Quantcast
Médicos Veterinários

Comunicação na medicina veterinária: O objetivo é o resultado que produz

Inquérito para médicos veterinários sobre utilização de psicofármacos em animais de companhia

Como veterinários, se não soubermos comunicar, tornam-se quase irrelevantes as nossas competências técnicas ou o quão acertados são os nossos diagnósticos e recomendações terapêuticas.

Em artigos anteriores, abordei a relevância do desenvolvimento de competências de comunicação na medicina veterinária. Quer estejamos a falar de competências de comunicação clínica ou de comunicação interpessoal, está demonstrado por diversos estudos o impacto que trabalhar a comunicação pode ter na eficiência e resiliência dos veterinários e das equipas, nos resultados clínicos, na satisfação e relação criada com os clientes, no bem-estar individual e na criação de um ambiente organizacional saudável. Volto a sugerir a leitura do livro Skills for communicating in Veterinary Medicine (Adams & Kurts, 2017) a quem tenha interesse em conhecer mais em profundidade as investigações feitas nesta área.

 

Miguel Moura Esteves, médico veterinário e NLP trainer

Seguramente que cada um de nós tem noção dessa relevância em qualquer tipo de interação, seja com familiares, amigos, colegas, clientes e mesmo com os animais. Todos já passámos por situações em que a comunicação foi fluida, parecendo até que a outra pessoa nos lia os pensamentos. Da mesma maneira, já passámos por momentos em que a coisa não correu tão bem. Estamos sempre a comunicar, mesmo em silêncio, e por isso cada um de nós já experimentou, em alguma circunstância, o que é ser compreendido, compreender o outro, ser incompreendido ou não compreender o outro. Todos já sentimos e sabemos quão diferente se torna a interação se a comunicação flui ou não.

 

O ponto relevante está na consciência dessa comunicação. Saber que a comunicação não está a funcionar, não significa necessariamente que percebemos o que não está a funcionar especificamente. O contrário também é verdade. É frequente desenvolvermos relações de proximidade sem ter grande consciência do que funciona tão bem nessa interação. Atribuímos mais facilmente o resultado das interações a traços de carácter – se é simpático/a ou não, se fala muito ou pouco, até se o nosso/a interlocutor/a tem ou não bom aspeto – do que à forma como é feita a comunicação por ambas as partes. Percebemos e sentimos muitas vezes “o que acontece”, sem grande noção de “como acontece”.

Ter esta consciência da comunicação permite-nos identificar o que funciona e o que não funciona, e escolher o que usar em cada momento para obter os melhores resultados possíveis. Afinal de contas, o objetivo da nossa comunicação é o resultado que produz. Se não estamos a conseguir aquilo que queremos com a nossa comunicação, talvez seja oportuno alterar a estratégia.

 

Olhemos para o exemplo das interações em consulta. Temos um tempo determinado para perceber o que se passa com o animal e definir um plano de abordagem terapêutica. Esse plano de nada serve se não criarmos uma relação de confiança com o/a tutor/a. Um estudo nos Estados Unidos (Lue et al., 2008) verificou que, dos tutores que tinham uma relação de confiança com o veterinário, 80% relataram seguir sempre as suas recomendações. Na mesma investigação, o valor fica pelos 48% no caso de tutores com fracas relações com o veterinário. Se juntarmos o dado publicado por Fabrica et al. (2023) de que 85% dos tutores preferem um modelo de decisão partilhada no que toca ao plano terapêutico do seu animal, a relevância de criar relações de confiança com os clientes torna-se ainda mais evidente. A questão então talvez seja: como criamos rapidamente relações de confiança com os nossos clientes?

Existem diferentes abordagens a esta pergunta, mas talvez todas tenham como pano de fundo a construção de uma sensação de segurança, de entendimento, de compreensão, de empatia. No fundo, têm o objetivo de identificar semelhanças entre as partes, de criar rapport. Como referi nos artigos anteriores, criamos rapport através da identificação de elementos (linguagem verbal e não-verbal) na comunicação do outro e usando-os na nossa comunicação. Por isso, acredito que pode ser interessante conhecer alguns conceitos que nos ajudam a identificar quais os elementos que interessa usar para criar rapport com clientes ou colegas.

 

Cada um de nós recebe a informação do mundo externo através dos órgãos dos sentidos. Recebemos informação visual, auditiva e cinestésica (olfativa, táctil e gustativa) a todo o momento. Essa informação é transportada para os respetivos centros cerebrais, é processada e é integrada com a informação que já existe. Quando vejo um gato, sei que é um gato porque já vi gatos antes. Quando ouço um sino, não preciso de o ver para saber o que é, porque já ouvi antes. Quando ando na praia, sei que estou a pisar areia pela sensação que sinto nos pés. Curioso é que as informações veiculadas por estes canais, por estes sistemas, são os elementos que usamos para codificar, para representar internamente, toda a nossa experiência. Se, por um instante, recordar um momento em que esteve na praia, provavelmente recorda o que viu, o que ouviu ou disse, e o que sentiu. As nossas memórias e pensamentos têm naturalmente elementos de pelo menos um dos três canais. Chamamos a estes canais, em Programação Neurolinguística, sistemas de representação. Temos então três sistemas de representação principais (visual, auditivo e cinestésico) e um quarto (auditivo digital), que é desenvolvido por necessidade da vida em sociedade. Estes sistemas vão mediar não só a forma como codificamos internamente as nossas experiências, mas vão estar presentes também na nossa comunicação.

Todos utilizamos estes sistemas para navegar no nosso ambiente porque todos usamos as informações dos nossos sentidos para interpretar o mundo, mas não temos todos o mesmo grau de desenvolvimento dos diferentes sistemas. Apesar de todos usarmos todos os sistemas, cada um de nós tem um sistema que prefere para captar, processar e comunicar informação. Ao sistema mais desenvolvido numa determinada pessoa chamamos “sistema de representação preferencial”.

Os elementos que nos permitem identificar qual o sistema de representação preferencial de alguém são as palavras que usa (predicados), a postura e padrão respiratório (fisiologia), o tom de voz e a velocidade da fala (tonalidade).

Se pensarmos numa pessoa que use preferencialmente o sistema visual, estamos frequentemente perante pessoas de postura reta, com a cabeça ligeiramente elevada, que se preocupam com a sua imagem, que falam rapidamente e num tom geralmente mais agudo, que têm um padrão respiratório mais acelerado e na zona mais alta do tórax, aprendem por meio de imagens, e que podem usar expressões como: “não vejo porquê”, “parece-me bem”, “estás a ver o filme?”, “dar um olho a…”. Estas pessoas tendem a codificar preferencialmente a sua experiência com base em imagens e isso é identificável na comunicação. Por outro lado, em pessoas que usem o sistema auditivo como principal, vamos poder identificar um tom mais melodioso na voz, uma postura corporal neutra e uma respiração mais na zona medial do tórax, aprendem mais facilmente a ouvir, interessam-se pelo que as pessoas dizem sobre os assuntos e podem usar expressões como: “Isso soa-me bem”, “sou todo ouvidos”, “foi estrondoso!” ou “fala-me sobre isso”. Para este tipo de comunicação, os sons são o elemento fundamental. Já quem usa o sistema cinestésico como preferencial geralmente precisa de sentir as coisas. São pessoas que comunicam com o corpo, que gostam de contacto físico e proximidade, que falam mais lentamente e com vozes mais graves, respiram pela zona abdominal, aprendem ao fazer, ao experimentar, e podem usar expressões como: “com os pés na terra”, “estás seguro?”, “sinto que é o correto” ou “prendeu-me a atenção”.

O quarto sistema de que falei, o auditivo digital, é um sistema que se desenvolve pela necessidade da vida em sociedade. Ao longo do nosso processo formativo aprendemos a usar a lógica, a observar, a analisar, a decidir com base em critérios definidos, a pensar sobre as coisas. Este é o sistema que usamos quando pensamos, é a voz interna que usamos para processar o mundo. Quando este sistema é dominante, são geralmente pessoas que analisam e emitem opinião sobre o que percecionam, estão interessados em saber se o assunto é correto, plausível, desenvolvem muito diálogo interno, e usam expressões como: “vou pensar no assunto”, “não interpreto assim” ou “entendo”. Geralmente, apresentam também características dos outros sistemas, já que não é um sistema puro.

É fácil imaginar que pessoas que usem preferencialmente o mesmo sistema identifiquem semelhanças inconscientemente e consigam comunicar facilmente entre si. E é esta a principal utilidade de conhecer estes sistemas e as suas características. Sabendo como os identificar, mais facilmente podemos usar, na nossa comunicação, as palavras, a fisiologia e a tonalidade do sistema que identificamos no nosso interlocutor para mais facilmente estabelecer rapport e ser mais eficientes na interação.

Claro que a teoria é simples. Na prática, nas interações do dia a dia, pode não ser tão fácil, mas sugiro que pratique. Durante a tão importante fase inicial da consulta, enquanto ouve o/a tutor/a, esteja atento/a às palavras, ao tom de voz e à postura do seu interlocutor. Procure identificar qual será o sistema que está a usar preferencialmente, e teste usá-lo também, mudando a sua postura e tom de voz, e escolhendo as palavras específicas do sistema que quer testar. Perceba o que muda na interação e como evolui a relação.

Trabalhar a comunicação a este nível tem o potencial de mudar a forma como interage com os seus clientes e colegas, com um impacto incrível na qualidade das relações criadas. Requer, no entanto, alguma prática e uma atitude curiosa, aliás como qualquer outra área da medicina veterinária.

* Médico veterinário, coach e formador

**Artigo de opinião publicado na edição 172 da VETERINÁRIA ATUAL, de junho de 2023.

Este site oferece conteúdo especializado. É profissional de saúde animal?