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Médicos Veterinários

Ser veterinário também é saber comunicar

Miguel Moura Esteves, médico veterinário e NLP trainer

 

Colegas/clientes /tutores difíceis ou veterinários com competências de comunicação por desenvolver – onde está o equilíbrio?

 

Falar de comunicação é falar da essência do que é ser médico veterinário. E, apesar da nossa competência no que toca à comunicação interespecífica e biológica, não treinamos, em momento algum da nossa formação, a comunicação intraespecífica. Ao longo do nosso percurso profissional tornamo-nos especialistas em comunicar com todo o tipo de espécies – gatos, cães, coelhos, cavalos, etc. – e sabemos como comunicam as células, os órgãos, os sistemas. Sabemos exatamente como nos devemos comportar com uma determinada espécie, ou que mecanismos ativar ou suprimir para fazer bem o nosso trabalho. No entanto, no que toca a comunicar com a nossa espécie, muitas vezes nem sabemos por onde começar. Podemos mesmo dizer que lidamos melhor com células ou animais que não falam do que com aqueles que falam. E estaria tudo certo, não fossem os animais não-falantes precisarem de animais falantes para vir à consulta, ou não fossem os nossos colegas também eles animais falantes.

Esta competência de comunicação intraespecífica que temos subdesenvolvida é um dos maiores geradores de mal-estar e de ineficiência que existe na profissão. E já temos estudos que apontam neste sentido. A comunicação é descrita como um dos pontos fundamentais para não só melhorar a qualidade dos serviços prestados e do atendimento ao público, como para garantir a coesão das equipas e a sustentabilidade dos Centros de Atendimento Médico-Veterinários (CAMV) a longo prazo.

 

O estudo da Universidade de Cornell (Neill CL., et al, 2022), ao analisar os impactos económicos do burnout no setor, partilha dados muito interessantes e preocupantes. Referem que os custos associados ao burnout no setor podem chegar quase a 4% do total de faturação do setor e que cerca de 40% dos colegas ponderam deixar a clínica veterinária. Mais relevante é ainda a menção de que um ambiente de equipa negativo aumenta a incidência de burnout.

E mais, um dos aspetos identificado como tendo maior êxito na redução do burnout e no aumento da satisfação no trabalho é precisamente melhorar a comunicação. Seja por via de reuniões para discutir os desafios associados ao work-life balance ou através da partilha de dificuldades na gestão de clientes complicados. Neste estudo, aborda-se também o impacto da liderança no índice de burnout das equipas, sendo os aspetos mais importantes desta liderança competências que podem ser aprendidas – manter a equipa informada, encorajar a partilha de sugestões de melhoria, dar feedback e fazer mentoria aos trabalhadores e reconhecer o trabalho bem feito.

 

Num outro estudo, o Merck Animal Health Wellbeing Study III (Volk JO., et al, 2022), o terceiro de uma sequência de avaliações do setor que começou em 2018, volta a aparecer esta noção da importância de um ambiente de trabalho saudável, onde exista boa comunicação, trabalho em equipa e confiança. O estudo aponta para a importância de existir um ambiente de abertura para que os veterinários possam expressar os seus problemas ou preocupações, e volta a referir a importância da liderança na construção desse ambiente. Identificam ainda como objetivos que os empregadores deveriam perseguir os quatro elementos que mais definem uma cultura de trabalho saudável no CAMV: sentimento de pertença à equipa, elevados níveis de confiança na organização, comunicação sincera e aberta e tempo de consulta suficiente para uma boa qualidade de atendimento. Se virmos bem, os três primeiros estão intimamente ligados à comunicação, o que não deixa de ser interessante.

Se olharmos para a atenção ao cliente, mais uma vez a comunicação ocupa o lugar cimeiro em todas as interações. Estudos realizados pela VetX International com veterinários recém-licenciados apuraram que mais de 73% dos inquiridos referem que a maior fonte de stresse é a interação com os clientes.  Cheguei a assistir a uma cliente pedir a um colega que a deixasse por momentos a sós com a cadela porque lhe queria perguntar se esta queria ou não colocar um penso de Fentanil. Outro cliente vinha para as consultas com o Ettinger e já com o diagnóstico feito. Noutro caso, ouvi pedir a um colega se podia dar “um olhinho” na mastite da própria cliente, já que medicina é sempre igual, podia ver se precisava de ir ao hospital. Quantos de nós não poderíamos escrever um livro com histórias bizarras vividas em consulta?

 

Ou seja, se não tivermos bem desenvolvidas as nossas competências de comunicação, podemos ver-nos em situações bem complicadas.

O período de transformação que o setor atravessa em Portugal é bem real, depois de dois anos de pandemia, da entrada dos grandes grupos, da vigência de nova legislação e ao estar perante uma geração a entrar no mercado de trabalho com uma visão muito diferente do que é sentir-se realizado no trabalho. Tudo isto cria as condições e a necessidade de sermos cada vez mais eficazes na comunicação. Trabalhando a comunicação, conseguimos mais facilmente adaptar as equipas a esta transição, reter talentos e inverter o fluxo de fuga de veterinários da clínica a que vamos assistindo.

Sabendo que todos nós estamos a comunicar o tempo todo, que é impossível não comunicarmos e que, mesmo em silêncio, estamos sempre a comunicar qualquer coisa, como podemos ser comunicadores mais eficazes?

A comunicação acontece algures entre aquilo que eu penso, aquilo que eu quero dizer, aquilo que eu digo, aquilo que o outro ouve, aquilo que o outro quer ouvir e aquilo que o outro pensa que entendeu. Portanto, a possibilidade de existir um fenómeno de telefone estragado aqui no meio é enorme. Talvez possamos começar por olhar para a palavra comunicar e por conhecer a estrutura base da comunicação.

A palavra comunicar tem a sua origem na palavra latina communicare, que significa “pôr em comum”, o que é em si mesmo uma abordagem muito curiosa ao pensarmos em comunicação. Podemos imaginar o impacto de termos presente, sempre que estamos a conversar com alguém ou a transmitir uma qualquer mensagem num qualquer meio, esta intenção de “pôr em comum”. Por si só, tem o potencial de mudar completamente a forma como comunicamos.

Quando pensamos na estrutura base de qualquer comunicação, temos sempre um emissor e um recetor, temos um meio pelo qual é transmitida a informação (voz, texto, etc.), um código usado (língua, palavras, etc.) e uma mensagem. E talvez a mensagem seja o ponto crucial nesta questão. Partindo do princípio de que todos ouvimos e falamos a mesma língua, ou seja, usamos o mesmo código, a mensagem é o elemento que mais impacto vai ter no resultado da comunicação.

Para assegurar que a mensagem passa de uma forma eficaz, há três elementos que podem ser considerados.

O primeiro é o objetivo. Qual é o meu objetivo com a comunicação que vou fazer? Quero comunicar porquê e para quê? Qual é o propósito? O que quero assegurar que chega ao lado de lá? Se tiver claro o meu objetivo, muito mais facilmente posso adaptar a comunicação em função do feedback que vou recebendo, sempre com esta meta como pano de fundo.

O segundo, é a atitude na comunicação. Como estou a comunicar? Estou realmente a pôr em comum determinada mensagem? Quem é esta pessoa a quem quero transmitir a mensagem? O que é importante para esta pessoa? O que a preocupa?

Aqui entramos nas áreas da auto-observação, em que percebemos, pelo feedback que vamos tendo, se a nossa comunicação é ou não eficaz, e no estabelecimento da ligação ao outro, no rapport que criamos com o outro. Rapport é uma palavra que significa “relação” em francês mas que vem do latim “re apportare” e que significa trazer de novo, e por isso é usada para descrever o loop de ida e vinda da informação que existe numa relação. Ao cultivar uma atitude de curiosidade e disponibilidade perante o outro, podemos observar uma série de informações que ajudam imenso na comunicação e que estão ligadas ao ponto seguinte. Como a pessoa se expressa, se fala muito depressa ou devagar, que postura corporal tem, quais são as suas referências culturais, se prefere informação detalhada ou traços gerais da ideia, se é uma pessoa que se motiva por desafios ou por encorajamento, são tudo exemplos de observações que potenciam a eficácia da nossa comunicação.

Estas observações permitem que ajustemos o elemento final: a forma.

Não vamos seguramente usar a mesma forma para falar com um colega sénior, com um menos experiente ou com um membro da equipa de enfermagem. Também não falamos da mesma forma com um cliente que conhecemos ou com um novo. Existe a oportunidade de adaptar a mensagem à pessoa que temos à nossa frente. Se sabemos qual é o objetivo da nossa comunicação e temos esta atitude de disponibilidade para quem é o outro com quem queremos comunicar, podemos agora ajustar as palavras que usamos, o tom que usamos, a velocidade com que falamos, a nossa postura corporal, ou o que quisermos para poder mais facilmente chegar ao outro, mais facilmente pôr em comum a mensagem a passar.

Então, se comunicar é “pôr em comum”, e correndo algum risco de vida, pergunto: existirão realmente colegas/clientes/tutores difíceis, ou na verdade existem veterinários com competências de comunicação que precisam de ser desenvolvidas?

O que mudaria no nosso dia-a-dia se nos puséssemos as seguintes perguntas sempre que quiséssemos comunicar com alguém: qual é o ponto de encontro entre mim e esta pessoa? O que temos de semelhante? Onde convergimos?

Com esta atitude, transferimos a atenção das diferenças para a procura das semelhanças para encontrar o terreno comum onde existe a partilha, de onde surgem a maior parte das soluções para os mais variados desafios.

Trabalhar a comunicação nos CAMV é um pilar essencial da sustentabilidade dos negócios e da reversão da tendência a que estamos a assistir. Equipas coesas, motivadas e que confiam nas instituições não só produzem mais, e com mais qualidade, como funcionam elas próprias como motor para a evolução e melhoria dos serviços prestados. Com melhores serviços, mais clientes satisfeitos, mais resiliente e sustentável se torna o CAMV.

As intervenções que podem ser feitas para melhorar a comunicação ou o bem-estar do CAMV são variadíssimas. Cada CAMV tem necessidades específicas que devem ser corretamente identificadas. Para alguns fará sentido trabalhar as competências de liderança, para outros trabalhar as equipas, para os grupos poderá fazer sentido trabalhar ao nível executivo para melhorar a gestão e integração dos centros. As possibilidades são tantas quantos os pontos de melhoria identificáveis. O que se torna claro pela minha experiência e por toda a investigação disponível, é que dotar os veterinários de competências para uma comunicação eficaz, seja durante a formação ou já em contexto de trabalho, é uma peça fundamental para garantir a resiliência do setor e dos profissionais.

Referências:

Link: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35280150/

  • Volk JO, Schimmack U, Strand EB, Reinhard A, Vasconcelos J, Hahn J, Stiefelmeyer K, Probyn-Smith K. Executive summary of the Merck Animal Health Veterinarian Wellbeing Study III and Veterinary Support Staff Study. J Am Vet Med Assoc. 2022 Jul 1:1-7. doi: 10.2460/javma.22.03.0134. Epub ahead of print. PMID: 35943942.

Link: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35943942/

*médico veterinário, coach e formador

** Artigo publicado na edição 166, dezembro, da revista VETERINÁRIA ATUAL.

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