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Animais Selvagens

Reproduzir, monitorizar e preparar a espécie para reintrodução no seu habitat natural

Começou por proporcionar condições para estudar a eficácia da vacinação da lebre-ibérica (Lepus granatensis) contra a mixomatose utilizando as vacinas comerciais de coelho, mas atualmente é um Centro de Reprodução  – o único do País – que pretende impedir a extinção funcional desta espécie autóctone e icónica. Recorrendo a técnicas de incentivo à fertilidade, o Centro de Reprodução da Lebre-Ibérica conta já com 70 exemplares nascidos em cativeiro no seu ano e meio de existência. À data, ainda não saiu nenhum animal para repovoamento, mas a previsão é de que estas saídas venham a acontecer ainda a meio deste ano.

Reproduzir a lebre-ibérica não foi o motor inicial deste projeto, que numa fase embrionária pretendia estudar a eficácia das vacinas comerciais da mixomatose dos coelhos na lebre-ibérica. Embora a espécie estivesse já a decair há algumas décadas devido à alteração dos habitats, o aparecimento da mixomatose − que nos últimos 70 anos se registou apenas no coelho e nunca na lebre-ibérica – veio acelerar este decréscimo. A doença aparece em julho de 2018 em Espanha, e em outubro do mesmo ano em Portugal, associada a uma taxa de mortalidade estimada de 60%.

 

“Era preciso perceber se eventualmente teríamos de proteger a espécie de um evento de mortalidade de grande escala. A nossa atuação (Equipa +Coelho) começou por avaliar as vacinas que existiam disponíveis comercialmente”, conta o médico veterinário e cofundador do Centro de Reprodução da Lebre-Ibérica, Fábio Abade dos Santos.

O ponto de partida deste ensaio de vacinação começou com o processo de captura de lebres em estado de liberdade. “Integrado no projeto +Coelho, coordenado pelo Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV), começámos a capturar lebres em estado de liberdade em finais de 2019. Fizemos 15 capturas, com ajuda de amigos, estudantes, pessoas ligadas à caça, agricultores e médicos veterinários. Cada captura envolveu cerca de 50 pessoas e o processo fazia-se com redes específicas colocadas ao longo de vários quilómetros, nas primeiras horas do dia”, explica. O processo demorou a dar frutos e as primeiras três intervenções terminaram em frustração, sem a captura de nenhuma lebre. A primeira captura ocorreu apenas na quarta intervenção.

 

Concluído o estudo de vacinação, cerca de ano e meio depois, e terminado o seu financiamento (Projectos +Coelho 2, financiado pelo Fundo Florestal, ICNF), Fábio Abade dos Santos, responsável técnico de acompanhamento médico-veterinário, e Sebastião Miguel, gestor e detentor oficial da exploração, abraçaram o projeto de construir este centro de reprodução – o único na Península Ibérica com aquelas características– com o primeiro exemplar a nascer em março de 2020.

Os dois fundadores e responsáveis oficiais do Centro de Reprodução da Lebre-Ibérica: Sebastião Miguel, detentor da exploração e Fábio Abade dos Santos, responsável técnico de acompanhamento médico-veterinário.
@Rodrigo Cabrita

Impedir a extinção funcional da lebre-ibérica (Lepus granatensis)

De acordo com Fábio Abade dos Santos, este é o primeiro Centro de Reprodução de Lebre-Ibérica (www.lebre-iberica.pt) em Portugal e, por isso, a informação disponível sobre os aspetos da reprodução em cativeiro da espécie é quase nula. “Segundo a informação que temos, este centro apresenta características diferentes de outros que existem noutros países, nomeadamente em Espanha. Temos um tipo de instalações diferente, uma vez que não é um simples cercado. A nossa vertente de atividade, além de reproduzir animais, passa também por estudar a espécie e isso só é possível com este tipo de instalações mais complexas e diversificadas, que nos permitem capturar facilmente os animais, manipulá-los e monitorizá-los em direto.” Para este efeito, servem as câmaras que têm disponíveis em vários pontos das instalações e o controlo da alimentação que os animais ingerem. “Além da disponibilização de pastagem permanente, e que fazemos questão de variar ao longo do ano, colocamos também à disposição dos animais milho, aveia, trigo, centeio e girassol. Notamos que a apetência para os diferentes alimentos varia ao longo do ano, naturalmente dependendo das condições climatéricas e do ciclo reprodutivo”, nota o médico veterinário.

 

A nossa vertente de atividade, além de reproduzir animais, passa também por estudar a espécie e isso só é possível com este tipo de instalações mais complexas e diversificadas, que nos permitem capturar facilmente os animais, manipulá-los e monitorizá-los em direto. – Fábio Abade dos Santos, cofundador do Centro de Reprodução da Lebre-Ibérica

No Centro de Reprodução, os grupos de animais estão divididos por parques, estando a ser estudado o rácio macho-fêmea, com o objetivo de aferir o que demonstra ser mais eficaz em termos de fertilidade. Aposta-se ainda num grande número de machos, dando a possibilidade às fêmeas para selecionarem o seu parceiro, o que poderá determinar uma genética mais adequada à vida no campo. Conseguimos manter, através de diversas técnicas, vários machos juntos com as fêmeas, sem que os machos se matem entre si. “Em liberdade, os machos podem arrancar os testículos aos seus rivais à dentada, sendo essa uma das técnicas de dominância dos machos. Eles lutam entre si e podem tonar-se bastante agressivos. Há inclusivé imagens bastante interessantes, de machos a lutarem durante largos minutos apoiados apenas nos membros posteriores, ou seja, de pé. Se impuséssemos um macho ou dois ao grupo, as fêmeas acabariam por aceitá-los, mesmo que não os ‘vissem’ como detendo as melhores características fenotípicas e comportamentais. Se lhes dermos seis ou sete machos a escolher, queremos acreditar que as fêmeas irão selecionar os machos que consideram mais aptos.”

 

No Centro de Reprodução, os grupos de animais estão divididos por parques, estando a ser estudado o rácio macho-fêmea, com o objetivo de aferir o que demonstra ser mais eficaz em termos de fertilidade.

De acordo com o cofundador do Centro de Reprodução, esta espécie animal sofre de stresse de forma extraordinariamente intensa e a simples manipulação humana pode levá-lo à morte. “A sua maior fragilidade prende-se com a facilidade com que ocorrem fraturas das últimas vertebras lombares, levando à laceração da medula espinal, ficando com os membros posteriores paralisados e sem recuperação possível. Quando os agarramos, além de se tentarem libertar, mordem, fazem movimentos súbitos e muito bruscos com os membros posteriores e é preciso ter muito cuidado”, explica Fábio. Estas condicionantes, exigem cuidados acrescidos por parte da equipa e, por isso, os procedimentos são sempre realizados pelos mesmos responsáveis, sendo aqui fundamental a experiência adquirida e o conhecimento da espécie.

O centro encontra-se neste momento a otimizar uma técnica de eletroejaculação, integrada numa dissertação de mestrado de uma estudante da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, e os ensaios pretendem avaliar e caracterizar o sémen de Lepus granatensis e perceber a sua viabilidade para utilização em inseminação artificial. Fábio Abade dos Santos nota que, tendo em conta o sucesso que estão a ter na reprodução natural, o interesse neste campo é, para já, sobretudo científico. “Uma vez que existem outras espécies de lebre com estatuto de conservação ainda mais preocupante do que a lebre-ibérica, pode ser interessante a aplicação deste conhecimento nessas espécies.”

O centro encontra-se neste momento a otimizar uma técnica de eletroejaculação, integrada numa dissertação de mestrado de uma estudante da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, e os ensaios pretendem avaliar e caracterizar o sémen de Lepus granatensis e perceber a sua viabilidade para utilização em inseminação artificial.

Preparar a espécie para o mundo selvagem

A lebre-ibérica habita maioritariamente a sul do Rio Tejo, particularmente no Alentejo e Algarve, e as capturas aconteceram em pomares, olivais e amendoais. A lebre é um animal nidífugo, ou seja, as crias já nascem com a pelagem completa e com capacidade de movimento autónomo. “Ao contrário dos coelhos, as lebres não vivem em colónias, nem fazem tocas. Nascem à superfície do solo e as crias muito rapidamente se afastam umas das outras. Nunca vemos uma ninhada junta, exceto nas horas imediatamente seguintes ao parto. Acreditamos que seja uma estratégia de sobrevivência dos animais face aos predadores, pois desta forma reduz-se o risco de toda a prole ser predada. Naturalmente, quando a progenitora chega para amamentar, as crias juntam-se a ela.”

O centro está legalizado e habilitado para que de lá saiam animais para repovoamento e, para isso, torna-se necessário providenciar condições semelhantes ao ambiente selvagem. À volta da exploração, que conta com 1 hectare e dispõe de controlo e vigilância de entradas e saídas de pessoas e veículos, existem janelas de rede que possibilitam o contacto visual com outras espécies simpátricas e com predadores aéreos e terrestres. O contacto com as perdizes e as codornizes, por exemplo, é fundamental para que conheçam os chamamentos e os avisos da presença de predadores. “O que nos interessa são animais que tenham todas as características de robustez física e comportamental. Os que não apresentam estas características mantêm-se cá para demonstração − como, por exemplo, a nossa mascote Carlota − ou vão para algum parque zoológico que se interesse, visto ser uma espécie chave do ecossistemas Ibéricos”.

“Orgulhamo-nos de registar nas nossas instalações animais a correrem a 70 km/h, a velocidade máxima atingida pela espécie em liberdade. A lebre-ibérica é o mamífero mais rápido da Europa. Variamos as condições do habitat ao longo do ano, entre terra lavrada e pastagens diferentes, de forma a simular as condições que os animais vão encontrar no campo. A temperatura e a humidade são também fatores que mimetizamos, porque a região do Alentejo – o habitat predominante da espécie – pode estar sujeita a temperaturas superiores a 40°C.”

Intervenção do médico veterinário e do gestor no centro

O centro está autonomizado para disponibilização de alimento e abeberamento para cerca de uma semana. Dispõe ainda de computadores de monitorização de temperatura e humidade e capacidade de ajustar estes parâmetros de forma imediata.

A intervenção médico-veterinária é fundamental e torna-se necessária em casos de necrópsias, nas capturas, no manuseamento, no controlo de reprodução, na colocação de brincos e de chips subcutâneos, assim como na desparasitação. “Identificamos a causa da morte de todos os animais que são necropsiados. Embora a taxa de mortalidade seja muito baixa, tendo em conta o que está descrito, por vezes acontece”. Os restantes procedimentos são realizados periodicamente sempre que exista alguma evidência de alteração do comportamento, como, por exemplo, quando são detetadas pulgas, “o parasita mais frequente. E aqui é preciso tomar algumas medidas sanitárias”, revela. Além do descrito, a rotina no centro inclui também, por exemplo, a construção e aplicação de divisões e sementeiras.

Alavancar a investigação com recurso a apoio de parceiros-chave

Os custos de manutenção do centro são elevados e o médico veterinário e o gestor assumem a necessidade de o tornar autosustentável. As lebres consomem, em média, cerca de 300 gramas de cereais por dia, o que, no total, perfaz um valor anual avultado. Além da alimentação, as despesas incluem água, eletricidade, produtos sanitários, mão de obra para as sementeiras e construção/adaptação do próprio espaço. “A lebre ibérica é uma espécie que apresenta uma prolificidade baixa e o nosso objetivo é vir a suportar os custos que temos através de verbas de projetos de investigação financiados com os quais estabeleçamos parcerias.” Com vista ao financiamento, Fábio Abade dos Santos, revela já ter alguns contactos com proprietários rurais interessados em alavancar a recuperação da espécie nos seus espaços. “Em primeira linha, as reservas de caça estão particularmente interessadas. Tendo em conta o valor consideravelmente alto que a lebre ibérica tem atualmente no mercado, as reservas não estão interessadas em adquirir animais para abate, mas sim para valorizar a sua zona de caça (reprodução e incremento das suas populações). Os caçadores deram um exemplo absolutamente exemplar aquando da emergência da mixomatose. O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) não teve necessidade de tomar nenhuma medida de proibição para que os caçadores imediatamente cessassem a caça à espécie, o que fizeram de forma pronta e espontânea. Neste momento ainda é autorizada, mas a esmagadora maioria das reservas de caça não caça a lebre desde 2018. Esta é uma imagem muito importante que os caçadores passaram para a sociedade e que neste momento ainda se verifica”, revela.

À data ainda não saiu nenhum animal do centro, mas o médico veterinário prevê que isso possa acontecer a meio deste ano. “As reservas de caça e os caçadores estão legalmente habilitados a adquirir estes animais, visto tratar-se de uma espécie selvagem de interesse cinegético. No futuro, prevemos que alguns parques naturais e zonas protegidas se interessem também pela aquisição destes animais.”

À data, ainda não saiu nenhum animal para repovoamento, mas a previsão é de que estas saídas venham a acontecer ainda a meio deste ano.

Fábio sublinha o risco que a espécie enfrenta de poder entrar em extinção funcional. “Embora seja pouco provável que a espécie desapareça totalmente dos territórios, ainda que já tenha desaparecido localmente de vários, deixará de exercer o seu papel nas cadeias tróficas”.

Estudar as doenças virais nos leporídeos silvestres

Os dois responsáveis oficiais do projeto – Fábio Abade dos Santos, responsável técnico de acompanhamento médico-veterinário e Sebastião Miguel, gestor e detentor oficial da exploração – conheceram-se na altura em que Fábio frequentava o Mestrado em Medicina Veterinária sobre a Doença Hemorrágica Viral no coelho bravo. Para o ajudar na investigação, procurava agentes do campo que trabalhassem nesta área e que lhe pudessem fornecer dados relativamente ao estado do animal no habitat, recolhendo, por exemplo, animais mortos para análise, com vista a perceber o real impacto da doença na espécie. Estabelecido esse primeiro contacto, e dada a partilha da mesma paixão pela fauna, a partir daí, estiveram envolvidos em diversos projetos.

Atualmente, Fábio Abade dos Santos encontra-se a terminar a sua tese de doutoramento que visa avaliar o impacto das doenças virais nos leporídeos silvestres − o coelho bravo e a lebre-ibérica. “Recentemente, descobrimos ainda outra ameaça para a lebre-ibérica, um herpesvírus que denominámos Leporid gammaherpesvirus 5, que temos encontrado em cerca de 30% das lebres amostradas. Acreditamos que seja a mixomatose que abra espaço para que este vírus, tal como acontece, por exemplo, com alguns herpes humanos, possa reativar o herpesvírus e causar doença clínica. Sabemos que as duas doenças, quando juntas, levam a um quadro patológico reprodutivo bastante grave. Falamos de animais que mesmo que recuperem destas doenças não têm viabilidade reprodutiva”, revela.

*Artigo publicado originalmente na edição n.º 157 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de fevereiro de 2022.

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