Quantcast
CAMV

Clínica Vet América: Um CAMV renascido da água

Uma noite bastou para mudar a vida da Clínica Vet América e foi o culminar de um ano difícil e de má memória para Marta Delgado Rodrigues. A entrada em 2023 espera-se de melhor auguro nas novas instalações acabadas de inaugurar. Afinal, mesmo com 25 anos de história, uma mudança, ainda que forçada, é sempre uma oportunidade de recomeço.

Água, muita água, um temporal de uma dimensão como não se registava há mais de uma década na cidade de Lisboa. As notícias não falavam sobre outra coisa além da tempestade que se abatia sobre a capital na noite e madrugada de 7 de dezembro do ano passado.

 

Marta Delgado Rodrigues estava em casa na companhia da mãe que, ao ver as notícias a passar na televisão, perguntou à filha: “Não achas que há o perigo desta água ir parar à clínica?”

A médica veterinária estava convencida de que não haveria problema. Nos 25 anos que o centro de atendimento médico veterinário (CAMV) estava nas instalações que ficavam na Av. Dos Estados Unidos da América, só em 1997 tinham tido uma pequena inundação, mas nada de muito grave ou que tenha causado grande prejuízo.

 

Até que, passado uns minutos, o telefone de Marta Delgado Rodrigues toca. Era a administradora do condomínio que morava no prédio do CAMV. “Disse-me para ir depressa para a clínica que o barulho que se ouvia dentro das instalações era ensurdecedor”, lembra a médica veterinária.

Saiu de casa em Camarate e o caminho até ao CAMV “foi indescritível, tive mesmo medo”, relembra ao contar a gincana que foi evitar os aluimentos de terras, as árvores caídas, a água que inundava as estradas ao ponto de fazer boiar autocarros no cruzamento entre a Av. Gago Coutinho e a Av. Estados Unidos da América.

 

“Sentei-me nos degraus da escada e o primeiro pensamento que tive foi: acabou-se, vou fechar!”

Marta Delgado Rodrigues, diretora clínica da Clínica Vet América

 

Quando, finalmente, chegou às instalações percebeu a magnitude do problema: a água das cheias e do esgoto tinha entrado pela fossa do prédio e inundado a cave da Clínica Vet América, onde funcionavam todos os serviços praticados na clínica, tirando as consultas que ocorriam nos dois consultórios no rés-do-chão. Desde a sala de cirurgia, ao laboratório, aos equipamentos necessários para a anestesia, para as análises, para as ecografias, os consumíveis, o armazém, tudo andou a boiar na água que ultrapassou o metro de altura. O barulho que a gestora do condomínio ouvia da parte de fora era as mesas, os armários da farmácia, o frigorífico, os aparelhos a bater contra as paredes e portas, derrubando todas as divisórias que existiam.

No cimo da escada que dava acesso ao piso inferior, a médica veterinária e diretora clínica deparou-se com os estragos feitos pela água que, entretanto, já tinha saído de novo pela fossa. Com as portas e divisórias derrubadas, os vidros partidos, os consumíveis espalhados e o frigorífico derrubado ao fundo da escada, “sentei-me nos degraus da escada e o primeiro pensamento que tive foi: acabou-se, vou fechar!”

Bodas de prata não comemoradas

O ano de 2022 tinha tudo para ser um ano de festa, com a Clínica Vet América a comemorar 25 anos de existência. Corria o ano de 1997 quando Marta Delgado Rodrigues se juntou com a irmã, a médica veterinária Rita Delgado (ver caixa), e mais um terceiro sócio médico veterinário para abrir o CAMV que foi batizado a pensar na localização, a Av. Estados Unidos da América.

Trabalharam os três nas instalações que tinham dois consultórios, a receção e sala de espera num rés-do-chão com 40 m2e na cave tinham toda a componente técnica: o laboratório, a sala cirúrgica, as tosquias, o RX, sala de recobro para os animais após os procedimentos e o armazém para os consumíveis.

Em 2010, Rita Delgado decide dedicar-se à sua área de interesse, a ecografia, deixa de estar a tempo inteiro na clínica, mantendo-se como sócia, e passa a colaborar apenas na vertente de diagnóstico com a Clínica Vet América e com outras clínicas, acabando depois a integrar a equipa do Hospital do Gato.

Em 2014, o outro médico veterinário sai da sociedade, dois anos depois é a vez de Rita Delgado também vender a parte dela e Marta Delgado Rodrigues passa a assumir as rédeas do CAMV sozinha. É um bocadinho um polvo da medicina veterinária. “Faço de tudo, ainda sou da velha guarda”, conta à VETERINÁRIA ATUAL, desde tosquias, a consultas, cirurgias, animais exóticos e tudo o que diz respeito à gestão da clínica. Só não faz aquilo que o seu conhecimento não lhe permite e diz, muito à vontade: “Não tenho vergonha nenhuma de ligar para um colega, mesmo que não o conheça, para tirar uma dúvida”.

Aliás, assegura, não tem medo nenhum de referenciar um animal para um colega que considere ter as capacidades adequadas para acompanhar determinado caso clínico. Para Marta Delgado Rodrigues é difícil compreender “essa vertente do medo de perder clientes, essa é a parte mercantil da medicina veterinária que não gosto”. Reconhece que um CAMV é um negócio, “tenho de pagar ordenados, sustentar a minha família e a família das funcionárias”, mas para a médica veterinária “a seriedade tem de estar acima de tudo”. Por isso, referenciar não é um problema, desde que o cliente e o animal de companhia vejam a situação acompanhada por quem consegue dar a melhor resposta. “Se já perdi clientes? Não sei, se calhar sim, mas se os perdi era porque já estavam perdidos, eventualmente estavam insatisfeitos com alguma coisa”, admite a diretora clínica.

A atividade do CAMV continuou a aumentar nos anos seguintes, a equipa cresceu com a entrada da médica veterinária Jéssica Gonçalves e seguiram-se tempos de muito trabalho para esta típica clínica de bairro lisboeta. “Eu e a Jéssica aprendemos muito uma com a outra, crescemos muito profissionalmente”, lembra a diretora clínica.

“Ser sério, ter bom relacionamento e não fazer sombra a colega nenhum faz com que nos abram portas.”

Marta Delgado Rodrigues, diretora clínica da Clínica Vet América

Em 2019, Jéssica Gonçalves decide abraçar outros projetos profissionais e a médica veterinária Rita Mascarenhas passa a fazer parte da equipa, mantendo-se até hoje. Em conjunto com as duas médicas, integram também os profissionais da Clínica Vet América as auxiliares veterinárias Tânia Soares e Inês Ilhéu.

O volume de trabalho há muito que mostrava a pouca funcionalidade do espaço. “Não era fácil transportar um cão de 40 quilos pelas escadas, às vezes ainda meio zonzo da anestesia ao colo, tínhamos de ter sempre ligados dois desumidificadores na cave por causa da humidade, de facto não eram instalações funcionais”, reconhece Marta Delgado Rodrigues. Já tinha pensado muitas vezes em sair daquela localização, teve mesmo agentes imobiliários à procura de novos espaços, mas a verdade é que não apareceu nada. “Eu só questionava, se não aparece nada, saio daqui para onde?”, lembra.

Certo é que foi o transtorno de subir e descer as escadas para a cave que trouxe a má notícia à família Delgado. No fim de 2019, depois de ver a irmã com sérias dificuldades em fazer o trajeto até à cave, Marta convence Rita a procurar ajuda médica para esclarecer o motivo desse cansaço debilitante. Rita Delgado é diagnosticada com uma doença oncológica e acaba por falecer a 11 de janeiro de 2022, no início de um ano que devia ser de festa.

Três meses para voltar à vida

Sentada nos degraus da clínica, mal refeita da dor de perder a irmã no início do ano, Marta Delgado Rodrigues tem à sua frente um cenário de destruição quase total de 25 anos de trabalho. “Quando pensava que não podia haver mais horror em 2022, acontece isto”, lembra emocionada.

No momento, só tem reação de tirar fotografias e enviar para dois contactos: para a advogada e para um casal cliente e amigo que tem uma empresa de design e arquitetura. A questão para ambos era a mesma: o que fazer agora?

Da partilha com as pessoas significativas, do serenar das emoções nas horas e dias seguintes, começou a crescer na cabeça da médica veterinária a ideia de que o caminho não era encerrar, mas sim continuar. Restava saber como.

“Primeiro pensei que tinha um seguro ótimo, o que descobri não ser verdade” porque não cobriu nem metade do valor das perdas. Só em consumíveis foram 13 mil euros, em equipamentos cerca de 50 mil euros, salvou-se o RX protegido pela porta blindada e pouco mais.

De seguida, ficou claro que aquelas instalações não poderiam continuar a receber a atividade clínica de um CAMV. A humidade, o bolor, o odor deixado pela água imunda na cave não era saudável nem para a equipa de profissionais, nem para os animais que iriam receber.

Novamente, a solução esteve na lista de clientes, na qual Marta Delgado Rodrigues tem uma agente imobiliária a quem explicou a urgência da situação. Era desta, a decisão estava tomada, ia mudar de instalações e precisava de um espaço rapidamente.

“O que recuperei foi uma empresa válida, que paga impostos, e recuperei empregos. Era uma empresa que era uma pena perder-se.”

Marta Delgado Rodrigues, diretora clínica da Clínica Vet América

Apareceu este, na zona do Alto do Pina, nas traseiras da Av. Afonso Costa. Na altura, uma espécie de open space com 135 m2 e um espaço exterior com cerca de 50 m2 que poderia servir como parque para os animais enquanto estavam em vigilância na clínica. Visitou as instalações acompanhada pelos amigos arquitetos que logo perceberam o potencial do espaço e aconselharam a médica veterinária a avançar.

Sete dias depois da enxurrada, a 15 de dezembro de 2022, Marta Delgado Rodrigues assina o contrato de arrendamento e seguiram-se as obras que fizeram nascer o espaço, tal como hoje funciona.

Mas nesses meses de espera pela conclusão da empreitada, a vida não pôde parar. O CAMV continuou a funcionar apenas com um dos consultórios do rés-do-chão, sempre com os desumidificadores a funcionar, enquanto o outro servia de vestiário, de copa, de arrumação, de armazém para tudo o que fosse preciso.

O resto da atividade clínica foi suportado com a solidariedade. “Ser sério, ter bom relacionamento e não fazer sombra a colega nenhum faz com que nos abram portas”, sublinha a médica veterinária. O colega Bruno Rôlo, da Clínica Veterinária do Lumiar, abriu-lhe as portas e permitiu que Marta Delgado Rodrigues montasse lá uma sala de cirurgia e os clientes iam levar ao Lumiar os animais para as intervenções agendadas pela diretora clínica.

A parceria entre os dois médicos veterinários já era estreita antes dos acontecimentos e hoje permanece, com Marta Delgado Rodrigues a continuar a dar apoio na área cirúrgica à clínica de Bruno Rôlo.

Manter a atividade era essencial para a sobrevivência da empresa e para o espírito da equipa. “A componente cirúrgica é muito importante, financeiramente para a clínica, mas sobretudo para o cliente que, muitas vezes, não pode esperar para ver o problema do animal de companhia resolvido”, reconhece a médica veterinária. E o certo é que “os clientes compreenderam” as contingências deste período de transição, a clínica manteve a atividade regular e nunca baixou a faturação.

Mudar para melhor

A 6 de março de 2023 iniciou-se o novo capítulo da história da Clínica Vet América com a abertura oficial das novas instalações. Amplas, luminosas e, sobretudo, mais funcionais para a equipa, tutores e animais.

Neste novo espaço todas as valências no mesmo plano, desde a receção, à sala de espera, aos consultórios – são dois, um para gatos, outro para cães – ao laboratório de análises e armazém de consumíveis. Estão separados apenas por um corredor de uma zona mais resguardada onde fica situado o RX, a sala de preparação anestésica, a sala de cirurgia e as zonas de recobro, também elas separadas para felídeos e canídeos, e o espaço para o grooming.

Nas traseiras fica o espaço privado para a equipa e o pátio que serve quase como “uma espécie de creche ou de centro de dia” para os animais − que precisam de alguma monitorização clínica – poderem passear enquanto passam umas horas em observação no CAMV.

Ao todo, com as obras e os novos equipamentos, a mudança exigiu um investimento a rondar os 110 mil euros, que o seguro nem metade cobriu. Os apoios anunciados pela Câmara Municipal de Lisboa e pelas entidades governamentais têm alíneas travessas que obrigaram a diretora clínica a recorrer a advogados para se poder candidatar e agora aguarda o resultado.

Mas o importante aconteceu: a Clínica Vet América continua em atividade. “O que recuperei foi uma empresa válida, que paga impostos, e recuperei empregos. Era uma empresa que era uma pena perder-se”, admite.

Nas novas instalações o que mudou também foi o horário de funcionamento que passou a ser mais alargado, das 9h às 21h. “Penso que dá jeito às pessoas deixarem os animais aqui antes de irem para o trabalho e virem buscar depois de saírem”, explica a diretora clínica, um horário que permite à equipa avaliar a evolução dos animais durante o dia, tratar o que for para tratar, e que regressem à noite à sua zona de conforto, que é a companhia dos tutores em casa.

A organização da agenda do CAMV é delimitada pelas tarefas: a manhã é reservada a cirurgias – de tecidos moles, ortopedia, esterilizações, por exemplo – e a parte da tarde é para as consultas de profilaxia, de prevenção de doença e com grande peso da medicina interna. Tudo com pré-marcação, que foi uma imposição trazida pela pandemia por Covid-19, mas que Marta Delgado Rodrigues considera ter sido “uma coisa boa” que acabou por se tornar na rotina instituída. Ainda assim, a médica assegura que está “sempre na clínica”, que é como quem diz, tem sempre o telemóvel por perto, mesmo quando se ausenta, para atender a qualquer urgência que possa surgir.

Na visita às instalações, enquanto apresenta cada um dos espaços, a diretora clínica não deixa de reconhecer o salto gigantesco que a nova localização trouxe em termos condições para os clientes, para os animais e para a equipa. “Não há cliente nenhum que entre aqui e não diga que há males que vêm por bem”, assegura, acabando por revelar que não sentiu nenhum impacto negativo na faturação por, ao fim de 25 anos, ter mudado o CAMV de localização. Em grande medida, a carteira de clientes manteve-se igual e até tem possibilidades de aumentar, uma vez que a Clínica Vet América se encontra agora numa zona residencial com famílias mais jovens.

Ainda assim, para trás ficaram aqueles clientes idosos “que iam todos os dias comprar uma latinha de patê ou um pacote de biscoitos, nem iam tanto pela clínica, mas pela conversa connosco e pela companhia”, lembra emocionada, garantindo de seguida que, de qualquer forma, ninguém foi deixado ao abandono. “Quando é preciso uma de nós vai cortar as unhas à gata da Dona Rosa e já disse ao Dr. João que lhe vou lá levar uma palete de latinhas”, acrescenta.

Renascido das águas, a Clínica Vet América conseguiu, em poucas semanas de portas abertas nas novas instalações, retomar as rotinas e consolidar a atividade que por momentos, ainda que breves, a diretora clínica julgou perdida. Os olhos agora já estão postos no futuro. “Eventualmente precisaremos aumentar a equipa com mais um médico veterinário, o problema está em encontrá-los”, diz, lamentando a escassez de profissionais. A oferta de recursos humanos em medicina veterinária tem sido reduzida, facto que não é alheio ao crescimento da emigração dos jovens licenciados. “Se calhar precisamos de os ir buscar à fronteira”, graceja Marta Delgado Rodrigues.

 

Um prémio que é uma homenagem

O desaparecimento precoce de Rita Delgado emocionou a classe da medicina veterinária. Conhecida e reconhecida entre os pares, a médica veterinária era muito requisitada pela vasta experiência no ramo da ecografia e o seu nome, apesar de nos últimos anos de vida ter estado ligada à equipa do Hospital do Gato, era a referência a que muitos colegas recorriam quando necessitavam de exames imagiológicos. Lá ia Rita Delgado, acompanhada pelo seu ecógrafo portátil, auxiliar quem precisava da sua perícia e conhecimento.

A ideia de instituir um prémio foi do pai das duas médicas veterinárias. Marta Delgado Rodrigues, naturalmente, acolheu-a e partilhou-a com a diretora clínica do Hospital do Gato, Maria João Fonseca, que também a tornou sua e assim nasceu em 2023 o Prémio Dr.ª Rita Delgado.

O objetivo é passar a premiar anualmente uma tese de mestrado, na área da medicina veterinária, defendida em universidades portuguesas, com um valor monetário de 2500 euros e homenagear uma profissional que se destacou pela “sua honestidade, lealdade e solidariedade”, lê-se no comunicado enviado à VETERINÁRIA ATUAL.

Este site oferece conteúdo especializado. É profissional de saúde animal?