A Medicina Veterinária Equina passa por vários desafios em Portugal, desde logo o investimento necessário em alguns tratamentos, que podem ser dispendiosos. O facto de os cavalos serem também “atletas” e participarem em provas equestres leva a que surjam outro tipo de necessidades que é necessário acautelar. Tem-se procurado aumentar a qualidade dos cuidados médico-veterinários, para os quais contribuem as várias investigações e os avanços terapêuticos. Um novo método de estadiamento do Síndrome de Asma Equina ou a utilização de endoscopia dinâmica são apenas alguns exemplos.
São animais de grande porte, é difícil transportá-los, têm especificidades próprias, o que pode originar grandes desafios no tratamento das suas patologias. Alguns dos proprietários de equinos veem-nos como “atletas”, tornando o papel do médico veterinário ainda mais desafiante, sobretudo no que toca à preparação dos cavalos “desde a reprodução das éguas até à alta competição”, revela a equipa da Equimuralha, um setor do Hospital Veterinário Muralha de Évora. Dedicado exclusivamente aos equídeos, a equipa é constituída por dois médicos veterinários – Tomé Fino e Liliane Damásio – que trabalham essencialmente em regime ambulatório “tendo ao seu dispor dois carros completamente equipados com todo o material necessário e meios de diagnóstico complementares, por forma a dar resposta a uma panóplia de áreas clínicas, tais como medicina desportiva, reprodução, medicina interna, pequena cirurgia, radiologia, ecografia, neonatologia, dentisteria, profilaxia e identificação, entre outras”. Esta equipa tem vindo a integrar projetos desportivos em várias áreas, salientando-se “a Dressage e Endurance de competição, nos quais a medicina desportiva desempenha um papel fundamental na maximização do rendimento dos cavalos em prova”.
Uma das dificuldades que se coloca no acompanhamento das patologias destes animais prende-se com o facto “de alguns proprietários serem menos experientes e não serem capazes de fazer tratamentos em casa. No entanto, a nível hospitalar a oferta já é bastante alargada. Por vezes, as dificuldades são também económicas, por exemplo fazer fluidoterapia num cavalo tem um custo muito superior a realizar a um cão ou um gato”, explica Paula Tilley, professora auxiliar, regente de Clínica de Equinos na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (FMV-UL). Outro desafio relevante prende-se com a tentativa de “conseguir desenvolver uma abordagem completa e integrativa em cada caso, tentando integrar diferentes técnicas e modalidades com vista a um resultado eficaz”, na opinião de João Paulo Marques, sócio e consultor técnico do Centro de Reabilitação Equina – Hidrovet. A pressão colocada por parte dos proprietários “no sentido de soluções mais rápidas e de menor tempo de recuperação” é uma das grandes dificuldades apontadas pelo consultor, pois “frequentemente esta exigência não corresponde ao tratamento mais adequado para o paciente”.
Face às patologias que mais afetam os equinos, “além das claudicações, uma vez que são animais de desporto, as cólicas abdominais, a úlcera gástrica e as patologias respiratórias são as mais comuns. Depois, uma vez que são uma espécie com tipo de comportamento de ataque ou fuga, também há muitos traumatismos acidentais”, explica Paula Tilley. Na Equimuralha, a incidência nas urgências deve-se sobretudo a “cólicas, feridas / lacerações, casos de neonatologia e piroplasmose. Além disso, em consultas por marcação, os casos mais frequentes são as claudicações, a odontologia, problemas respiratórios, problemas reprodutivos em éguas e garanhões e problemas de dermatologia”, revelam os elementos da equipa.
No que respeita às patologias do sistema locomotor, os grandes grupos de problemas são “as patologias de tecidos moles (tendões e ligamentos), as patologias osteoarticulares e as dorsalgias. Os problemas de dorso são muitas vezes desvalorizados, sendo-lhes atribuido um papel secundário, mas na minha opinião são de extrema importância na gestão do cavalo de desporto”, explica João Paulo Marques. Na Hidrovet, a maior percentagem de casuística deve-se a casos de “alterações músculo-tendinosas referidos pelos respetivos médicos veterinários”, mas como uma das grandes áreas de atuação é a de treino e de melhoria da condição física, são acompanhados equinos que não apresentam propriamente patologias associadas.
Síndrome de Asma Equina e Endoscopia dinâmica
Nas diversas áreas da Medicina, a ciência não para de evoluir e na Veterinária essa realidade não é exceção. “Em particular, estou a participar num grupo internacional que está a trabalhar com a intenção de desenvolver imunoterapia para cavalos com alergia à picada de culicoides e estou a orientar um trabalho de doutoramento nesta área”, revela Paula Tilley. Nesse sentido, a FMV-UL publicou recentemente “um método de estadiamento do Síndrome de Asma Equina, o qual permite termos a perceção, se ainda é possível, o cavalo estabilizar e fazer a sua vida normal (estádio 1 e 2) ou se pelo contrário isso já será difícil (estádios 3 e 4)”. Foi também publicada recentemente “a utilização pela primeira vez, no cavalo, de um painel de alérgenos em teste cutâneo por picada (TCP) para diagnóstico em situações de alergia respiratória”.
Neste momento, está ainda a decorrer um trabalho que envolve a utilização de “endoscopia dinâmica, a qual permite que vejamos a imagem endoscópica à distância durante o trabalho do cavalo. Ou seja, o cavalo é montado, trabalhado, com o endoscópio colocado. Estamos a avaliar o efeito da posição da cabeça do cavalo enquanto é trabalhado, na performance respiratória”. O equipamento é único em Portugal e está disponível para a comunidade. “Recebemos todos os cavalos que tenham, de alguma forma, indicação para fazer endoscopia do aparelho respiratório superior em trabalho (cavalos que produzam ruído respiratório em trabalho, por exemplo)”. Está ainda em fase final a avaliação dos dados recolhidos em cerca de 90 endoscopias gástricas efetuadas no hospital da FMV. “Recolhemos dados de maneio, trabalho, regime alimentar, comportamento e outros sinais manifestados, assim como o registo endoscópico das lesões encontradas antes e depois do tratamento e tudo indica que as conclusões serão bastante interessantes”, acrescenta a professora.
A investigação também não cessa no que diz respeito às novas terapêuticas. Surgem constantemente em diversas áreas. Paula Tilley realça um trabalho que está a ser realizado, na área de osteoartrite, pela Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Colorado, EUA, “com o intuito de produzir um melhor vetor viral para fazer terapia genética para tratamento da osteoartrite em cavalos. Ainda nesta área, mas no âmbito da medicina regenerativa, a FMV submeteu à Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT), em parceria com o Instituto Superior Técnico (IST) e com a Cooperativa de Ensino Superior Egas Moniz (CESEM), um projeto intitulado ‘Formação de cartilagem articular de equinos com células estaminais em condições ex-vivo’, no âmbito do qual se pretendia formar um banco de células mesenquimatosas de equinos e desenvolver um produto off-the-shelf para a regeneração da cartilagem equina. Infelizmente, este ano não fomos agraciados com bolsa da FCT”, lamenta a professora.
No tratamento de patologias dos equinos, e dada a constante atualização da ciência, surge uma maior necessidade de atualização. “Todos os dias aparecem novas técnicas, novos tratamentos, novos fármacos, pelo que necessitamos de atualização constante. Além disso, a gestão da comunicação e das expetativas do cliente são fundamentais para uma relação sólida entre o cliente e o médico veterinário”, reforça a equipa da Equimuralha.
A Medicina Veterinária de Equinos em Portugal
Pelo que se percebe da realidade vivenciada pelos profissionais que aceitaram colaborar neste artigo, a clínica de equinos é ainda menos expressiva do que a de pequenos animais. “Acredito que é uma área em crescimento em Portugal. As coudelarias tradicionais existem há muitos anos no nosso país, assim como sempre houve cavalos de desporto e profissionais nessa área. Nos últimos anos, além destes têm surgido novos proprietários, que vão desde coudelarias de pequena dimensão, a proprietários de cavalos de passeio ou de competição a baixo nível. Assim, nestes casos, a clínica de equinos assemelha-se de alguma forma à clínica de animais de companhia e tem um cariz bastante diferente”, defende Paula Telley. Em Portugal, a medicina veterinária teve um “grande salto qualitativo nos últimos anos. No entanto, não se pode ainda afirmar que esteja ao mesmo nível de alguns países do Centro e Norte da Europa ou dos Estados Unidos da América. Aqui, o fator económico tem também o seu peso. Acredito que se conseguirmos que as companhias de seguros passem a oferecer apólices minimamente acessíveis e com uma cobertura razoável poderemos passar a prestar com maior frequência serviços médico-veterinários mais alargados e de melhor quantidade. Isso irá permitir um maior investimento da nossa parte, tanto em termos de formação, como de equipamento, podendo significar um novo salto qualitativo”.
O aspeto económico é também referido por João Paulo Marques. “Se ao mesmo tempo continuam a ser formados médicos veterinários pelos diversos estabelecimentos de ensino de Medicina Veterinária, em número insustentável e desfasado da realidade, então o resultado é preocupante”. O desafio atual é muito mais “económico do que de caráter técnico”, sendo importante compreender que “não existe um benefício a longo prazo em ceder a espirais descendentes de descida de preço, que invariavelmente acabam por conduzir ao colapso económico de quem se deixa arrastar por esses métodos, e cultivarmos o espírito de entreajuda e colaboração entre colegas”.
Também a equipa de Equimuralha considera que as últimas décadas têm registado “uma enorme evolução dos profissionais ligados à clinica de equinos, tanto a nível técnico, como científico. No entanto, o mercado em Portugal ainda não permite um nível de especialização e de casuística que justifique a existência de centros de referência e meios de diagnóstico de vanguarda, ao nível de outros países europeus”. A aposta na formação torna-se também essencial para complementar o serviço médico-veterinário dos equinos. “A clínica de equinos de reprodução ou de competição a nível mais profissional é, no entanto, uma área muito exigente, com clientes muitas vezes bem informados e difíceis de satisfazer. Aí é essencial que os médicos veterinários tenham formação sólida e especializada”, defende Paula Tilley.
A Equimuralha presta com frequência serviços de referência a colegas cuja atividade principal não é a clínica de equinos. “Obviamente que a formação mais sólida destes colegas, principalmente na deteção de patologia que necessite de outros meios de diagnóstico (como ecografia ou radiografia) ou de tratamentos tecnicamente mais específicos, como infiltrações ou lavagens articulares, é fundamental para obter sucesso nos tratamentos”. Anualmente, dentro das Jornadas do Hospital Veterinário Muralha de Évora, a equipa organiza workshops para médicos veterinários em que têm sido abordados temas como oftalmologia, dentisteria e medicina desportiva, entre outros. Em março deste ano, o evento contemplou o tema “O cavalo atleta: da conceção ao alto rendimento’’, cuja mensagem passada foi “a insistência no trabalho de equipa entre criadores, cavaleiros, veterinários e todos os intervenientes, sendo que só criando um cavalo atleta desde a sua conceção, passando pelas várias fases do seu desenvolvimento, é possível chegar ao alto rendimento nas várias modalidades”, explicam os médicos veterinários da Equimuralha.
Que futuro?
E que avanços terapêuticos seriam cruciais no tratamento dos equinos? Que novidade ao nível do tratamento ainda não tem aplicabilidade prática e seria útil ao adequado desempenho dos médicos veterinários que se dedicam a estes animais? “Portugal tem cada vez melhores profissionais, criadores e proprietários, que fazem com que a maioria das terapêuticas seja possível em Portugal, pelo crescente interesse desportivo nestes animais. No entanto, técnicas como a cintigrafia e a ressonância magnética ainda não estão disponíveis no país pelo que, por vezes, os proprietários têm que recorrer a viagens mais longas para terem acesso a estes meios, sujeitando os seus cavalos a estas deslocações”, foca a equipa da Equimuralha.
No hospital da FMV-UL está disponível o serviço de endoscopia com registo de “uma procura crescente”, mas devido à casuística que o hospital tem tido, Paula Tilley gostaria que surgisse algum avanço terapêutico “no tratamento de úlceras da porção mais distal do aparelho digestivo e mesmo de úlceras localizadas na região glandular do estômago”. No que respeita à patologia respiratória que tem registado um aumento significativo de casos de Obstrução Recorrente das Vias Aéreas (ORVA), atualmente designada Síndrome de Asma Equina, de acordo com o consenso internacional de 2016, a FMV tem investido no diagnóstico nesta área. “Estou a orientar um trabalho de doutoramento, a decorrer em colaboração com a faculdade de Berna, na Suíça, no âmbito do estudo do Síndrome de Asma Equina. Neste momento podemos oferecer um estudo completo destes animais, incluindo endoscopia, exame radiológico torácico, lavagem bronco-alveolar com análise citológica do lavado, gasometria arterial, pletismografia, medição indireta da pressão pleural e testes cutâneos por picada com alérgenos. No entanto, a terapêutica que podemos oferecer atualmente é à base de fármacos. A imunoterapia, embora ajude, não é ainda muito eficaz”, foca a professora.
João Paulo Marques acrescenta que “as chamadas terapias regenerativas (estaminais mesenquimatosas, IRAP, PRP) estão hoje em dia muito em voga por todo o mundo, sendo até de registar, por vezes, algum exagero na sua utilização, nem sempre sendo dada atenção suficiente à seleção dos casos e à técnica de tratamento propriamente dita, dando origem a resultados que podem ficar aquém do esperado”. Na área das patologias do sistema músculo-esquelético, o que continua a fazer falta, na opinião do sócio da Hidrove” é o “recurso à Ressonância Magnética e à Cintigrafia como meios de diagnóstico complementar”.
Para João Paulo Marques, a questão da formação “é complexa”. Na sua opinião, atualmente é importante apostar “em áreas de especialização e para isso acontecer têm que se fazer opções, não sendo possível, em termos práticos, terminar a formação universitária com uma preparação boa em todas as áreas da Medicina Veterinária. Mas por outro lado, um médico veterinário deveria sair da Universidade com uma preparação base que lhe permitisse iniciar carreira em qualquer área, embora naturalmente necessite de formação contínua posterior na área que escolher”. Considerando que Portugal se encontra “ao nível médio de conhecimentos e preparação técnica dos clínicos de equinos em regime ambulatório, nada fica a dever quanto ao que se observa noutros países da União Europeia”. Destaca, no entanto, que os Centros de Referência têm ficado “um pouco aquém de outros países”. A Hidrovet surge como um Centro de Reabilitação que veio ocupar uma área de mercado ainda por explorar. João Paulo Marques criou ainda a Equidesporto – Assistência Veterinária Móvel há 17 anos, que além de parceira da Hidrovet, cuja principal área de atividade atualmente se foca na Medicina Física e de Reabilitação e nas Medicinas Complementares (Acupunctura, Quiroprática, Homeopatia). Estes serviços podem ser integrados “nos planos de reabilitação delineados na Hidrovet, o mesmo se aplicando a todos os equipamentos de fisioterapia que a Equidesporto foi adquirindo ao longo do tempo”.
O Núcleo EQUIDAEfmv integra-se na Associação de Estudantes da FMV-UL com o objetivo de colmatar “o deficit de atividades relacionados com a área dos equídeos na faculdade, e também do grande interesse e dedicação de um grupo de alunos pela área, privilegiando a componente prática”, revela Ana Galhós, tesouraria do núcleo desde 2014. “Tem vindo a crescer não só em número de sócios, mas principalmente na adesão aos eventos, com feedback bastante positivo por parte dos participantes. A maioria dos nossos participantes são alunos não só da FMV-UL, mas também de outras instituições. Tem-se verificado alguma adesão de outros profissionais (não só médicos veterinários). Temos também vindo a crescer internamente, com cada vez com mais colaboradores e interessados”.
O Núcleo desenvolve ainda atividades em parceria com outras instituições, como foi o caso do “Equine Hoof Symposium, em 2015, um evento internacional”, onde a principal dificuldade foi obter patrocínios. “Não sentimos grande interesse por parte dos patrocinadores, mas temos vindo a trabalhar para melhor esse aspeto”. Para 2016 e 2017, o Núcleo tem um projeto relacionado com o acompanhamento, no terreno, de médicos veterinários por um grupo de alunos, durante provas equestres. Além desta atividade irão ser organizadas palestras e um workshop cujo tema ainda está por definir.
Como estudante em final de curso e com o desejo de enveredar na área de equinos, Ana Galhós considera que “as perspetivas de um futuro profissional na área dos equinos, com possibilidade de progressão de carreira e com uma boa remuneração, não são de todo animadoras. Há imensa competição, muitos profissionais para a oferta, o que leva a ser tentador um futuro no estrangeiro, onde o curso português é bastante valorizado”.
Após a realização de estágios em França, Irlanda e Inglaterra, as grandes diferenças que tem sentido são sobretudo no que respeita aos equipamentos e
à capacidade de resposta. “Numa perspetiva de futuro, existem nestes países cursos de especialidade, opção inexistente em Portugal. Por outro lado, a remuneração dos internatos era superior ao que um médico veterinário recebe em Portugal. A Medicina Veterinária de equinos é uma área que exige, muitas vezes, grandes deslocações por parte do profissional, exigindo horários duros e grande responsabilidade. Considero, por isto, inaceitável alguns dos valores que são praticados em Portugal pelos serviços do médico veterinário (salário a rondar os 750 a 1000€ mensais, estudo feito pela Famvet, a 26 de maio de 2014). Por outro lado, Portugal tem 5,3 médicos veterinários por cada 10 mil habitantes (dados da FVE). Como é possível competir com tanta oferta e ainda garantir bons salários, férias e trabalho de qualidade? Esta situação tem consequências vincadas da profissão, que na minha opinião é urgente ser invertida”, defende a estudante, que refere ainda “o notável desenvolvimento da unidade de equinos da FMV-UL neste último ano, que tem vindo a combater com sucesso as dificuldades”.