia também pode servir como uma oportunidade de reflexão ética e crescimento pessoal entre os profissionais veterinários. O envolvimento em discussões abertas e honestas sobre a ética da eutanásia, a procura de orientação de colegas e mentores e a participação em actividades de desenvolvimento profissional podem fomentar a resiliência e promover a tomada de decisões éticas na prática.
De um modo geral, a medicina paliativa veterinária envolve uma abordagem multidisciplinar dos cuidados que atendem às necessidades físicas, emocionais e psicológicas dos animais com doenças crónicas ou terminais. Ao centrarem-se na gestão dos sintomas, no conforto e na qualidade de vida, os veterinários podem ajudar os animais de estimação a viverem confortavelmente e em paz durante a fase final da sua vida.
O impacto emocional da eutanásia animal nos profissionais veterinários sublinha a necessidade de apoio proactivo e de recursos para abordar os desafios únicos que enfrentam.
Ao promover uma cultura de compaixão, empatia e apoio no seio da profissão veterinária, podemos cuidar melhor do bem-estar tanto dos animais como daqueles que dedicam as suas vidas a cuidar deles.
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Primum_non_nocere
- https://www.aaha.org/globalassets/02-guidelines/end-of-life-care/End-of-Life-Toolkit
- https://www.felinegrimacescale.com
- https://www.aaha.org/aaha-guidelines/2022-aaha-pain-management-guidelines-for-dogs-and-cats/how-to-pain-assessment-toolbox/
*Médico veterinário, oncovet@gmail.com
**Artigo de opinião publicado na edição 181, de abril, da VETERINÁRIA ATUAL