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Animais de Companhia

Centro do Peso Saudável: A difícil arte de tratar a obesidade animal

No Hospital Escolar Veterinário, da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, nasceu há quatro anos uma resposta especializada para aquela que já é considerada uma das epidemias nos animais de companhia: a obesidade. Mafalda Pires Gonçalves, que está à frente do Centro do Peso Saudável, pretende melhorar o conhecimento dos tutores e aumentar a consciência dos profissionais veterinários para a necessidade de apostar na prevenção em vez de tratar as consequências da obesidade.

Tudo começou no Hospital do Restelo, onde Mafalda Pires Gonçalves trabalhava na altura e via, dia após dia, entrarem pelo consultório dentro cada vez mais animais de companhia, nomeadamente os mais comuns cães e gatos, com problemas de saúde relacionados com aquela que em 2018 foi oficialmente reconhecida como uma doença em medicina veterinária e já foi mesmo considerada uma epidemia: a obesidade.

 

Os números são esclarecedores da gravidade do panorama no mundo veterinário. Os estudos internacionais apontam para uma prevalência da obesidade a rondar os 50% nos animais de companhia, sendo que “são números que estão a crescer, em paralelo com o que acontece na medicina humana e, pelo que parece, há mesmo uma correlação entre clientes com excesso de peso e animais também com peso a mais”, conta Mafalda Pires Gonçalves à VETERINÁRIA ATUAL.

Perante o cenário que encontrava no consultório, a médica veterinária decidiu passar a dedicar-se a esta área, consagrando parte do tempo à investigação para o doutoramento que está a fazer sobre esta doença e, em 2019, abriu as portas do Centro do Peso Saudável no Hospital Escolar Veterinário. Os recursos não são muitos, a consulta é assegurada apenas pela média veterinária, mas a integração num hospital de referência garante a complementaridade de cuidados com outras especialidades e serviços que sejam necessários para o acompanhamento de cada caso.

 

É também de dentro da faculdade que vem a grande maioria dos casos referenciados. “A maior parte dos casos é referenciado pela medicina interna, devido a problemas a nível endócrino ou respiratório por exemplo, pela ortopedia e também pelo internamento, serviços onde é avaliado o historial do animal, se tem excesso de peso e se precisa dos serviços deste centro”, conta a profissional que, no entanto, sublinha: “o Centro do Peso Saudável não é só para perder peso, também ajudamos nos casos em que o animal precisa ganhar peso”. Ainda assim, o volume de casos em que o motivo da consulta é o excesso de peso e a obesidade suplanta em larga medida os outros casos clínicos.

“Faço parte de um triângulo que é uma equipa constituída pelo cliente, pelo animal e pelo médico veterinário e, por isso, não faz sentido que as pessoas me vejam como o vilão que vai fazer com que o animal passe fome porque, se assim for, o processo não vai ter sucesso” – Mafalda Pires Gonçalves, Centro do Peso Saudável

 

O tutor é parceiro fundamental no sucesso do tratamento

 

A base da abordagem de Mafalda Pires Gonçalves é a medicina interna. Chegado ao Centro do Peso Saudável, o animal é avaliado no sentido de perceber os fatores de risco que apresenta e “as possíveis causas do excesso de peso, se é uma questão ambiental, genética ou se existe uma doença por trás que tem de ser tratada”, explica a médica veterinária.

No campo dos fatores ambientais, é inegável o papel que os tutores desempenham na saúde do animal de companhia, afinal, comenta com Mafalda Pires Gonçalves com graça, “não são os animais que vão ao supermercado”. Esta é uma variável que tem ramificações comportamentais que podem ser difíceis de modificar, na medida em que a relação emocional entre tutores e animais é forte, mas também complexa. “Nas minhas consultas noto um padrão de pessoas que vivem sozinhas, pessoas idosas ou famílias com vários filhos que podem ter mais dificuldade no controlo do peso do animal de companhia”, refere, explicando que, por vezes o alimento funciona como compensação do tutor por deixar o animal sozinho durante o dia ou como o mimo extra que gostam de dar ao animal pensando que ele está com fome, quando apenas está a pedir atenção e afeto. E, já se sabe, em famílias com muitos elementos não é fácil controlar o que cada pessoa dá ao animal e a médica veterinária lembra divertida como uma família tardou a descobrir o que impedia o cão de perder peso apesar do plano elaborado, o motivo: um dos filhos escondia biscoitos que dava às escondidas ao cão da família.

Sem dúvida que o ambiente em que o animal está inserido tem uma influência preponderante e é um dos pontos fundamentais no controlo de peso, muito embora acarrete desafios tanto para o tutor, como para o médico veterinário. Nas palavras de Mafalda Pires Gonçalves, “é uma situação difícil a partir do momento em que há uma relação emocional entre o cliente e o animal, mas é aqui que entro nas minhas consultas, tentando desconstruir qual é o tipo de relação que está por trás [daquele caso]”, partindo do princípio de que todos têm o mesmo objetivo, ou seja, a saúde do animal. “Faço parte de um triângulo que é uma equipa constituída pelo cliente, pelo animal e pelo médico veterinário e, por isso, não faz sentido que as pessoas me vejam como o vilão que vai fazer com que o animal passe fome porque, se assim for, o processo não vai ter sucesso”, explica. Por isso, retirar de forma imperativa e radical os chamados mimos ou extras que se dá ao animal é capaz de não ser a melhor estratégia. “Não retiro, ajusto é a quantidade dos extras. Se o animal é super feliz com um bocadinho de torrada ao pequeno-almoço pode manter esse mimo, mas diminuiu-se a quantidade. O importante é individualizar a estratégia ao cliente e à família”, explica, tendo em conta a relação do tutor com o animal e a idade deste último. No fundo, estabelecer objetivos alcançáveis, não muito rígidos, ensinando estratégias simples e aplicáveis no dia-a-dia, como os comedouros em labirinto que “potenciam a saciedade, estimulam a parte cognitiva e tornam o momento da alimentação mais interessante para o cão ou para o gato”.

Depois existem também os fatores intrínsecos de cada raça porque, como assegura a médica veterinária, “a genética tem um peso muito grande na obesidade, o que torna esta doença em algo que não é fácil de tratar”. A ciência já começa a dar algumas respostas sobre o peso da genética nesta patologia, como investigação que identificou o gene da proopiomelanocortina (POMC) presente em cerca de 25% dos cães da raça labrador e que faz com que estes animais pareçam estar sempre com fome.

Depois, existem raças mais predispostas a ter excesso de peso – como os cães da raça cocker spaniel,  pug,  daschundgolden retriever ou beagle e os gatos das raças persa, ragdoll, maine coon, sphynx, europeu comum, o american ou o british shorthair – que necessitam de uma abordagem individualizada por parte da equipa de saúde veterinária desde a mais tenra idade.

“A genética tem um peso muito grande na obesidade o que torna esta doença em algo que não é fácil de tratar” – Mafalda Pires Gonçalves, Centro do Peso Saudável

Outra questão a merecer atenção por parte das equipas médico-veterinárias deve ser a esterilização pois, como lembra Mafalda Pires Gonçalves, com este ato ocorre “uma diminuição de cerca de 30% do metabolismo, ao mesmo tempo que aumenta a sensação de fome o que é um cocktail perfeito para o animal ganhar peso se não houver por parte das equipas veterinárias um ajuste [no aconselhamento] daquilo que o animal deve comer a partir do momento em que é esterilizado”.

Outra população considerada como grupo de risco para desenvolver excesso de peso são “os cachorros e gatinhos que têm um crescimento considerado muito rápido que, tal como acontece com as crianças, nas tabelas de crescimento têm um percentil acima de 50, pois têm um risco acrescido de desenvolver obesidade na vida adulta” e, nessa medida, defende Mafalda Pires Gonçalves, é necessário fazer ajustes nutricionais e tomar medidas preventivas da obesidade desde a idade pediátrica.

“É uma situação difícil a partir do momento em que há uma relação emocional entre o cliente e o animal, mas é aqui que entro nas minhas consultas, tentando desconstruir qual é o tipo de relação que está por trás [daquele caso]”.

Tratar antes de ter de “correr atrás do prejuízo”

Um dos motivos que levou a médica veterinária a interessar-se por esta patologia não foi apenas por observar o aumento exponencial de animais com peso a mais, mas também pelas consequências que a obesidade traz para a saúde de cães e gatos. Em consultório não são raros os casos de diabetes, de problemas osteoarticulares, de doenças respiratórias ou de condições dermatológicas que resultam do excesso de peso do animal. E os exemplos podem ser prosaicos como o de um gato que, por ter obesidade, não consegue realizar a sua higiene diária e desenvolve problemas de pele ou infeções urinárias de repetição ou então de um cão de raça shar-pei que, devido ao peso, tem um potencial acrescido de desenvolver dermatites nas pregas de pele.

São cenários que Mafalda Pires Gonçalves acredita poderem ser evitados, ou minimizados, se o peso do animal de companhia for monitorizado e se for feita a prevenção da obesidade em vez de se andar a “correr atrás do prejuízo”, que é como quem diz, a tratar as complicações desta doença que entram diariamente pelos consultórios dos médicos veterinários. Afinal, reforça a médica veterinária, “a obesidade é um estado de inflamação crónico, tal como o stress, e essa inflamação crónica leva a vários problemas sistémicos – doenças e sintomas – que podem ser evitados se tratarmos a causa que está na sua origem”.

O que Mafalda Pires Gonçalves gostava que acontecesse é que os animais referenciados para o Centro do Peso Saudável – pelos outros serviços do Hospital Escolar Veterinário, por centros de atendimento médico veterinário – ou que lhe chegam através da página que criou na rede social Instagram viessem em momentos mais precoces, em que as consequências da obesidade não estivessem já tão instaladas (ver caixa). No fundo, que os profissionais valorizassem mais o índice de condição corporal do animal no momento da consulta e estabelecessem um plano de acompanhamento tendo em conta a predisposição da raça e o ambiente em que o animal vive, porque sendo a obesidade uma doença passível de ser prevenida “há um potencial enorme de melhoria de qualidade e de esperança média de vida dos animais se apostarmos na comunicação com o cliente e na educação da comunidade veterinária”, conclui.

Obesidade no animal “não é um tema apelativo”

Um dos pontos centrais da tese de doutoramento de Mafalda Pires Gonçalves é “perceber até que ponto as equipas médico-veterinárias falam da obesidade e do excesso de peso nos vários tipos de consulta”. Ações tão simples como aproveitar as consultas de vacinação para pesar o animal e avaliar o índice de condição corporal – a visualização do animal visto de cima e de lado e a apalpação de determinadas regiões do corpo – podem fazer a diferença na prevenção de futuras complicações

A médica veterinária realizou vários inquéritos a médicos, enfermeiros e auxiliares veterinários, assim como a clientes em sala de espera para perceber como o assunto da obesidade está a ser tratado na realidade nacional já que os estudos internacionais demonstram que a grande maioria dos médicos veterinários pesam os animais nas consultas, mas poucos são os que registam o índice de condição corporal, o que pode estar na origem do cenário mundial da obesidade nos animais de companhia.

Mafalda Pires Gonçalves ainda está a trabalhar os dados para apresentar a tese, mas, apesar de reconhecer que a obesidade “não é um tema muito apelativo” para a classe veterinária, nas declarações à VETERINÁRIA ATUAL admitiu que o cenário “está a melhorar” e já começam a existir profissionais que se interessam por esta questão. E o facto de estar numa instituição universitária dá-lhe alguma esperança no futuro, pois recebe muitos estudantes que passam pelo Centro de Peso Saudável nas rotações durante o curso e percebem as consequências da obesidade para a saúde dos animais. “Já começa a haver uma mudança de mindset e espero estar a ajudar nessa mudança”, assegura a médica veterinária, que acredita ser com o esforço e empenho dos profissionais que se vai conseguir diminuir a prevalência mundial da obesidade nos animais de companhia e, desta forma, prevenir as consequências desta doença.

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